Encrenqueiro escrita por slytherina


Capítulo 1
Ever after ...


Notas iniciais do capítulo

Desafio de Abril. Tema: Passado. Ano: 1922.



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1.


Em 1922, Los Angeles era efervescente. Não só a badalação das casas noturnas e festas particulares que eram a marca registrada da nascente indústria cinematográfica, mas também a balbúrdia das construções públicas, urbanização e sanitarização de boa parte da cidade. Se a América era um grande sundae, Los Angeles era a cereja do topo. Isso atraia uma grande leva de imigrantes para aquela cidade.


Tudo ali respirava prosperidade e progresso. O dinheiro fluía aos borbotões. E daí que o interior estivesse enfrentando problemas de safra e queda dos lucros? Que viessem para a capital do cinema para ficarem ricos. Este era um pensamento corrente na cidade. O presidente Warren Harding estava certo: antes abrir as portas para o capitalismo do que tentar salvaguardar um sistema arcaico de coisas. As mudanças eram bem vindas, afinal estávamos no século XX.


É neste estado de espírito que iremos encontrar Jensen Teague Smith, rico herdeiro de uma velha fortuna da cidade. Ele fora educado em colégio interno de elite, em outro estado, mas fora trazido para casa tão logo concluiu os estudos. Seus pais agora pleiteavam uma vaga para ele em Yale, e para isso deveriam despender uma boa soma em doação para dita universidade. Afinal o primogênto valia todo o esforço e investimento em seu futuro.


Uma vez, Jensen foi convidado para uma das inúmeras festas de seus amigos e conhecidos. Pessoas escolhidas a dedo por seus próprios pais. Estava conversando amenidades e tomando champagne a um canto do enorme salão, com seus antigos amigos, quando um grupo irrompeu fazendo alvoroço, pelas portas do jardim de inverno. Isso atraiu a atenção de todos que censuraram com olhares e desdém, mas ninguém ousou verbalizar reprimendas.


Eram alguns amigos e alguns deconhecidos amigos de seus amigos. Estavam rindo alto, e um deles, com voz desagradavelmente grave, vivia contando a mesma piada jocosa, fazendo os outros rirem com as mãos na barriga, quase caindo uns sobre os outros. Pareciam inebriados ou sob efeito de gás hilariante, tão loucos e irracionais se comportavam.


"Gente sem classe." Jensen pensou.


Ele percebeu um dentre o gupo de "macacos selvagens", que se destacava pela beleza incomum. Era um rapaz de rosto imberbe, magro e comprido, com roupas curtas que não acompanharam seu crescimento. Seu cabelo estava cortado, mas de tanto fazer galhofas, debruçando-se sobre os outros e sendo empurrado, ficou descabelado. Jensen virou o rosto enquanto balançava a cabeça desgostoso. Seus pais não tolerariam esse tipo de coisa, se aqui estivessem.


De repente, a "horda de bárbaros" chegou até ele.


"Jensen, quero lhe apresentar meus amigos." William Farnsworth o abordou.


"Sim?" A despeito de seu desconforto, Jensen se mostrou educado e afável, chegando inclusive a sorrir.


"Estes são Bert, Rachel, Wilson, Katherine e Jared."


"Prazer em conhecê-los." Jensen apertou a mão de cada um como um cavalheiro que era. Inclusive a de Jared, o calça curtas descabelado.


O outro reagiu lhe dando um sorriso cheio de dentes, perfeitos e nacarados. Isso desconcertou Jensen, que esperava um jeca, bicho do mato, com os dentes tortos e careados. Sabe como é, para combinar com o perfil de bárbaros.


O descabelado de dentes perfeitos pareceu ler seu pensamento, ele desviou o olhar e cochichou algo no ouvido do companheiro... qual era o nome mesmo? Bem, os dois se afastaram e foram retomar sua galhofa no jardim de inverno. Eram mal educados e inconvenientes.


Depois dessa primeira impressão, Jensen jurou a si mesmo que nunca mais compareceria a festas nesta residência. Ao se retirar em seu carro Duesenberg, último tipo, ainda vislumbrou a trupe de fanfarrões. Agora todos riam e empurravam uns aos outros na grande piscina nos terrenos distantes. Por um momento ele teve pena dos donos daquela mansão.


"Dize-me com quem te banqueteias e eu te direi se és uma vergonha para a sociedade ou uma pessoa de classe e distinção. Isso nunca fez mais sentido do que agora. Dia virá em que tais pessoas serão banidas da convivência em sociedade, ou então este comportamento errático e devasso virará regra e ninguém mais se distinguirá da escória." Estes eram os pensamentos de Jensen, feliz por ter sido criado com o que considerava valores e moral elevada.


2.


Jared Forrester Wesson era um rapaz sortudo. Só isso explicaria o fato de que tudo na sua vida ter acontecido tão rápido e sem esforço. Seus pais sempre viveram no campo e tiraram sua subsistência da criação de cabras e da plantação de algodão. Nem sempre a vida foi um mar de rosas, e com o passar do tempo a situação dos pequenos agricultores foi ficando mais difícil.


Quando o governo resolveu expandir a malha viária e construir uma rodovia nas terras de seus pais, a indenização foi generosa. Isso, e o fato de terem descoberto petróleo durante a desapropriação, contribuiu e muito na boa aventurança de sua família. De pobres lavradores a novo ricos nadando em milhares de dólares foi um pulo.


Antes, sua família nunca se preocupara com seu futuro ou seu próprio destino. Agora viviam comprando propriedades, terras e imóveis aqui e acolá. Seus pais sabiam que dinheiro não dá em árvores, mas eles sabiam que o melhor investimento era a terra. Esta não desvalorizava, sempre o acolheria, e você sempre poderia legá-la a seus descendentes.


Jared sabia que seu futuro era ser um fazendeiro, e que uma instrução convencional pouco influiria nessa equação, mas este era um capricho de seus pais, e ele concordou sem pestanejar. Nada, entretanto, o impedia de se divertir enquanto estivesse cumprindo um desejo familiar. Então, as festas e noitadas com os amigos eram de lei.


Por vezes ele perdia algumas aulas no colégio, por conta de ressaca, mas ele compensava esses deslizes com o estudo redobrado, para que não ficasse muito atrasado em relação a sua classe. Entre seus amigos ele tinha fama de "nerd com um parafuso solto", visto que se matava de estudar, para cair na gandaia na primeira chance que aparecia.


Numa dessas escapadas regadas a entorpecentes e álcool, ele foi parar em uma mansão de um amigo do amigo de alguém, em que mal conheciam os anfitriões, ou os convidados. Todos estavam vestidos comportadamente, posando como manequins de propaganda, ou como se declamassem em pomposos saraus. Era tudo tão ridículo e antiquado que eles tiveram que incrementar um pouco as coisas. Tanto fizeram que todos, incluindo aí os donos da casa, foram parar na piscina. Foi um dia memorável.


Outra coisa que ele lembraria desse dia foi a fina estampa de um janota, engomadinho, com ares superiores, como se fosse um lorde europeu, último sobrevivente do destino dos Romanov, que tivera o desprazer de conhecer sua turma de amigos. Aquele homem lhe dera engulhos. Tivera vontade de vomitar naquela roupa certinha sem um fio fora do lugar. Ou que sua amiga Rachel tivesse pousado no colo daquele almofadinha, só pra lhe manchar o colarinho de batom carmim.


Jared passava mais tempo do que gostaria imaginando maneiras de se vingar daquele tipo. Finalmente chegou à conclusão de que aquilo não era saudável. Sujeitos como aquele não tinham muito futuro na era moderna que se avizinhava. É claro, o homem chamara sua atenção por outro motivo também: era muito bonito. Dono de uma beleza clássica, encantadora e estonteante, com olhos verdes como a água do mar. Uma beldade, realmente. Pena ser um esnobe.


A vida era muito curta. Tudo passava rápido demais. Ele precisava aproveitar o quinhão de prazeres que lhe cabia. Um dia ele estaria velho, gordo e careca, sentado em uma cadeira de balanço na varanda de sua fazenda, vendo os netos correndo atrás de cabras, e as garotas sulistas com pouca roupa colhendo sacas de algodão. Ele se sujaria todo com limonada, enquanto o leque vagabundo comprado na quermesse seria insuficiente para amainar o calor do verão.


Neste dia ele se lembraria de sua mocidade, pulando em piscinas de grã-finos, completamente vestido. Entrando em seu dormitório no colegial, pela janela do segundo andar. Bêbado e dopado de tanto inalar narguilés e gás do riso. Comendo uvas verdes dos lábios de uma angelical novata, sentada em seu colo, ou sendo chupado por um atleta veterano. Nesses dias ele se lembraria de que de fato vivera intensamente.


Talvez porque no dia seguinte teria uma missa de sétimo dia em homenagem a algum figurão importante em seu colégio, e para o que ele não dava a mínima importância, ou talvez simplesmente porque ele queria se embebedar como um gambá, e acordar ao meio-dia em Long Beach, Jared resolveu ir para uma boate da moda. Um local tão quente, que todos os milionários frequentavam assiduamente.


Sua turma também compareceu. Como já fossem conhecidos pelo clima anarquista e debochado, resolveram se comportar corretamente naquela noite. Vestiram suas melhores roupas e lustraram seus melhores sapatos. Até as moças pareciam ladies e não melindrosas doidivanas. Isso iria perdurar até o terceiro drink. Depois disso ninguém seria de ninguém, e a vaca iria para o brejo.


Lá pela meia-noite o encanto se quebrou. O dixieland corria solto. O pessoal tomava cerveja clandestina a preços abusivos, e as moças e rapazes perderam suas inibições. Não era incomum acharem casais do mesmo gênero em carícias mais ousadas ou perdendo-se nos lábios uns dos outros.


3.


Jared estava se refazendo de uma dessas sessões de amassos calientes, indo atrás de mais cerveja. Ele tomou um elevador para o andar térreo daquele clube de alta classe, quando deu de cara com uma persona não mui grata. O engomadinho do outro dia. Na verdade o engomadinho de belíssimos olhos verdes.


O choque foi tão grande que ele se esqueceu de dar passagem para o outro homem, só saindo de seu estado de placidez quando a porta do elevador se fechou.


"Desculpe-me! Eu... eu sinto muito! Você iria ficar nesse andar, não é?"


"Não... não se incomode. Eu posso descer e voltar a subir. Não é o fim do mundo."


"E se fosse? O que você faria?"


"Hum?"


"Se hoje fosse o dia do juízo final, o fim do mundo como nós o conhecemos, o que... o que você faria? Estou curioso."


Jensen o olhou de alto a baixo. Era um rapaz ainda, no máximo 18 anos, não tão mais novo do que ele mesmo. Por que aquele rapaz o irritava tanto?


"Eu me recuso a conjecturar sobre possibilidades irrelevantes e fantasiosas. Isso é uma frivolidade."


Jared ficou pasmo.


"Você se recusa a pensar no futuro, mas gasta os neurônios para construir uma sentença cientificamente perfeita para dizer que não quer pensar em nada. Para mim isso é um contrassenso."


"Desculpe-me, mas acho que eu tenho direito de gastar meus neurônios com os motivos necessários e não pelo que você julgue importante."


"Mas é claro que você tem esse direito, colega. Todos têm o direito de fazer o que lhes manda a consciência e suas vontades."


"Então ... então por que estamos discutindo?"


"Sei lá, me diz você porque."


Jensen estava tão irritado e embaraçado que riu nervosamente. Jared sorriu também. Um daqueles seus sorrisos nacarados que mais pareciam jóias brilhantes. Jensen mais uma vez ficou encarando fascinado o sorriso do outro.


"Sabe que agora conversando com você, eu ... eu até acho que você é uma boa pessoa. Não parece mais tão pomposo e enfatuado como antes."


"Como disse?"


"Alguém já deve ter lhe falado isso antes, não? Você é sempre tão sério e aristocrático que nem parece uma pessoa normal. Nunca lhe disseram isso?"


Jensen sorriu e balançou a cabeça, não acreditando no que ouvia. Como aquele tipinho se atrevia?


"Como... como você pode me julgar? Você nem me conhece. Nunca nos falamos antes ... Quem você pensa que é pra me falar assim desse jeito?"


"Desculpe! Acho que cruzei uma linha não demarcada. Só um verdadeiro amigo deveria lhe falar essas verdades na cara, e nós nem somos amigos. Na verdade nem nos apresentamos corretamente. Como vai? Meu nome é Jared Wesson. Segundanista do Colégio do Sul da Califórnia. Desempregado e viciado na vida. Prazer em conhecê-lo." Jared estendeu a mão para o outro.


A contragosto, Jensen apertou a mão do rapaz, pois fora isso que sua mãe sempre lhe ensinou a fazer, por delicadeza e educação, mas seus verdadeiros sentimentos estavam bem distantes daquilo.


Ele percebeu que Jared o olhava inquisitivamente. Ele se esquecera de apresentar-se como o outro fizera.


"Desculpe-me! Jensen Smith. Calouro de Yale. Sem vícios. Prazer em conhecê-lo."


"Pronto, não foi tão difícil. Agora que nos conhecemos, podemos até nos tornarmos amigos. A menos que você tenha outra coisa em mente."


O que? Jensen engoliu em seco. Ele não podia acreditar que aquele rapazinho de colegial estivesse flertando com ele. Instintivamente cruzou os braços. Jared percebeu a posição defensiva e deu um passo para trás. Ficou calado e deu graças a Deus quando o elevador abriu as portas. Saiu sem dizer palavra.


Após alguns minutos Jared resolveu esquecer o incidente do elevador. Certamente Jensen valeu o esforço da paquera, mas ele não podia fazer nada se o cara era um tapado que não curtia relações entre o mesmo sexo. Melhor esquecê-lo com o "Valentino" da suíte imperial, que estava tão interessado nele. Seus colegas do colégio já estavam bem arrumados e com seus respectivos pares, ele não iria dar uma de azarão e passar a noite sem companhia. Foda-se Jensen "metido-a-besta" Smith.


Jensen ainda estava se sentindo aéreo e desligado. Depois que Jared se retirara do elevador, ele ficara com a impressão de que ganhara uma disputa. Pena que parecia que o prêmio fora entregue a Jared, deixando-o com uma sensação de vazio e incompletude. Passara a última meia hora dizendo a si mesmo o quanto ele e sua família eram gente decente, íntegra, honesta, perfeita e o quanto ele era um cavalheiro, com linha de ascendência direta aos antigos reis francos.


Por que então cargas d'água estava agora sozinho e triste em uma festa cheia de gente jovem e bonita? Será que ele era assim tão ... enfatuado? Ele não era assim, e ele iria mostrar para aquele moleque que merecia respeito. Dirigiu-se novamente ao elevador para procurar por Jared. Deu sorte de encontrá-lo assim que a porta abriu. Antes não tivesse tanta sorte assim. Jared estava num amasso lascivo com outro homem. Um sujeito com traços latinos.


4.


Primeiro Jensen ficou triste e sem ação. Depois ele ficou furioso. Avançou sobre o casal e arremesou o latino contra a parede. Ouviu gritos, mas não podia prestar atenção a isso no momento, pois o latino revidou e o atingiu com um soco potente. Tudo ficou preto e ele não viu mais nada.


Ao abrir os olhos viu o rosto de Jared sobre si. Ele segurava algo macio e gelado sobre sua face. Após alguns segundos ele percebeu que era bife cru. Eca!


"O que ... afaste-se de mim ... e tire esse bife da minha cara." Falou irritado.


"Ok, eu me afasto, mas você vai ter que se afastar também. Não adianta nada ficar com cara de poucos amigos e depois agredir meu amigo como se fosse um namorado traído. Isso é muito confuso."


"Eu não ... eu não sou seu namorado."


"Eu sei disso ... Por que você agrediu o "Valentino", então?"


"Eu não gosto ... eu não gosto de pouca vergonha."


"Cara, você já deu uma olhada nesse lugar? A única coisa que não tem aqui é vergonha. Talvez você devesse ter ido ao Bingo da igreja, sei lá."


Jensen se sentiu um idiota. Não sabia onde enfiar a cara. Aquilo parecia muito com uma crise de ciúmes de um namoradinho traído. E o pior, namoradinho de outro homem. Resolveu que a última coisa que ele queria naquele momento era ser ridicularizado, por isso fez a única coisa que lhe vinha martelando a cabeça na última hora. Agarrou Jared pelo colarinho e esfregou a boca na boca do outro homem.


Ao se afastarem, Jared estava tão surpreso quanto ele.


"Bem ... isso muda tudo. Que tal ... hã ... aperfeiçoarmos isso?" Jared perguntou com um sorriso. Dessa vez foi ele quem deu o primeiro passo e colou a boca na do outro.


Dessa vez a língua foi envolvida, provocando sensações não apropriadas para um macho viril da estirpe de Jensen. Ele viu estrelinhas. Ao se separarem novamente, Jensen ficou encabulado.


"Eu nunca ... eu nunca ..." Jensen abaixou a cabeça e tentou esconder o rubor que ele sentiu lhe queimar a face.


"Você nunca fez isso antes? Não tem problema. Eu posso guiá-lo nesse caminho. Nessa matéria sou autodidata."


Jensen sorriu. Ele ainda não se sentia bem ao lado de Jared. Esse rapaz era pura encrenca, mas não existia nenhuma outra pessoa no mundo que ele ansiasse mais a companhia do que a desse encrenqueiro.


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