Vínculo. escrita por Isadora Nardes


Capítulo 4
O riso de hiena.


Notas iniciais do capítulo

Hello! Aqui teremos mais sobre Marcela e Ethan, sobre a mãe dele sobre o luto. Ok? Ok.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/604008/chapter/4

3 meses depois.

Ethan descia as escadas, com os pés arrastando. Os braços pendiam ao lado do corpo. O rosto pálido, o cabelo desgrenhado e as roupas amarrotadas... Todos os detalhes para confirmar a depressão dele estavam presentes e confirmados.

Ele chegou até a sala, que brilhava de tão limpa. O cheiro de desinfetante fez Ethan se lembrar da nova empregada. E a nova empregada fez Ethan se lembrar do novo namorado de sua mãe.

Ethan franziu o nariz de desgosto.

Selma era a empregada que Rodrigo contratou. Era uma mulher branca, pálida, alta, magérrima, com olhos castanhos e uma voz que nunca passava de um murmúrio. Parecia um fantasma pela casa, e Ethan detestava aquilo, porque os únicos fantasmas que deviam ter ali eram de Marcela e dele próprio.

Nos três meses que se passaram, a mãe de Ethan parecia ter decidido que a melhor opção de luto era substituir a figura da filha pela de um homem. Mimava Rodrigo, seu novo namorado, como se fosse submissa a ele: lavava a roupa, cozinhava, aceitava a empregada, aceitava os mimos, regulava o chuveiro quente.

Ethan revirou os olhos quando viu a mãe na sala, passando a roupa de Rodrigo.

Rodrigo era um homem com cabelos marrons meio grisalhos, sempre perfeitamente penteados, com olhos azuis cintilantes e um rosto quadrado. Tinha uma postura sempre formal, e um nariz que podia ser a oitava maravilha do mundo, se não fosse tão feio. Era gerente de uma imobiliária, portanto era bastante metódico, quase um TOC. Parecia o típico homem que mulheres mal-amadas gostariam de se casar.

Ethan o detestava.

Mesmo antes da morte de Marcela, Ethan detestava várias coisas. Porém, após a catástrofe de três meses atrás, Ethan parecia ter atingido um novo nível de aborrecimento. Não conseguira chorar uma só lágrima, e talvez esse fosse o problema. Ele começara a sentir falta da irmã de um jeito diferente. Às vezes, ficava encarando o lugar na mesa onde Marcela costumava se sentar. Ocasionalmente se apoiava na parede da sala e ficava olhando para o controle da TV, esperando que a mão de Marcela fosse lá, catasse o controle e soltasse algum palavrão, como ela costumava fazer.

A mãe de Ethan (ou “Patricinha”, como Rodrigo costumava chamar, enjoativamente), adaptou-se rapidamente à rotina do namorado, convidando-o para morar com ela já no segundo mês de namoro. Era uma maneira patética de lidar com a morte de Marcela, mas Ethan não se preocupava com o que a mãe sentia ou não sentia.

Ethan arrastou os pés até a cozinha e abriu a geladeira. Antes da chegada de Rodrigo, a geladeira costumava ter refrigerante, alguns biscoitos, às vezes queijo, pedaços de pizza (que costumavam fazer aniversário), iogurte e, muito raramente, leite.

Agora, além de tudo isso, havia todos os tipos de cremes e de saladas, além de tortas e bolos feitos por Selma, em junção com sucos naturais (porque “Rodriguinho” não toma nada industrializado), frutas (porque “Rodriguinho” não come nada com agrotóxicos), e colírio (porque “Rodriguinho” tem que fazer higiene correta das lentes de contato).

Ethan achava “Rodriguinho” um viado.

De qualquer forma, ele pegou um refrigerante de dois litros e abriu. Não havia álcool naquela casa (porque “Rodriguinho” tinha problemas no fígado), e refrigerante era a coisa mais perto de álcool que Ethan ia beber até o dia seguinte.

Ele fechou a geladeira com o pé, pronto para voltar para seu quarto, mas a mãe o repreendeu:

–- Ethan! – ela gritou. Ele se virou. Ela havia encostado o ferro na camisa de Rodrigo. – O que eu disse sobre beber refrigerante direto da garrafa?

–- Sei lá – Ethan retrucou.

–- Não é pra fazer isso. É grosseria. E é anti-higiênico.

–- Mas só eu bebo essa merda.

–- Olhe o palavreado!

–- Mas é verdade.

Nesse momento, a porta fez um barulho e se abriu. Rodrigo entrou na sala. Vestia sua camisa verde com listras brancas, e uma gravata cinza-escura, da mesma cor da calça. Os sapatos, perfeitamente engraxados, quase refletiam os móveis de carvalho que Rodrigo havia mandado trocar.

–- Rodriguinho! – a mãe de Ethan gritou, levantando os braços e correndo até o namorado, que a abraçou. Ethan revirou os olhos, pronto para subir as escadas de volta ao quarto, quando Rodrigo chamou:

–- Ethan, o que é isso?

Ele olhou para a garrafa de refrigerante em sua mão.

–- Hum.... Coca.

–- Coca?

–- Fanta que não é.

Rodrigo largou a maleta do trabalho no sofá e foi até Ethan. Colocou as mãos nos ombros do garoto, e olhou fundo em seus olhos castanhos.

–- Ethan, meu rapaz... Vamos jantar. Largue isso.

Ethan fechou a garrafa e deixou sob o balcão, exausto demais pra discutir. Se jogou numa cadeira de jantar, fazendo um ruído. A mesa já estava posta, só faltava tirar o frango do forno. Aparentemente, Selma já cuidava daquilo.

A mãe de Ethan e Rodrigo de sentaram à mesa. Ethan ficou brincando com a salada, o que fazia sempre que não queria comer. Ele olhou para a mãe. A maneira de Ethan lidar com a perda de Marcela fora transformando-se num fantasma. Já a da mãe fora dar para todos os homens do universo até que gostasse o suficiente de um.

–- Rodriguinho, como foi no trabalho? – a mãe de Ethan perguntou.

–- Ah, tudo ótimo – Rodrigo disse. – Fechei negócio de um apartamento no São Francisco.

–- Era um bom apartamento?

–- Em parte. Havia um maconheiro no andar de baixo. Atrapalhava.

Ethan riu fracamente.

–- Maconheiros são legais – ele disse, sem tirar os olhos da alface que colocou entre os dedos. – Mais um maconheiro faz bem para o universo.

–- Ethan! – a mãe o repreendeu.

–- É verdade – Ethan retrucou. Enrolou, como um tubo, a alface que tinha entre os dedos, e colocou-a na ponta dos lábios. Puxou o ar entre os dentes, depois expirou lentamente. – Tã-dã.

–- Já chega – a mãe de Ethan levantou-se da cadeira, e bateu as mãos na mesa. Depois, apontou ameaçadoramente um dedo para Ethan. – Eu sei que você está represando a dor pela morte da sua irmã, mas faltar com respeito dessa maneira é inaceitável!

–- Sabe o que é inaceitável? – Ethan perguntou, mordiscando a alface, sem alterar sua expressão. – O fato de você achar que dar pra todo mundo vai aliviar a sua dor pela morte dela.

–- Tem razão, mas se fosse você...

–- Se fosse eu o quê?

–- Se fosse você, e não ela, doeria menos.

Ethan parou de mordiscar a alface e deixou-a cair no prato.

Ele esperava qualquer comentário.

Menos aquele.

Levantou-se, lutando para manter a expressão neutra. Ou, o mais neutra que conseguiu. Mas sentiu seu rosto vermelho e seus olhos ardentes. Já não sentia fome, nem sede, nem raiva.

Não sentia nada além da dor.

–- Ethan – Rodrigo chamou. Ethan ignorou; não queria ficar no mesmo ambiente que o viado.

Ao invés de subir as escadas, ele abriu a porta e depois pulou pra fora de cada, inspirando o ar frio da noite e fechando a porta atrás de si. Com tudo ocorrendo numa fração de segundo, ele não parou pra pensar em consequências.

Enfiou as mãos nos bolsos do jeans. Sem casaco, sem chaves, nem celular, nem dinheiro. Apenas ele mesmo.

Logo se viu perto do bosque do chalé de Clarisse, mas contornou. Não ia incomodá-la aquela hora. Tudo o que queria era que seus pensamentos ficassem onde estavam, plantados, e que ele pudesse correr pra longe deles na maior velocidade possível.

Mas os pensamentos permaneceram, e Ethan apenas ia balançando a cabeça em negação.

Ficara tão próximo do corpo de Marcela, ouvindo coisas tão frias, sabendo que ela estava ali embaixo e que nunca mais ia xingar ele, que não parecia nem certo ficar vivo. Talvez estivesse exagerando, porque nunca fora muito próximo da irmã, mas ainda assim doía.

Era uma ausência sentida.

Ethan sentiu seu rosto ficando quente. Olhou pra frente. Não havia ninguém na rua, exceto por um cachorro ou dois. Olhou para trás. Talvez realmente fosse mais fácil voltar e entrar na casa de Clarisse. Talvez amanhecer lá.

Balançou a cabeça. Incomodá-la naquela hora não ia ajudar muito, se bem que a coisa mais incrível que ela provavelmente ia fazer de noite era transar com alguém. Mesmo assim, é uma coisa divertida, e Ethan não ia estragar a diversão dela por causa da própria dor.

Ethan andou e andou, sempre seguindo em frente, olhando para tudo sem ver realmente, até que seus membros desabaram de exaustão. Ele se arrastou pela calçada, encostando-se numa árvore e fechando os olhos. Percebeu que estava realmente muito frio. Sua pele parecia não existir, e ele tremia até os ossos.

Passou as mãos no cabelo encaracolado, espetando-o em posições estranhas. Aquilo pareceu avivar uma lembrança.

* * *

Ethan estava digitando no celular, falando com Clarisse.

“... E daí ele disse que ia pgar as pílulas com o Ayr, mas eu não consegui mais falar com ele” digitava Clarisse.

“Oq a gnt vai fzer?”

“Slá”.

“Eu posso fazer ele arranjar as pílulas, ou outra coisa”.

“Cm o Leo ou o Ayr?”

“Ayr n tem culpa”.

“Leo então”.

“Blz”.

Ethan enfiou o celular no bolso, decidido a terminar a conversa depois. Sua mãe havia dito para ele pegar Marcela no colégio, e Ethan revirara os olhos, mas ali estava ele. Olhou elo portão.

Um guarda negro, alto e forte tirava uma garotinha loura, de olhos azuis acastanhados de dentro de um carro cinza.

–- Agora é hora de ir pra escola, Patrícia – o guarda dizia, carregando a mochila de rodinhas da garota.

–- “Num quelo ir pá cola” – ela reclamava.

Ethan vasculhou o pátio com os olhos. Havia uma grande extensão de grama, e uma ruela por onde vans e carros passavam, pegando e levando alunos, pra fora e pra dentro. Olhando melhor, Ethan avistou Marcela. Ela tinha traços fortes, lábios grandes pintados de vermelho, mas o que mais chamava a atenção era seu cabelo. Preto, brilhante, cacheado. Cada mechada caía, em forma de caracol, pelas costas dela. O cabelo estava repuxado de um lado, com fios caindo-lhe na face.

–- Ei – Ethan gritou. Marcela olhou pra ele, e Ethan percebeu imediatamente que algo estava errado. Havia um grupo de garotas em volta dela, como galinhas em volta de uma espiga de milho.

Marcela passou as mãos nos olhos, depois as limpou na blusa do colégio. Por baixo, usava uma blusa florida sem alças. Uma leggin preta combinava com os tênis V.I.P., e com um casaco xadrez verde, azul e branco amarrado na cintura. Marcela disse algo para as amigas, depois foi-se na direção de Ethan.

Quando ela se aproximou, Ethan percebeu o que estava errado. Ela tinha olhos vermelhos e meio inchados, brilhantes. Mas era um brilho errado, um brilho que não devia estar ali.

–- Você tá chorando? – Ethan perguntou. Marcela virou o rosto pra ele, e com isso algumas mechas de seu cabelo se mexeram.

–- Algum problema com isso? – Marcela retrucou, limpando novamente os olhos.

–- O que foi que aconteceu?

–- Nada! – Marcela retrucou. – Absolutamente nada!

–- Você tá chorando por nada?

–- To, porra, to!

Ethan andou em silêncio ao lado dela. Os lábios dela tremeram e ela vacilou. Lágrimas correram-lhe pela face, e Marcela concentrou-se em limpá-las. Mas Ethan não deixou passar.

–- Foi algum garoto? – Ethan perguntou.

–- Foi tudo, porra! – ela retrucou, apressando o passo.

–- Foi um garoto – Ethan concluiu. – Quer que eu bata nele pra você?

–- Eu posso bater nele sozinha.

–- Você vai se ferrar.

–- Tô nem aí – a voz dela vacilou. De repente, ela parou, virando-se para Ethan: -- O que você faria?

–- Falaria o que aconteceu.

–- É complicado.

–- Tô nem aí.

Marcela sorriu fracamente, e Ethan se sentiu um pouco melhor. Encostando-se num muro de concreto, Marcela escorregou, até se sentar no chão. Ethan sentou-se na frente dela e examinou seu rosto. O queixo projetado, o nariz arredondado, os olhos redondos.

–- Sabe a Shayane? – ela começou. Ethan fez que não com a cabeça. – Tá, que seja... Ela era minha amiga, ou tava dizendo ser minha amiga, e tem esse garoto... André, daí ele...

–- André tipo... o anãozinho? – Ethan perguntou. Marcela riu alto. Ela ria feito uma hiena, mas era tão espontâneo que chegava a ser bonito.

–- É, o anão – ela concordou.

–- Você tá chorando por causa daquele toco de gente? É um pintor de rodapé.

–- Me deixa falar!

–- Tá.

–- Ele disse que não tinha namorada nenhuma, nenhuma garota e tals. Só que daí minha amiga Fernanda...

–- O nome dela não era Shayane?

–- Essa é outra.

–- O que tem a ver?

–- Me deixa terminar, caralho! Ok, daí tipo... A Fernanda me falou que ele tinha mandado pra ela um print de uma conversa dele e da Shayane, em que ela tava dizendo que gostava dele e tals, daí...

–- Essa Shayane é bonita?

–- Por que a pergunta?

–- Porque não tem como uma garota bonita gostar daquela merda de anão.

–- Cala a boca, porque você é o Ethan Escudo de Carvalho.

Ethan grunhiu, e Marcela continuou:

–- Bom, daí fica todo mundo dizendo que ele tá namorando a Shayane.

–- E o que ela disse?

–- Nada. Ela não veio hoje.

–- Credo.

–- O quê?

–- Você tá chorando por causa de uma mensagem de texto?

–- Eu sou garota, Ethan! – Marcela bateu as mãos nos joelhos. – Eu posso!

–- Tá. Posso te ajudar?

–- Como?

–- Você faz meu trabalho de matemática e eu resolvo essa sua novela.

–- Vai resolver como?

–- Na base do tapa.

–- Eu sei bater nas pessoas.

–- Sério? Bate em mim então – Ethan abriu os braços. Marcela largou a mochila e pulou em cima dele, socando seu peito e sua barriga. Ethan riu, Marcela riu, e os dois acabaram estirados na calçada, rindo feito um casal de hienas descontroladas.

* * *

A lembrança fez os lábios de Ethan tremerem. Porque Marcela nunca mais ia rir daquele jeito, nunca mais ia bater nele, nunca mais ia mexer em seus cabelos novamente, nunca mais ia engolir o choro daquele jeito peculiar.

Nunca mais ia voltar.

Ethan encolheu as pernas, passando os braços ao redor delas. Diminuiu-se em sua dor, até sentir o rosto abafado pela própria respiração. Levantou a cabeça de novo. Inspirou, e quando expirou viu o ar frio rodopiar pela noite e desaparecer em meio à escuridão.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Vínculo." morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.