De repente, no último verão em Titã escrita por slytherina


Capítulo 1
Lei de Murphy


Notas iniciais do capítulo

Desafio de Abril. Tema: Futuro. Ano 2084.



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1.


John Lipton estava deitado em seu divã na pequena sala de estar. O aquecedor não estava bem regulado, e logo aquilo ali ficaria desagradavelmente quente. Ele não se importava. Antes banhado em suor do que na artificial aridez de sensações que se tornara sua vida. Ele colocara uma bolsa de gelo na fronte para ajudar a suportar a temperatura morna. O sensor de movimento disparou. Havia alguém na sua porta para falar com ele. O monitor no alto à esquerda revelou um indivíduo em trajes executivos e cabelo impecável. O scan de retina identificou-o como "Jake Priestly, headhunter".


"Será a polícia? O que foi que eu fiz dessa vez?" Lipton levantou-se e foi abrir a porta, destravando os inúmeros alarmes. Velhos hábitos da Nova Terra, pois aqui em Marte não havia crimes.


– John Lipton? Meu nome é Jake Priestly. Sou headhunter da Qingdao-Mariel Farmacêutica. Prazer em conhecê-lo.


– Prazer! Quer entrar? Venha por aqui. Esta é a sala de visitas. Sente-se. Aceita um chá gelado? Um suco? Talvez um Scotch? - Lipton agia como autômato, recitando frases de praxe.


– Obrigado! Talvez água.


– Sempre o melhor, hein? Tudo bem.


Lipton foi até o armário embutido e retirou uma dentre várias garrafinhas cuidadosamente arrumadas no depósito. Abriu a garrafinha e serviu em uma das taças sintéticas transparentes que ficavam acondicionadas no cabinete do minibar. Priestly aceitou e bebeu com prazer. Água pura era um ítem caro naqueles dias.


Após servir-se de Scotch, Lipton deu uma boa olhada no executivo da companhia farmacêutica e resolveu deslindar logo o assunto.


– Pois bem, o que a Qingdao quer comigo?


– Qingdao-Mariel. A antiga Qingdao não existe mais. Não preciso lhe falar da Antiga Mariel, não? Sua fama a suplanta. Após a fusão dessas duas grandes companhias ...


– Desculpe-me, mas o que a Qingdao-Mariel quer comigo, Senhor Priestly?


– Precisamos de um cirurgião geral para nossa nova expedição a Titã. Posso lhe dar os detalhes se estiver interessado em ouvir.


– Não estou interessado.


– Pagamos bem.


– Não preciso de seu dinheiro.


– Que tal então saber que a vida de centenas de colonos depende de sua presença em nossa nave estelar?


– Estarão melhor sem mim.


– Se o problema é seu contrato de trabalho em Nova Terra ...


– Não é.


– Vejo que está decidido em recusar minha proposta de trabalho.


– Ah... Finalmente entendeu!


– Entendi.


– Então, já que nos entendemos, acho que você já pode voltar a sua lista e ir atrás do próximo médico, Senhor Headhunter.


– Sim. É o que pretendo fazer. Se me permite uma palavra final, Senhor Lipton...


– Fale!


– Nós da Qingdao-Mariel participamos de redes sociais, e atualizamos continuamente nossos bancos de dados. Sabemos de sua situação financeira e de sua reputação.


Lipton caiu na gargalhada.


–É muito encorajador que você consiga rir da própria situação profissional e pes...


Antes que Priestly conseguisse terminar a frase, Lipton já estava com a mão em seu pescoço e o rosto a poucos centímetros do outro homem.


– Cale a boca. Se eu rio ou não da minha situação, não é da conta da maldita Qingdao e nem da fudida Mariel. Minha vida pessoal não é da sua conta, Senhor Priestly. Eu vou soltar sua garganta e o Senhor vai tirar seus fundilhos do meu apartamento, imediatamente.


Ao ser solto, Priestly controlou a própria raiva e deu um último olhar gélido em Lipton, antes de sair sem dizer palavra. Lipton ficou observando a porta fechada. Bebeu mais um gole de Scotch e se dirigiu à varanda em forma de ôvo transparente, de seu apartamento. Arriou-se no chão e ficou admirando a paisagem vermelha para além dos limites da redoma da cidade terráquea em Marte.


2.


Lembranças.


–Dr. Lipton, por favor, aqui. Esta paciente está com sintomas de apendicite. Ela não está nada bem.


A enfermeira jovem e preocupada o guiou pela mão até a mulher deitada em cama hospitalar, em meio ao caos da enfermaria da base lunar. Lipton pegou rapidamente o aparelho acoplado a cama da paciente e colocou-o sobre o peito dela. A máquina acendeu diversas luzes amarelas e disparou facho de luz logo acima, de uns 80 cm. A luz assumiu a forma holográfica da paciente em 3D. As partes que apresentavam disfunção tingiam-se em vermelho. Justo o abdomen. ele apertou outro botão e o abdomen holográfico da paciente expandiu-se até concentrar-se em seu apêndice, que mostrava grande área inflamada.


– Prepare a sala de cirurgia. Usarei os nano-robôs. - Lipton ordenou à enfermeira.


– Dr. eu... eu não tenho crédito comercial. Tive que usar tudo para montar nossa fazenda. Não tenho como pagar a cirurgia. - A mulher doente se manifestou.


– Não importa, você precisa ser operada e o será. Enfermeira, faça o que lhe disse.


– Dr. Lipton, a sala de cirurgia abre automaticamente, somente se a paciente estiver sem débitos.


– Use meu crédito então. - Lipton exasperou-se.


– Não posso, Doutor. É contra o regulamento, se eu ultilizasse seu crédito para uma cirurgia, acabaria por despachá-lo para a Nova Terra.


– Essa mulher precisa de uma cirurgia de urgência. Não posso simplesmente ficar de braços cruzados.


– Ela será despachada para Nova Terra, para o atendimento a indigentes. O próximo vôo parte em meia hora.


Lipton ficou em pé, impotente, ao lado da mulher em agonia.


Tempo Presente.


Lipton levantou-se da varanda e entrou no apartamento. Decidiu finalmente regular o termostato para gelar o ambiente. Pegou uma garrafa de Scotch e bebeu direto do gargalo. Foi até um baú a um canto e escolheu um pendrive que conectou no receptor universal da TV. Uma parede inteira se iluminou e deu lugar a imagens de um show na Nova Terra. Uma cantora negra e popular deu início a um show performático em que brincou com a voz, atingindo notas altas e impossíveis.


Lipton não prestou atenção às imagens, apenas escutou os sons reverberarem na sua pequena sala de estar. Deitou-se no chão e bebeu de quando em vez o Scotch, até que seus olhos se fecharam, bêbado.


Longe dali, Priestly se acomodou em seu quarto de hotel, o melhor em termos marcianos. Uma kitchenete se comparado com sua mansão na Nova Terra. Ele desfez os cintos de sua indumentária e retirou a gravata, adorno arcaico do século passado, mais ainda de bom tom, se você queria passar uma imagem clássica e sóbria. Ele se sentou na confortável poltrona, dando vez a que uma banqueta fosse automaticamente empurrada pela poltrona, para descanso de seus pés.


Naquele dia ele não tivera sorte. Lipton fora um troglodita ao recusar sua proposta de trabalho. Os outros dois médicos marcianos também recusaram a proposta. Queriam ainda viver mais alguns anos, como lhe disseram, como se a expedição a Titã fosse morte certa. Bem, ele não podia culpá-los, depois do que havia saído nas redes sociais, com imagens holográficas dos corpos dos colonos mortos, devido à queda da colônia flutuante na superfície da lua de Saturno. As pessoas se esqueciam que acidentes aconteciam mesmo na Nova Terra, e que depois daquele acidente tudo havia ficado mais seguro.


Ele mesmo estava botando a vida em risco, por falar nisso, mas se ele queria ter crédito suficiente para poder ter um filho geneticamente aperfeiçoado, tinha que trabalhar duro, e aí se incluía os planos da Qingdao-Mariel. Seu único problema é que ele ainda precisava de um cirurgião.


Por que Lipton teimava em dizer não? Todos sabiam que ele estava em desgraça depois dos recentes erros médicos, e tinha gente dizendo que os sinais da Síndrome de Burnout eram visíveis. Ao final das contas ele é quem deveria estar recusando Lipton, por sua reputação manchada e os escândalos nas redes sociais. Infelizmente ele estava sem opções.


Tentou mais uma vez uma video-chamada. Lipton não atendeu. Enviou mensagens. Não houve aviso de recebimento. O outro homem era um ser irracional. Meteu-se naquele apartamento como um casulo e não se comunicava com o meio exterior. Não havia jeito, teria que voltar para lá. Ainda havia uma carta na manga.


3.


Durante seu deslocamento para o apartamento de Lipton, um incidente ocorreu. Uma chuva de meteoros penetrou na órbita de Marte. Os controladores dos satélites de defesa já estavam acionando as armas de destruição em direção aos meteoros, para que não atingissem a superfície marciana. No mesmo instante, uma passeata contra a exploração interplanetária chegou às portas do quartel-general da Defesa Marciana. O número de manifestantes era expressivo, o que levou ao acionamento da brigada de polícia marciana. Eles chegaram usando armas estonteantes e gás paralisante. Isso enfureceu a multidão que reagiu com pedras e escudos. Acabaram invadindo o quartel-general e chegaram à sala de controladores. A balbúrdia e depredação que se seguiu atrapalhou o trabalho de defesa do planeta. O resultado foi que alguns meteoros atingiram a superfície marciana.


Uma onda de choque atingiu a cidade terráquea e fez a redoma de proteção tremular. O pânico tomou conta da população que invadiu edifícios na tentativa de se proteger, caso a redoma fosse destruída. O táxi magnetizado de Priestley sofreu um acidente e capotou, ao ser atingido por outro veículo. Ele acordou alguns minutos depois com um ferimento no ombro e um calombo na testa. Ele conseguiu sair com muita dificuldade. Ao seu redor o pânico e o caos imperava, com pessoas gritando e chorando. Vários acidentes por colisão de veículos, alguns saques e brigas no meio da via pública. Alguns repórteres e cinegrafista gravavam tudo para as redes sociais, e não se via a presença da polícia ou ambulâncias.


Ele andou a esmo, perplexo e impotente. Seus pensamentos eram turvos, suas prioridades eram ilógicas. Ele se lembrava de Titã e de Lipton e que ele era seu alvo. Outras coisas eram confusas. Ele resolveu apegar-se ao que considerava importante. Pegou seu GPS e digitou Lipton. O caminho lhe foi revelado.


Lipton acordou com o barulho do sensor de movimento disparando. A dor de cabeça lhe deu náuseas. Olhou o monitor da porta e reconheceu Priestly. "Que diabos!". Ele não tinha intenção de falar com aquele homem. Poderia simplesmente desligar o sensor e o monitor, e fingir que o outro homem não existia, mas aí um olhar mais atento mostrou que Priestly não estava bem. Havia sangue no ombro do outro homem. Lipton abriu a porta.


– Lipton! Que bom que o encontrei. Eu tinha que vir aqui... - Priestly desmaiou.


Acordou muito tempo depois. Estava em um dormitório desconhecido, com bandagens em sua cabeça. Tentou mover-se, mais havia um aparelho conectado ao seu braço, imobilizando-o e conectando-o com a cama. Pensou em gritar, mas se ele estava em um hospital seria melhor que se comportasse. Como se tivesse ouvido um chamado, a porta se abriu e Lipton entrou.


– Como está? Você não estava bem e como a cidade está um caos, achei melhor mantê-lo aqui.


– Você cuidou de mim? Aqui?


– Por que o espanto? Não era você quem queria me levar para Titã?


– Sim, mas ... eu estou confuso.


– Relaxe. Não houve nenhuma complicação séria. Era apenas uma concussão. E seu braço sofreu uma luxação. Vai precisar usar este aparelho por algum tempo.


– O que aconteceu afinal de contas? Estava tudo ... um pandemônio.


– Lei de Murphy. O espírito humano é pródigo em esculhambar com tudo.


– Dá pra ser mais claro?


– Uma chuva de meteoros atingiu Marte. O choque do impacto atingiu a cidade e afetou a redoma. O povo entrou em pânico. O resto você já sabe.


– Como ... como a redoma ainda está intacta? Quero dizer, deveríamos estar mortos.


– Tivemos sorte, mas a cidade está sob lei marcial.


– Isso quer dizer que estou preso aqui.


– Sim! Para o bem e para o mal.


– Você sabe, vou precisar de um relatório de seu ... tratamento médico.


Lipton o olhou interessado e sorriu.


– Não te entendo. Você queria me levar pra Titã, para tratar de seus queridos colonos, embora desdenhe de minha competência médica. Isso é contraditório, Senhor Headhunter.


– Eu acho infantil que continue me chamando de headhunter. Chame-me Priestly. E ... não devia ficar mortificado, depois de tudo que saiu nas redes sociais ...


– A sua ética me deixa pasmo. Sou bom o suficiente pra seus colonos de Saturno, mas não para tratar sua nobre carcaça. Não é isso?


– Deixe disso. Você é um bom médico. E é bom o suficiente para meus colonos e para mim também. Afinal, eu também vou para Titã.


Lipton ficou calado. Apenas observava o outro homem.


– É o que você ouviu. Eu também vou pra Titã. Deixarei minha família, meu emprego, conforto, amigos e... virarei seu paciente. - Priestly deu um meio sorriso.


– Você sabe que a vida em Titã é perigosa? Ouvi dizer que as cidades flutuantes despencam.


– Eu também ouvi dizer. - Priestly riu.


– Acho que você não conseguiu nenhum cirurgião, não é mesmo?


O outro sacudiu a cabeça.


– Foi o que pensei. Você deve saber que ... estou de licença há seis meses. Burnout, é o que dizem.


– Por mim, você parece bem disposto para o trabalho.


Lipton sorriu.


– Eu posso... posso aceitar sua proposta de trabalho, até que consiga outro cirurgião para me substituir.


– Não posso garantir isso. A próxima missão para Titã pode demorar anos.


– A menos que ocorra outro acidente.


– Aí todos nós morreremos.


Ambos os homens riram.


4.


A viagem para Titã demorou alguns anos, durante a qual todos permaneceram em animação suspensa, programada para serem reanimados quando atingissem a lua de Saturno. Ao chegarem em Titã, foram recepcionados com festas e encaminhados para seus setores de trabalho. Como já se conhecessem de Marte e não houvesse muita vida social em Titã, passaram a se encontrar diariamente após o turno de trabalho.


Descobriram afinidades e qualidades. Bebiam juntos e contavam lembranças de casa. Tornaram-se parceiros de esportes, e compartilhavam horas de lazer. Nas reuniões comunitárias sempre sentavam-se próximos e trocavam idéias para emitirem opiniões ou pareceres. Não é que fossem muito parecidos, longe disso. Eram diferentes tanto fisica quanto intelectualmente. Quase sempre preferiam coisas opostas, ou reagiam diversamente, mas de comum acordo, um dos dois sempre voltava atrás e concordava com o que o outro decidira. Isso era para aguentar o exílio do lar, ou era isso que diziam para si mesmos. O fato é que se tornaram inseparáveis.


Quando Priestly certa noite deu o primeiro passo e beijou Lipton, o outro não riu e não o repudiou. Ao contrário, parecia bem alerta e sério.


– Tem certeza disso Priestly?


– Hum-hum.


– Eu não acho que conseguiremos voltar a ser amigos depois que quebrarmos a cara e descobrirmos que fizemos uma burrada.


– Você e eu não conseguimos dar dois passos sem ter o outro ao lado. O que pode dar errado?


– Tudo! Você tem mulher na Nova Terra. Vocês estão economizando para ter um filho, conforme me contou. Quer dar adeus a tudo isso?


Priestly passou as mãos nos cabelos lisos. Respirou fundo. Olhou seriamente para Lipton.


– Por você eu dou adeus a tudo isso e todo mundo. Se eu puder ficar com você, então eu não quero mais ninguém.


– Não tem volta, você está ciente disso? - Lipton perguntou sério, enquanto colocava as mãos nos quadris do outro.


– Sem volta! Eu não quero voltar, Lipton, eu só quero você...


Priestly foi calado pelo outro homem que o beijou ardentemente. Ambos passaram a se tocar e apertar nos braços um do outro, até que ouviram alguém tossir. Aos poucos se acalmaram e se afastaram.


Dali em diante passaram a ser mais serenos e calmos, como se o amor tornasse seus corações mais leves. As pessoas se acostumaram a vê-los sempre de mãos dadas, falando baixinho e esquivando-se de comparecer a festas e happy hours, em favor de terem mais tempo para se conhecer intimamente.


Priestly pediu divórcio de sua esposa na Nova Terra, via chamada de video. Ela recebeu bem a notícia do rompimento. A perspectiva de ficar dez anos longe do marido pesou em sua decisão. Lipton não se envolveu em outros processos administrativos, nem criou caso com seus superiores, como sempre fizera no passado. As pessoas diziam que ele deveria estar apaixonado, pois finalmente conformara-se com o modo como as coisas funcionavam.


Eles pediram permissão para se casar e foram festejados em seu círculo de amizades, sendo que as pessoas teimavam em constrangê-los perguntando quem era a mulher da relação. Os homens ficavam sem graça e desconversavam, até que um dia, Lipton desfez a dúvida ao pedir permissão para sofrer modificações cirúrgicas que o habilitasse a conceber e dar a luz. Isso calou a boca dos fofoqueiros por um tempo, até que eles começaram a discutir sobre com quem o bebê recém-nascido se parecia.


E todos viveram felizes ... até terminar o período de 10 anos de sua missão em Titã. Então eles voltaram para Nova Terra e se candidataram para novas viagens. Sabe como é, Titã sempre moraria em seus corações como o berço de sua paixão, e a terra natal do pequeno Phillip Lipton-Priestly.


E nunca mais houve notícia de acidentes fatais em Titã.


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