Entre Nós escrita por Aline Herondale


Capítulo 13
Canção de Criança


Notas iniciais do capítulo

Mais uma música que amei.
https://www.youtube.com/watch?v=MtmrYisoxXA



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“I look at you, and I just love you, and it terrifies me. It terrifies me what I would do for you.” - Alexandra Bracken.





Enquanto caminhamos pelo calçadão da praia, enfio o blazer e a gravata na mochila, a brisa quente do entardecer soprando a saia contra as minhas coxas nuas.

O sol está começando a ficar laranja, salpicando gotas de ouro na superfície da água do mar. Essa é a minha hora preferida do dia, em que a tarde mal acabou, sem que a noite já tenha começado; com as últimas horas do dia se prolongando à nossa frente, permitindo mais algumas horinhas de raio solar.

Bem ao nosso lado as ruas estão cheias de trânsito congestionado, com homens e mulheres loucos para chegar em casa, ciclistas e caminhões irresponsáveis. Há muitos casais apaixonados e vários grupos de adolescentes espalhados por toda a extensão da areia branca - nadando, tocando violão, ou simplesmente andando, como eu e Theo. A praia sempre lota no final de semana.

Arranquei meus sapatos assim que chegamos na praia, e o enfiei dentro da mochila. Sinto a areia sob meus pés e o barulho que ela faz. Algumas gaivotas cantam alto.

— Essa é a minha hora preferida do dia. - Theo comenta e vejo que olha maravilhado para o céu.

De repente ver a imagem do meu irmão gêmeo caminhando ao meu lado, com as mãos nos bolsos da calça, com uma expressão serena que a muito tempo não vejo no seu rosto me enche de alegria. O pôr do sol, o barulho do mar, o vento fresco no meu rosto, é como uma promessa de que tudo vai ficar bem e que não existem problemas. Que só existe eu, Theo e a praia.

Solto um riso, enquanto prendo meu cabelo.

Jogo minha bolsa para Theo e começo a correr, pular e saltitar. Ando para perto do mar e corro para longe dele toda vez que a água quebra na areia. Até que resolvo dar estrelinhas, uma atrás da outra, e me jogo no chão com os braços estendidos, a areia áspera sob a palma das mãos. A sensação é maravilhosa e eu fecho os olhos, sentindo o vento se infiltrar pela minha roupa e tocar minha pele. Depois me levanto, sacudindo a areia do corpo, e torno a dar mais estrelinhas.

O sol desapareceu por um momento e mergulhamos em frias sombras azuis ao passarmos por baixo da passarela de madeira que se estende um quilômetro dentro do mar - sempre cheia de pessoas, batendo foto, namorando, pescando. Alguns passos para trás, à minha esquerda, Theo continua avançando a passos largos, mãos nos bolsos, mangas arregaçadas até os cotovelos. Ele tirou o blazer e a gravata e pendurou sob um dos seus ombros. Passamos por um grupo de adolescentes que cantam ao redor de dois caras tocando violão e todas as meninas o olham. Cubro a boca com uma das mãos e me viro para Theo, pronta para fazer uma piadinha. Mas ele está me observando com um olhar castanho intenso, totalmente alheio às meninas que tentam chamar sua atenção, e me dá um dos sorrisinhos de canto de boca que são a sua marca registrada. Esqueço o que ia dizer e viro para frente. Dou outra estrela e Theo aperta o passo para me acompanhar.

Decidimos parar para comprar dois cachorros quentes e uma Coca, num dos quiosques da praia. Limpo meus pés, calço os sapatos de volta e nos sentamos num dos bancos de pedra dispostos no calçadão da praia. Inspiro fundo e fecho os olhos quando o vento atinge meus rosto.

— Isso é mil vezes melhor do que ficar com aquela turma da escola. - Theo diz à minha frente. Estamos sentados em de frente para o outro, com a Coca entre nós. Cruzo as pernas, encostando a ponta dos nossos joelhos. - Ainda bem que saímos correndo de lá.

Mastigando com força, lhe dou um olhar duro, procurando o motivo por trás das suas palavras. Existem muitas poucas situações e momentos em que não sabemos o que o outro estás sentindo, mas basta um bom olhar para descobrir. Ele “enfrenta” meus olhos - como tem o costume de dizer. Quando não digo nada o canto da sua boca se curva. Ele percebeu que eu percebi que ele está sendo cem por cento honesto. E amável, como sempre.

Desisto de comer antes dele e me perco observando o movimento à nossa volta. Agora tem bem menos gente, mas o trânsito continua meio caótico. Também noto que algumas meninas sentaram à nossa volta e me olham feio. Balanço a cabeça. Dou mais uma olhada para o meu irmão.

É óbvio que Theo está morto de fome. Não levanta a cabeça momento algum e tem ketchup no queixo. Abro a boca para lhe dizer mas mudo de ideia - decido me divertir com essa imagem - mas minha expressão não passa despercebida.

— Que foi? - Pergunta ele, engolindo o último pedaço e limpando as mãos na calça.

— Nada. - Tento não sorrir, mas com aquele queixo listrado de vermelho fica difícil.

— Porque está olhando para mim desse jeito? - Insiste, me olhando desconfiado.

— Nada. Só estava pensando no que a Francie diz de você.

Ele rola os olhos e percebo uma pontada de irritação no seu rosto.

— Ah...essa sua amiga…

— Ela diz que suas covinhas são muito fofas. - Digo.

— Que? Minhas covinhas?! - Ele pergunta num tom de indignação, como se estivesse sendo violado.

— Sim. Suas covinhas.

— E por acaso ela percebeu que você também tem covinhas idênticas?

Contenho um sorriso o máximo que posso. Theo bufa.

Ele se levanta para jogar nosso lixo na lata de lixo mais próxima. Quando volta, continuo.

— É sério.

— Aham, tá bom, Ange. Podemos ir?

— Porque você acha que ela te chamou para ir no Smileys?

— O que? - Ele me olha intrigado, franzindo o rosto.

— Ou vai me dizer que você não entendeu que tudo aquilo foi armação dela?- Jogo meu corpo para trás, sustentando pelos braços. - Theo, theo…

Theo fica mudo por um minuto. Abre e fecha a boca mas depois simplesmente vira o rosto, sorrindo de lado como se estivesse se lembrando de uma piada. Quase consigo ver os pontos de ligando na sua frente.

— Essa Francie…

— Hoje ela contou que você tem um olhar arrasador, seja lá o que isso queira dizer.

— Olhar arrasador? Ange, olha o tipo de gente com quem você anda. - Theo diz constrangido e não consigo conter meu riso.

— Ah, sim. E que sua boca é extremamente beijável. - Digo devagar para não errar a palavra que Francie disse. Da onde ela tira essas coisas?

Ele engasga, e quase me dá um banho de Coca-Cola.

— Ok, agora chega.

— Eu não estou brincando! Essas foram as palavras exatas dela. Ou você acha que eu inventei isso?

Ele agora está começando a ficar vermelho, olhando para os lados, para a lata de Coca que segura, qualquer lugar que não meu rosto.

— Vamos embora, está tarde. - Ele diz, se levantando e catando nossas mochilas. Estende a Coca para mim e eu bebo o resto. Bato minha saia para tirar as migalhas, jogo a lata no lixo mais próximo e corro para alcançá-lo. Theo está praticamente correndo, e tudo isso porque comecei com “assuntos de menina” os quais ele sempre teve vergonha de me escutar falar. Assuntos dos quais eu sempre adorei conversar sobre na frente dele. Ele fica lindo, vermelho de vergonha, e sem jeito.

Não consigo parar de importuná-lo.

— Ela também me contou que te viu pela porta aberta do vestiário masculino, uma vez, e que você é muito…

Não termino porque Theo me dá um empurrão que saiu forte demais. Foi meio brincando, mas machucou. Por trás do exterior brincalhão, de repente ele parece aborrecido. Sinto que, sem querer, cruzei alguma linha invisível. Até gêmeos tem isso.

— Ok, parei. Mas você pegou o espírito da coisa, não é? - Levanto as mãos, me rendendo.

— Sim, peguei. Muito obrigado. - Ele não vira o rosto na minha direção. Seguimos para o ponto de ônibus no final da rua em silêncio e quando chegamos me sento num dos bancos. Theo se mantém de pé, um pouco afastado. Fecho os olhos, sentindo o vento frio no rosto. Em algum lugar, rapazes jogam bola na praia e um cachorro late.

Apoio minha cabeça na estrutura do ponto e abraço minha mochila contra o corpo. Theo não percebeu que o estou observando, todos os vestígios de humor tendo se apagado totalmente do seu rosto. Com as mãos nos bolsos da calça, ele contempla o trânsito e posso sentir sua mente trabalhando. Examinando seu rosto em busca de vestígios de aborrecimento, não encontro nenhum, apenas…

— Você está bem?

— Estou. - Ele não se vira.

— Posso confiar?

Ele parece prestes a dizer alguma coisa, mas continua em silêncio. O ônibus certo chega e embarcamos, encontrando dois lugares ao fundo para nos sentarmos. A viagem é rápida e tranquila. Não puxo assunto e nem Theo, o que me deixa encabulada. Ultrapassei mesmo essa linha? Theo sempre foi tímido mas não falei nada demais, nada que o ofendesse diretamente. Eu acho.

Quando dou conta já estamos subindo a rua íngreme da nossa casa, cheia pelas tão conhecidas casas geminada acinzentadas.

— Theo… - Paro no lugar.

Ele se vira de uma vez.

— Ange, eu não vou sair com a Francie. - Seu rosto está sério e ele não sorri. Ele não gostou mesmo da brincadeirinha e nem da pequena “emboscada” que Francie aprontou.

— Eu sei. Ela vai sobrevier.

— Porque você está tão interessada em me jogar para ela? - Pergunta de repente.

— O quê?!

Ele fica calado. Esperando.

— Eu não estou interessada em nada, Theo. - digo, firme. - Não é como se eu precisasse jogar meninas para cima de você. E eu não faço isso, você sabe.

— É para que saia da sua vida? Você acha que eu estou te prendendo? Porque se acha isso está muito enganada, Ange.

— O quê? Você escutou o que eu disse?

— Ouvi mas ainda assim quero saber: eu te sufoco? Me desculpa mas é que… - Balança a cabeça, como se de repente percebesse que falou demais. Espero mas Theo simplesmente fecha a boca e fica parado, me encarando.

Inspiro fundo.

— Theo. Olha, não sei como você chegou nessa conclusão absurda, mas eu nunca, nunca — enfatizo - iria querer me afastar de você. É sério isso? Você longe de mim?

Ele parece começar a perceber que sua teoria é absurda. Theo pisca, ainda mudo e com os olhos fixos em mim. Por um momento suas bochechas ficam vermelhas, então ele vira o rosto e passa as mãos pelos cabelos.

— Já não basta os anos que moramos separados? - Continuo.

Isso parece pegar sua atenção. Theo torna a olhar para mim e seus olhos estão carregados de um castanho intenso. Mostro um sorriso que ele não retribui. Ao invés disso se aproxima e levanta uma mão. Seus dedos acariciam meus rosto com delicadeza, como ele sempre faz, mas depois ele afaga minha bochecha e desce a mão até o meu pescoço. E a deixa lá.

— Não. Aquilo...nunca mais.

— Eu também não quero mais viver longe de você. Então… - Não termino a frase. Não consigo. Seu olhar está tão intenso que me faz esquecer a frase que estava dizendo, todos os argumentos e todo o meu raciocínio sumindo como se fosse areia, escorrendo por entre os dedos. Não tenho vontade de quebrar nosso contato visual e tudo que consigo fazer é encará-lo de volta, ao mesmo tempo ficando meio tímida e nervosa. Por algum motivo meu coração começa a bater mais forte e chego a abrir a boca para falar sobre algum assunto, qualquer um. Mas minha mente não consegue trabalhar e tudo que sai é um sussurro comedido:

— Theo…

Ele não responde. Só ficou lá, parado me olhando.

Theo levanta o dedão e caricia a linha branca - uma cicatriz de infância - que tenho na bochecha. Estremeço e num súbito ato de nervosismo afasto sua mão com um tapa.

Não sei porque fiz isso e nem porque meu coração começou a bater tão forte. Mas no mesmo instante um carro dobra a esquina e quase atropela um gato que estava no meio da rua. O bichano miou alto, assustando a mim e a ele.

— Vamos logo para casa. - Aproveito a deixa e caminho na frente, com passos ligeiros. Estou ansiosa, meu estômago parece se mexer e sinto que respiro alto demais. Porque isso?

Enfio a mão no bolso da minha saia e pego a chave solta. Estou com tanta pressa que nem noto a caminhonete velha e com a tintura desbotando, estacionada na nossa garagem. Nem o som da televisão ligada no último volume ou as vozes de Ammon e Willa brigando. Mas assim que abro a porta e entro no corredor sinto que algo não está certo.

O chão está coberto de blazers, sapatos e meias espalhados, algumas folhas escolares e lápis de cores. Avisto uma cueca e migalhas de sucrilhos, mas não é por isso que percebo a presença do nosso pai.

O ar está pesado. Pesado e denso como névoa. Meus olhos instantaneamente se apertam e começam a lacrimejar. Theo para ao meu lado mas é o primeiro a se mexer. Fumaça. Cigarro. Charuto. Papai está fumando novamente dentro de casa, coisa que pedidos incansáveis vezes para ele não fazer porque irrita os olhos de todos nós e porque descobrimos que Mouse é alérgico.

— Mouse. - Sussurro e no mesmo segundo estou correndo para a cozinha, largando para trás minha mochila e meu blazer. Sinto Theo vir atrás de mim.

Encontro Willa e Ammon discutindo em volta da mesa. Ela está esticando o bracinhos para cima, com o rosto vermelho de tanto chorar, pedindo um pedaço. Ammonestá segurando uma caixa de pizza vazia numa mão e sacode um pedaço de pizza pela metade na outra. Então ele mete tudo na boca, mal conseguindo fechá-la e abre um sorriso quando vê Willa derramar mais lágrimas. Chamo o nome da minha irmã mais nova e ambos viram o rosto para mim. Willa com seu olhar carregado de tristeza e Ammon de repente fecha o semblante, tentando se passar por indiferente, pronto para negar qualquer coisa que Willa dissese ele estar fazendo. Não perco meu tempo com ele.

Agacho e Pego Willa no colo, que enfia o rosto no meu ombro para chorar baixinho.

— Ammon, cadê o Mouse? - Theo pergunta, olhando em volta pela cozinha. A mesa está uma bagunça, com pratos, copos e talheres imundos espalhados, há duas latinhas de cerveja e uma blusa encardida pendurada numa das cadeiras. Consigo sentir seu fedor de onde estou e saio para o corredor.

— Aonde está o Mouse, Willa? - Pergunto delicadamente, alisando suas costas minúsculas. Ela funga e balança a cabeça, dizendo não saber.

Vou para o banheiro que tem naquele andar, mas que nunca é usado. Procuro na área de serviço e espio pela janela, mas não tem mais ninguém jogando bola. Só me resta a sala e inspiro fundo antes de entrar.

O som da televisão está mudo enquanto ela exibe uma propaganda de sabão em pó. Aqui o ar está tão mais denso que a luz do teto está meio nebulosa, meus olhos começam a lacrimejar e tosso. Papai se meche na sua poltrona e vejo que está com uma latinha de cerveja em mãos.

— Ora, ora, olha só quem chegou. Achei que tinham fugido de casa. - Ele não pergunta como estamos, por onde andamos e nem se estamos com fome; perguntas que, tenho certeza, mamãe faria a nós. Não. Porque ele não é mamãe, ele não nos ama e nem quer saber nada disso. Graydon só sabe zombar e exigir mais cerveja. Eu nunca o considerei um pai de qualquer jeito.

— Aonde está o Mouse? - Pergunto.

Ele aperta seus olhos e toma mais um gole de cerveja. Depois de vira para a televisão e tira do mudo. A partida de rugbi começou. Xingo mentalmente e me viro para subir as escadas. Acabo me trombando com Theo, que olha para mim e depois para o papai e novamente para mim. Balanço a cabeça e o contorno, abraçando Willa contra meu corpo.

Theo entra em cada um dos quartos e me olha assustado: Mouse não está em nenhum lugar.

— O banheiro. - Digo e juntos corremos até o último cômodo da casa. Nada.

— Mouse… - Theo está começando a desesperar. Ele passa as mãos pelos cabelos e sua testa tem gotas de suor. - Eu vou ligar para a mãe de alguém, perguntar se ele está jantando na casa de algum amigo. Ele deve ter se esquecido de avisar…

Concordo com a cabeça e Theo desaparece escada a baixo. Continuo no banheiro, sacudindo Willa e alisando suas costas. Ela funga alto mas sei que não chora mais. Também estou começando a ficar nervosa mas respiro fundo e aliso as costas de Willa. Não posso desesperar, não vai ajudar em nada. Preciso ficar calma.

E de repente escuto um fungar baixinho. Tão baixinho que se Willa não tivesse adormecido no meu ombro, teria acreditado ter vindo dela. Paro no lugar e olho em volta. O banheiro também está imundo, com pedaços de papel higiênico no chão, a tampa do vaso para cima e toalhas úmidas jogadas num canto. Escuto outro fungar que vem de trás da cortina da banheira. Estico uma mão e a puxo.

Mouse está encolhido o canto da banheira, abraçando as perninhas, com o rosto enfiado entre os joelhos. A ponta das suas orelhas estão vermelhas então presumo que todo o seu rosto também esteja. Seu cachos estão uma bagunça e seus tênis estão sujos de lama, deixando um rastro marrom nos locais da banheira em que tem água. Na verdade parece que alguém a usou a pouco tempo, mas isso não impediu de Mouse de meter ali e se molhar inteiro.

Por um momento nada acontece. Firmo Willa no meu ombro e me agacho, com uma mão esticada, pronta para acariciar Mouse. Mas então um lampejo de uma lembrança antiga e perturbada apunhala minha cabeça e eu dou um passo para trás, assustada. Uma lembrança de quando era um pouco mais velha que Mouse e fora trancada no banheiro. De quando Theo ainda era tão pequeno quanto eu e mamãe não estava em casa. Ninguém estava em casa. E eu levei a maior surra da minha vida. As lembranças só são uns flashes, mas é o suficiente para minhas mãos começarem a tremer e eu dar outro passo para trás. Papai batendo em mim com o cinto da sua calça, eu tentando soltar meu braço da sua mão de ferro, eu tentando parar o cinto de couro e deixando meus dedinhos roxos, minha pele latejando de dor; tudo turvo por conta das grossas lágrimas dos meus olhos.

Um fungar, dessa vez mais alto, me acorda. Mouse se remexe e um cacho cai na sua bochecha. Ele levanta a cabeça vagarosamente e me fita, entristecido.

Respiro fundo, uma, duas, três vezes. Forço meus pés a andarem e vou até a ponta da escada, de onde grito para Theo que achei Mouse. Volto para o banheiro e sento na beirada da banheira, acomodando Willa para que ainda cochila. Meu irmão olha para mim e torna a chorar. Sorrio e estico uma mão para ele. Mouse a agarra e corre para mim, abraçando minha barriga e as pernas de Willa.

— O papai, mana. - Ele começa mais eu apoio minha cabeça na dele e aliso seus cachos.

— Shh… Está tudo bem agora. Estamos aqui.

Theo aparece ofegante na porta do banheiro e quando vê Mouse me abraçando solta o ar alto. Ele limpa o suor que escorre da lateral do seu rosto e engole seco. Está com telefone no ouvido e se despede de quem quer que esteja do outro lado da linha. Ele caminha até ao meu lado e se agacha. Afaga as costas de Mouse e passa os olhos pelo corpo do nosso irmão. Faz isso para certificar de que não tem nenhum arranhado ou machucado. Nada de sangue.

— Ele está bem. - Digo e Theo levanta o olhar para mim. Ele estava com apavorado, posso ver. E ainda está um pouco nervoso, mas balanço a cabeça positivamente e sorrio timidamente. Theo concorda comigo e respira fundo.

Não falamos nada por um tempo, até que Willa acorda e percebo que ninguém ainda tomou banho.

Não pergunto o que aconteceu,  nem se fizeram o dever. Ambos estão sonolentos e cansados, então simplesmente lhes visto os pijamas e deixo dos dois ouvindo um audiolivro. Fecho a porta e desço para a cozinha.

Theo está catando a louça suja.

— Eles já dormiram. - Digo e cato as roupas sujas que encontro pelo caminho, juntando com as que trouxe dos quartos. Volto para a porta e pego as outras partes dos uniformes de meus irmãos. Jogo tudo dentro da máquina e a ligo. A televisão ainda grita na sala e escuto Ammon e papai comemorarem um ponto. Grunho.

— Eles comeram o resto do sucrilhos e aquele pedaço de pizza de anteontem. - Theo diz e percebo traços de raiva na sua voz. Levo um momento para entender o porque: apesar de Graydon ter pedido pizza, Ammon não deixou nenhum pedaço para o pequenos e por isso Willa chorava. Provavelmente Mouse estava escondido pelo mesmo motivo.

Sinto uma raiva muito forte começar a crescer em mim. Ao invés de Ammon nos ajudar a cuidar dos pequenos, não. Como sempre ele só piora a situação e os faz chorar. Principalmente quando papai está por perto. Devem estar com fome, mas tão amargurados por verem seu próprio irmão fazer isso que preferiram dormir a sair para comer.

— Ei. Vai querer comer o que? - Theo pergunta.

— Nada. - Não consigo sentir fome. Só estou com raiva. E muito triste.

— Ange… - Ele me chama.

— Não vou fazer nada, Theo. Prometo.

Ele me olha desconfiado. Parto para a área de serviço e tiro meus tênis de escola. Esfrego algumas meias, cuecas e calcinhas. Tiro a lama de todos os tênis e esfrego os outros calçados amontoados ali. Pego uma blusa azul marinho que encontro no cesto e tiro meu próprio uniforme, colocando na máquina. A blusa é de Theo - ela bate no meio das minhas coxas, se fosse de Ammon deixaria metade das minha nádegas de fora - e está limpa. Cato as outras roupas limpas e subo com o cesto em mãos. Separo as peças e deixo as roupas de Ammon dentro do cesto, ao pé da escada. Pego um short no meu quarto e desço.

A sala está escura e em silêncio, a televisão desligada. Abro as janelas e vou para a cozinha.

Ammon está abrindo uma lata de Coca e papai joga a latinha de cerveja que tem em mãos pela janela. Preciso me segurar para não começar um sermão. Ele não é um irmão mais novo irresponsável, é meu pai. Mas isso não o torna responsável. Estão conversando sobre alguma coisa relacionada a partida de jogo que acabaram de assistir.

Graydon já foi mais magro, mais musculoso e bonito. Sim, meu pai é bonito. Mas nada disso ele tem agora. Se tornou alguém curvado e velho, com braços flácidos e barriga proeminente. Continua careca e a barba está por fazer, o rosto salpicado de pontos vermelhos.

Theo estica a mão e pega o último prato da mesa.

— Ei, eu ainda vou comer. - Reclama Ammon.

Theo não se vira.

— Responde seu irmão, Theodor. - Papai exige. Ele se senta numa cadeira e apoia sua prótese em outra. Enfia a mão no bolso da sua camisa e acende um cigarro.

— Pega outro prato no armário. Só falta esse para eu acabar essa louça.

Ammon olha feio para as costas do meu irmão gêmeo e, para a minha surpresa, levanta calado e vai até o armário de vasilhas. Prega um prato e depois caminha para a geladeira. Abre a porta e mete a cara lá dentro, mas, infelizmente, está praticamente vazia.

— Não tem nada para comer nessa merda de casa. - Ele resmunga, pegando potes de vidro e lendo o conteúdo. - E agora? Vou passar fome?

Ele se vira e olha para papai, que está levantando a cabeça assistindo a fumaça do cigarro dissipar. Theo coloca o última prato no escorredor e limpa as mãos no pano encardido que tem pendurado no ombro.

— Quer um ovo frito? - Pergunta educadamente.

— Não, eu não quero a merda de um ovo frito. Eu quero comida. - Ammon responde rispidamente e eu enfureço.

— Já não basta toda a pizza que você comeu sozinho? - Ammon me olha surpreso, como se não tivesse me visto ali, mas logo fecha o rosto. - Você nem dividiu com o Mouse ou a Willa. Deveria estar mais do que satisfeito.

— Cala a boca. Isso não é da sua conta. Eu estou com fome e pronto.

— Então se você quiser comer vai ter que sair para comprar alguma coisa, porque não tem mais nada aqui.

— Tem sim! - Ammon grita. -  Acabei de encontrar salsicha e pão. Dá para fazer um cachorro quente.

— Não, Ammon você não pode comer isso.  - Peço. - É para o aniversário do Mouse, você sabe. Não vamos ter tempo de ir no mercado comprar outro pacote, e ela pediu cachorro quente para o aniversário. - Lembrou-o delicadamente. Não pretendo brigar, chega de brigas. Mouse faz aniversário daqui a três dias, e só o que ele me pediu foi para cozinhar cachorro quente no seu dia.

Apesar de continuar me olhando feio, vejo Ammon ponderar argumentar mas então fecha a boca e abaixa os braços. Se vira para guardar as salsichas de volta na geladeira quando de repente Graydon fica de pé e toma o pacote da sua mão. Anda até mim e empurra as salsichas contra meu corpo, quase me fazendo cair. Fala com o cigarro pendurado na boca.

— Você vai cozinhar a porra dessas salsichas para o seu irmão agora mesmo! Me ouviu? Agora!

Tremo. Não pelo material gelado que encosta em mim de repente mas porque papai de aproximou demais e está furioso. Seu rosto está vermelho e ele está com raiva. Estou paralisada e meus lábios tremem vacilam. Minha visão começa a querer ficar turva, mas me forço engolir o choro e aperto minha boca para mantê-la firme. Não chora, não treme. Fica calma. Não seguro o pacote, não me mexo.

Reúno toda a coragem que consigo e balanço a cabeça em negativa. Minhas mãos estão trêmulas, consigo senti-las sacudindo na lateral do meu corpo. As fecho em punho.

— Pai! Pai! Pode deixar. Eu faço isso. - De repente Theo se esgueira entre nós, pegando o pacote que papai empurra contra mim, tapando minha corpo.

Abaixo a cabeça e uma lágrima cai e pinga no chão. Rapidamente a limpo e meus dedos ainda estão trêmulos. Inspiro fundo uma, duas vezes. Dou um passo para trás e fico ao lado de Theo. Não prestei atenção ao que Graydon e Theo discutiram, mas Ammon está sorrindo e sei que ele ganhou. Graydon solta uma baforada de fumaça contra o rosto do meu gêmeo e se vira. Vai mancando até a geladeira, onde pega outra cerveja e a abre.

Theo se vira e caminha até o fogão, enche uma panela de água e está pronto para rasgar o pacote de salsinhas quando corro até ele e seguro seu braço.

— Theo, o que está fazendo? - Sussurro.

Ele me olha assustado.

— O que está acontecendo? - Papai pergunta do outro lado da cozinha.

— Ange, pelo amor de Deus, deixa isso quieto. - Theo pede num murmurrio.

— Angeline, o que você está fazendo ai? - Escuto papai me chamar pelo nome,  aborrecido. Quase espirro quando uma onde de fumaça de cigarro invade meu nariz.

— Não. Ammon já comeu, ele nem está mais com fome. Isso é gula. - Me viro.

— Angeline! - Graydon grita, mas eu o ignoro. Estranhamente Ammon se mantém calado.

— Não, Theo. Por favor. Não podemos ceder assim. - Olho para o meu irmão, e busca de apoio.  

Ele me fita por alguns segundos, só até escutarmos uma cadeira se arrastar e papai caminhar apressadamente até nós. Num único movimento Theo se vira para ele, abre as salsichas e despeja metade do conteúdo dentro d’água. Graydon para e assiste a cena. Depois seus olhos procuram os meus, e eu não escondo minha raiva.

— Pode fazer tudo. Eu também estou com fome. - Ele diz para Theo, com os olhos fixos em mim. Mordo o interior da minha bochecha e mantenho o contato visual.

Pelo canto do olho vejo Theo balançar a cabeça de modo obediente e colocar o resto das salsichas na panela. Quando se vira para jogar o plástico vazio no lixo, encontra os meus olhos. Graydon se vira e volta para a mesa.

— Por favor, Ange. Por favor. - Theo está a centímetros de mim, sua boca pairando sobre minha orelha. Ele não precisa abaixar a cabeça, temos quase a mesma altura. Ammon está se servindo de Coca. Abro a boca.

— Eu sei, eu sei. Ele não devia… Eu não devia mas… - Theo não termina, ao invés disso afasta o rosto para me olhar nos olhos.

Vejo que está suplicante. Não quer que eu brigue com Ammon porque papai está aqui, e sempre que Graydon está em casa Ammon se torna mais grosseiro, exigente e vira uma pessoa totalmente estúpida e aproveitadora. Theo sabe disso tanto quanto eu, mas não tenho o seu autocontrole. Mouse e Willa dormiram com fome, e cansados de tanto chorar por causa dele. Eles não mereciam isso, são apenas crianças. Não sabem se defender.

Sinto um aperto no peito. Eu deveria estar em casa para defendê-los. Eu. Mas ao invés disso, estava na praia. Passeando.

Culpa invade meu coração. Não tenho o direito de brigar por nada. Theo está certo dessa vez; tentando fazer o possível para terminar o dia sem mais discussões nessa casa, enquanto eu estou aqui, procurando motivos para sair aos gritos com meu irmão. A própria causadora disso tudo.

Concordo com a cabeça e vou embora para o andar superior. Tomo um banho, coloco o pijama e dou uma olhada nos pequenos. Deito na cama mas só durmo quando escuto um movimento no banheiro e a porta perto do quarto que divido com Mouse e Will, se fechar.

Theo foi deitar tarde.


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Notas finais do capítulo

O QUE ACHARAM? ME AJUDEM A MELHORAR CADA VEZ MAIS "ENTRE NÓS". ME MANDEM MP!!!
OBRIGADO,
XOXO