Acidente escrita por Vulpe


Capítulo 1
"Watashi kininarimasu!"


Notas iniciais do capítulo

Acontece depois do anime, no segundo ano do ensino médio. Se não deu para ter kiss-kiss-fall-in-love quando eram kouhais, por que não agora?



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Houtarou sabia que uma hora ou outra aquilo acabaria acontecendo.

Na verdade não sabia, mas Satoshi levantara a possibilidade havia algum tempo, e ele acabara se acostumando com ela. Quer dizer, não a imaginar, mas a pensar. No estilo ‘se continuar assim, mais dia menos dia acontece’. Mas claro que ele nunca levara a sério. Era só uma espécie de piada interna de mal gosto, completamente inocente.

E agora nunca mais podia deixar Satoshi brincar com esse tipo de coisa, algo impossível, pois o amigo com certeza estava nas nuvens por sua previsão ter se tornado realidade. E que previsão mais covarde fora aquela.

Depois de um ano e algum meses fazendo o mesmo movimento arriscado, Chitanda calculara mal e tinha se aproximado um pouquinho demais do rosto de Houtarou para anunciar sua curiosidade.

Agora a garota estava vermelha, pedindo desculpas compulsivamente, enquanto o menino estava congelado na cadeira, olhando para o nada com a boca entreaberta. Satoshi ria e Mayaka parecia não saber se o acompanhava ou se corava com a amiga.

–Desculpe-me, Oreki-san! Ah, eu sinto muito mesmo, Oreki-san! Foi um acidente, me desculpe! Eu sinto muitíssimo! Do fundo do meu coração! Por favor me perdoe, Oreki-san! Minhas des... - continuava Chitanda, curvando-se a cada pedido de perdão, o cabelo balançando para cima e para baixo sem parar por um segundo. Esse era um dos motivos para o auto-intitulado banco de dados não parar de rir.

Mas, quando Chitanda disse que pagaria com seu corpo pelo erro e calou-se horrorizada ao perceber o sentido que poderia ser atribuído à frase, Satoshi caiu da cadeira para o chão; e enfim Mayaka decidiu que a situação passara dos limites.

–Chi-chan, acho que o Oreki já entendeu. – falou, o mais suave que conseguiu. E fuzilou garoto no chão com o olhar. – Fuku-chan, você já pode levantar.

Fukube ignorou-a, ou talvez realmente não conseguisse se mexer. O caso é que, com suas risadas como o único som na sala além do silêncio constrangido, Mayaka estava começando a enlouquecer. Frustrada, chutou a perna dele, atingindo o feito impressionante de fazê-lo rir mais.

Satoshi estava histérico. Mayaka preocupou-se que fosse uma espécie de ataque.

Olhou da amiga para o inimigo jurado, tentando decidir o que fazer. Eru continuava de pé, as mãos agarrando a barra da camiseta. Seu olhar estava fixado no chão, o rosto da cor dos tomates que sua família plantava. Perturbada e morta de vergonha.

Enquanto isso, Oreki conseguira fechar a boca. Olhava para a forma retorcida e barulhenta do melhor amigo com tanta concentração que deixava óbvio que seus pensamentos estavam em outro lugar. Isso e o rosado de suas bochechas, na verdade; o desconforto dele deu um prazer cruel a Mayaka.

Foi parte a perspectiva de aumentar esse desconforto, parte a preocupação e irritação com Fuku-chan e parte seu próprio embaraço que induziram sua decisão.

–Fuku-chan, vamos lá fora até você se acalmar. – determinou, agarrando a gola dele com um pensamento de desculpas para Chitanda.

Oreki acompanhou a operação de remoção sem ver de verdade, mas viu o suficiente para substituir o rosado do rosto por vermelho quando Fukube fez um joinha com o polegar antes de sumir de vista.

Maldito Satoshi. Amaldiçoado fosse ele e tudo o que defendia.

A porta cerrou com um som retumbante. Ou foi o que pareceu através do silêncio denso.

–Eu sinto tanto, tanto mesmo, Oreki-san. – falou Chitanda, a voz fina de timidez.

Ela já pedira desculpas muitas vezes. Por mais que ele próprio estivesse mortificado, algo em Houtarou ressentia a força com a qual Chitanda desejava que nada houvesse ocorrido.

Tentou ignorar o ressentimento. A responsável por ele era uma parte nova e estranha de seu ser, a mesma que não conseguia dizer não a Chitanda e que o persuadia a gastar mais energia do que o necessário. Houtarou a considerava assustadora e tinha uma política pessoal de fazer o máximo para ignorar sua existência.

–Foi só um acidente. –encontrou voz para dizer, tentando diminuir o acontecimento. Mesmo que os rostos queimando de ambos não concordassem.

Seus olhos verdes estavam fixados na superfície da mesa, no espaço entre suas mãos apoiadas no tampo. Só um acidente, repetiu para si mesmo. Nada demais. Nada sobre o que valha a pena gastar energia.

–...é. – Chitanda concordou, hesitante demais para estar convencida. Apertou o uniforme com mais força.

Nenhum dos dois completou o pensamento. A tensão ainda era palpável, forte o bastante para que não notassem a ausência dos risos espalhafatosos do companheiro de clube guinchado para fora.

–Foi meu primeiro beijo. – Chitanda confessou por fim, revelando a real causa de todo o alvoroço. Até suas orelhas estavam rosa.

Houtarou paralisou. Pressionou as palmas das mãos contra a mesa. Parou de respirar por um breve momento, prendendo o ar, e quando o soltou palavras empurradas por aquela sua parte alienígena escaparam junto.

– O meu também. – admitiu.

Os intervalos entre as falas não duravam tanto tempo quanto lhes parecia, mas pareciam muito longos. Até que Chitanda soltou um ‘Ah’ aliviado. Por algum motivo, o olhar de Oreki subiu para as mãos dela, que amassavam tecido. Eram pequenas e delicadas. Provavelmente também macias.

As dele suavam na mesa.

–O quê? – perguntou, uma curiosidade desnecessária. Gasto de energia gratuito que escorregou pela boca.

–Nada. – defendeu-se ela, rápido demais. – Eu só supus que... eu achei... me desculpe, eu não deveria assumir coisas.

Aquela parte suprimida de Houtarou que mostrava-se em pequenos deslizes parecia ter tomado controle da situação. Ela sentiu-se elogiada pela suposição de Chitanda, e consequentemente Houtarou se sentiu também.

–Certo. – concordou ele, sem ter certeza de com que concordava. – Então você também nunca. Tinha beijado ninguém.

Ela acenou e o corpo todo acompanhou o movimento de modos diferentes. Ele viu pelas mãos. Eru soltou-as da camiseta e juntou-as novamente na altura do peito, e Oreki seguiu a ação do mesmo modo que seguira a expulsão de Satoshi, por reflexo, mas mais alerta do que antes.

–Não tenho certeza de que chegou a ser um beijo. – tentou Chitanda, incerta, procurando convencer a si mesma.

É claro que suas reações testemunhavam que para os dois sim, fora um beijo, similar o suficiente a um beijo, mesmo que não houvesse passado de um encontro de lábios.

(Se bem que os de Chitanda estavam vagamente separados. Ela estivera prestes a falar “Oreki-san!” quando foi um pouco para frente demais e todo o desastre acontecera.)

–O que você acha, Oreki-san? – perguntou, ansiosa. Quase a mesma curiosidade de todos os dias. A mesma curiosidade que Houtarou não podia evitar querer saciar.

Uma das mãos dele começou a se fechar. Ele a olhou com interesse vazio enquanto pensava no que responder. A verdade ou o que Chitanda queria ouvir? Estava tão acostumado a buscar agradá-la, percebeu de súbito. Ficara tão acostumado a dar a resposta que a faria sorrir. Não queria vê-la como após a solução de Hyouka nunca mais. A lembrança era dolorida como um ferrão.

Balançou a cabeça em uma negativa, de leve. Sem olhá-la. Não conseguiria mentir se a olhasse.

–Também acha que não? – inquiriu Chitanda. Precisava de uma resposta verbal, clara, que tirasse o peso de seus ombros e o rubor do rosto. Para que pudesse dispensar o acontecimento como um mero acidente de uma vez por todas.

Mas Houtarou não queria ceder a solução fácil. Deveria querer, deveria querer esquecer tudo daquela complicação para que não precisasse gastar mais energia do que já dispensara. Responder qualquer outra coisa que não o que Chitanda esperava ouvir resultaria em caos sem previsão de escapatória, quebraria completamente o modo de vida calmo e cinza de Oreki Houtarou.

Mas sua vida fora salpicada pela primeira vez no exato momento em que abrira a porta da sala usada pelo então quase extinto clube de literatura. E, mais de um ano depois, já estava irrevogavelmente tingida. A mancha rosa e barulhenta dentro de si que não queria esquecer aquele acidente e que tampouco queria que Eru esquecesse provava isso. A mancha rosa que crescia com rapidez alarmante não abriria mão daquele primeiro beijo nem por toda a reserva de energia do mundo.

Seus dedos da mão direita flexionaram também, dobrando-se para dentro. Oreki imaginou os movimentos de nervosismo das mãos de Chitanda enquanto se pronunciava, audível, como ela requisitara.

–Eu acho que – e foi interrompido por um estrondo e um sonoro ‘AI!’.

A porta foi aberta de modo relutante. Mayaka colocou a cabeça para dentro. Ela continuava corada.

–O Fuku-chan estava tentando escutar, então eu bati a cabeça dele na porta. Desculpa interromper.

–Mentira! Você estava escutando comigo, Mayaka! – acusou Satoshi, aparecendo com uma mão segurando o lugar onde fora atingido. – Você só me bateu porque eu disse que eles iam se beijar de novo!

E então cada um explodiu à sua maneira. Mayaka guinchou “Fuku-chan!” com voz aguda, Fukube tropeçou nos próprios pés quando pulou para trás sobressaltado, Chitanda voltou a corar em força total e começou a negar o cenário com os olhos fechados apertados, e Oreki suspirou longamente ao sentir o rosa dentro de si atingir o rosto. Deixou a cabeça cair de encontro à mesa e aproveitou a temperatura mais baixa da madeira enquanto a balbúrdia corria à sua volta.

Maldito Satoshi. Maldita porção rosa. Maldita aneki, que o fizera ir para aquele lugar.

Ele não entendia o que estava acontecendo, mas previa que gastaria muita energia até descobrir.

(Chitanda estava certa. Aquele acidente não chegara nem perto de um beijo. Mas isso Houtarou só descobriu bem depois, quando os dois se beijaram no final do segundo Festival de Bonecas que ele assistiu. Foi um beijo de verdade, durante o qual as mãos dele se entrelaçaram com as dela e seu peito se aqueceu com um rosa muito, muito doce.

Quando seus lábios se separaram, ele se lembrou do acidente e sorriu, sentindo-se tolo e muito feliz.

Talvez devesse agradecer Satoshi, afinal de contas.)


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Notas finais do capítulo

Eu preciso de uma segunda temporada. Para ontem.Reviews ajudariam na espera OvO