Entre Nós escrita por Aline Herondale


Capítulo 1
Passado


Notas iniciais do capítulo

Começar essa fic não foi fácil, mas a ideia surgiu na minha cabeça tão de repente quanto uma chuva no meio do inverno, e intensa da mesma forma. Precisei colocar no papel e aqui está.
Espero que gostem.



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Algumas pessoas olham o mundo e perguntam: Por quê? Eu penso em coisas que nunca existiram e pergunto: Por que não?” – George Bernard Shaw



— Não se esqueça de rezar, filha. – Lembrou a mãe. A menininha concordou com a cabeça e delicadamente desceu da cama para se ajoelhar no chão e cruzar os dedos das mãos, da forma como sua mãe a ensinara.

— Deus, obrigado pelo dia de hoje, por cuidar de mim e do meu irmão e pela comida na nossa mesa. Amém. – Antes de retornar para a cama se lembrou de algo e acrescentou. – E Deus, por favor, poderia nos mandar uma bicicleta nova? A nossa já está enferrujada demais para pedalar, e Theo e eu gostaríamos de pedalar no estacionamento novamente... Obrigado! – A pequena Ange exclamou e subiu na cama e se enrolou na fina coberta.

— Boa noite, mamãe. – Ela disse e se virou para o outro lado, a fim de segurar as mãos do seu irmão gêmeo, com quem dividia a cama, que já havia adormecido.

Ouvir sua própria filha clamar às divindades fez seu coração de mãe apertar.

Corrine era uma mulher trabalhadora e se esforçava ao máximo para conseguir dar conforto suficiente para os seus filhos, mas desde que Graydon, seu marido, começara a gastar dinheiro em jogos, eles vinham perdendo dinheiro como se os próprios ratos roessem o papel. E pedir para que ele parasse já não era suficiente e nem mesmo mais uma escolha. Sua bochecha direita ainda estava dolorida, lembrando-a do quanto Graydon detestava quando tentavam lhe dar ordens, e ela ganhara um forte tapa no rosto para não se esquecer nunca mais desse detalhe.

E como todas as noites, Corrine foi para a sala e abriu sua única bíblia, já gasta, à fim de ler uma ou duas páginas antes de ir se deitar.

Desde que descobrira o homem violento com quem havia se casado, Corrine nunca mais se deitava enquanto Graydon ainda estava acordado, deitado na cama do casal, assistindo TV. Pacientemente ela esperava o sono vir para ele para então, quando não escutava mais o chiado da televisão, entrar no quarto, vestir sua camisola e finalmente poder dormir.

Depois de um longo dia de trabalho esse era o momento que ela mais aguardava de modo ansiosa – além de reencontrar seus pequenos, claro. Corrine tinha plena consciência das necessidades que todo homem possui, mas com as de seu marido ela estava pouco se importando. Também tinha pleno conhecimento do que ele fazia toda vez que o escutava dizer “vou chegar tarde, não me espere”, afinal, o clube de strippe ficava apenas à três quarteirões dali, mas ela não se importava, na verdade nada tinha mais valor para ela do que seus pequenos bebês que dormiam tranquilamente naquela cama pequena demais.

Desde que ela os tivesse, não precisava de mais nada. Nem mesmo de Graydon e do amor dele.

Amor.

Esta era uma palavra que ela tentava ao máximo explicar aos seus filhos o significado, mesmo tendo consciência que eles testemunhavam toda uma falta desse sentimento entre os próprios pais. Gritos, brigas, hematomas e olhos roxos era comum e, com o tempo Ange e Theo pararam de perguntar. Como os gêmeos poderiam entender o significado do amor se nem mesmo em casa eles tinham qualquer exemplo disso? Corrine ficou entristecida, no início, mas ao ver a forma como eles se tratavam, descobriu que de alguma forma ela havia lhes passado o recado.

Mas ainda assim Corrine se esforçava ao máximo em apagar tudo de ruim que as crianças ouviam ou viam vir de Graydon, para apenas passar aos gêmeos coisas bonitas e corretas, como o verdadeiro sentindo de “famiília” e “amor” e que, sempre – sempre – deveriam cuidar um do outro.

E já, aos quatro anos, amor era uma palavra usada e abusada entre eles.

— Você me ama?, Porque eu amo você. , Sentiu falta de mim? , Teve saudades? , Pensou em mim quando tava’ fora? , Conseguiu dormir sem eu na cama? , Dormiu bem? , Sonhou comigo? …




Terminado as páginas do dia Corrine devolveu a bíblia à estante e caminhou para o seu quarto. Não escutava mais o chiado da televisão ligada a bastante tempo e acreditou terem se passado tempo o suficiente para Graydon já estar dormido, então entrou no quarto, fechando a porta lentamente e sem fazer ruído. Tirou sua blusa, saia e sutiã e os pendurou na porta do guarda roupa.

Estava prestes a pegar sua camisola, depositada sobre o lado da cama em que ela dormia quando uma mão a puxou e ela caiu sobre o enorme corpo do seu marido.

— Até que enfim veio se deitar. As crianças não dormiam? – Ele perguntou e Corrine sentiu o cheiro de nicotina exalar da sua boca.

Surpresa ela tentou se levantar mas Graydon segurou firmemente seus ombros e a sacudiu, exigindo uma resposta. Corrine estava assustada demais para responder, só o que queria era sair dali e abraçar suas crianças enquanto dormiam tranquilamente, mas estava presa então tudo o que pode fazer fora ficar estática.

Em meses ela evitava o contato físico, principalmente quando Graydon bebia, o fazendo se tornar mais violento do que já era. Inconscientemente era como um castigo por ele tê-la enganado direitinho; a fazendo acreditar que estava apaixonada por alguém carinhoso, trabalhador e sincero. Não tinha como de fato puni-lo por motivos de: força física.

Graydon era major do exército até um ano atrás, quando perdera metade da perna esquerda numa guerra, desde então apenas recebe o montante. Ainda possui o corpo másculo causado pelo treinamento intenso e é um homem alto, lhe dando um ar imponente. Na época, quando Graydon ainda não se revelara completamente, Corrine ficara alegre com a idéia de que poderia ter seu marido mais presente em casa – mesmo que ele tivesse precisado perder a perna para isso – e o convenceu a sair para comemorarem. Foi quando Graydon bebeu e lhe deu o primeiro tapa. Uma semana depois veio o primeiro muro no rosto e hoje Corrine já havia perdido as contas de quantos tapas e socos havia ganhado.

Já sem paciência, Graydon puxou sua esposa para mais perto e começou a beijar seu pescoço, correndo suas mãos grossas sobre o corpo esguio da mulher.

De fato Corrine estava assustadíssima, se perguntando como pudera relaxar. E esse era o preço que ela pagaria por se deixar levar pelo cansaço. Não podia, deveria ter prestado mais atenção ao relógio e percebido que ainda havia se passado pouco tempo para Graydon adormecer.

Graydon apertou suas nádegas com extrema força, a fazendo arquear o corpo para longe e tentar se soltar dele. Não queria fazer amor com ele, não tinha mais nenhuma atração por seu marido e também não se lembrava da última vez que ele a deixara excitada. Antigamente sim, mas agora...não. Nem mesmo se sentia amado pelo homem com quem dividia a cama.

— Fica quieta! – Graydon reclamou e a chacoalhou, como uma boneca de pano. Corrine chegou a ficar tonta e quando sentiu os lábios dele apertanso os seus sentiu náuseas.

Não amava mais aquele homem. Não queria ser beijada por ele, não queria mais ser tocada por ele. Corrine só queria poder ter um lugar para onde pudesse fugir com seus pequenos, não mais viver naquela casa decrépita, não mais ter que trabalhar para sustentar as apostas do marido, não mais ter que ser infeliz.

E ela encontraria um jeito.

Juntando toda a coragem que conseguiu em 20 segundos, Corrine começou a sacudir os braços e a gritar.

— Solte-me, solte-me agora! – Ordenou e para sua surpresa Graydon fez exatamente isso. Parou de beijá-la e a encarou com o semblante enrugado, depois a jogou para o lado e mesmo que Corrine tenha caído no chão, para ela, aquilo já era o início de uma vitória. A mulher rapidamente se colocou de pé e pegou a blusa que havia acabado de pendurar na porta do cabide e a vestiu.

Corrine tinha os cabelos revoltos e a respiração profunda. Estava muito nervosa mas também preenchida de coragem, e por isso não recuou ou saiu correndo, como sempre fazia, quando viu Graydon se levantar da cama e caminhar até ela.

— O que você disse? – Ele perguntou. Seu rosto estava tomado de fúria.

— Eu não quero mais que você me toque! Eu quero me separar de você! – Corrine gritou, sentindo que as coisas estavam começando a dar certo. – E vou levar meus filhos comigo! Eu...

Corrine não teve oportunidade de terminar pois um forte tapa foi dado no seu rosto, a fazendo virar o corpo e se apoiar na parede. Mesmo depois de vários, eles ainda doíam. Um após um, como se cada um fosse a primeira vez.

Mas ela já havia ganhado tantos...não pararia por um, não agora.

— Mais uma palavra e eu te mato, Corrine. – Graydon gritou, apontando seu indicador em frente ao rosto da mulher.

E mesmo estando apavorada ela não se permitiu parar.

— Me matar como, Graydon, se eu estou morta?! E à muito tempo! Muito tempo!

Outro tapa. E outro. E mais um. E foi quando Corrine alcançou o abajur próximo à cama e o bateu contra a cabeça de Graydon. O homem gritou e deu dois passos para trás, fazendo com que Corrine tivesse a oportunidade de correr para fora do quarto e pegar uma faca na cozinha.

Quando Graydon a encontrou ela estava no meio da sala com o facão em mãos. Ele riu da cena, afinal, não havia como ela machucá-lo; ele havia vindo do exército. Não havia situação ou arma que ele não soubesse lidar e/ou se defender.

Nas primeiras tentativas Corrine quase teve o facão arrancado de suas mãos mas num movimento em falso de Graydon, ela lhe fez um corte fundo no braço, o fazendo gritar de dor.

— Sua vagabunda! – Gritou e partiu para cima da esposa que correu para o cômodo ao lado. Porém, assim que se virou de costas, Graydon a puxou pelos cabelos negros e envolveu seu pescoço com seu braço.

Sem ar Corrine enfiou a faca no seu braço mas ele não a soltou.

De todas as formas ela tentava se soltar, com as unhas, com a boca, com murros e chutes, mas teve certeza de que iria morrer quando começou a enxergar pontos pretos no ar.

— O que está acontecendo mamãe? – A voz da pequena Ange foi ouvida atrás dele e Graydon se virou tomando um susto.

A imagem de sua mãe com o rosto muito vermelho, envolvido pelo braço grosso do seu pai, com manchas de sangue por toda parte, não sairia da cabeça da pequena Ange nunca mais. E quando Theo apareceu logo atrás dela, coçando o olho, soltou um grito agudo e correu até o pai para chutar seus joelhos.

— Solta a mamãe! Solta a nossa mãe! – Os gêmeos berravam enquanto corriam em volta do pai, lhe deferindo socos e chutes. Não o machucavam, é claro, mas o fato de rodarem à sua volta o deixou confuso e Graydon soltou Corrine que caiu pesadamente no chão.

— Mamãe! Mamãe! – Eles correram de encontro à Corrine. Seu rosto estava começando a clarear e ela ainda estava bastante tonta, mas se obrigou a levantar e caminhar cambaleante até o quarto das crianças, puxando uma em cada mão.

— Não...crianças...continuem aqui...continuem...no...quarto. Não saiam mais daqui. – Ela mandou, sentindo seu estômago dar voltas.

Ange chorava histericamente e Theo tinha os olhos arregalados e o rosto branco como leite.

Corrine se virou para o menino e segurou seu rosto entre as mãos para que ele a encarasse bem fundo nos olhos.

— Cuide da sua irmã...ouviu? Cuide...muito bem dela...Theo. Sempre. Sempre...cuide dela. – Corrine falou num misto de ordem com súplica. E mesmo Theo estando muito assustado concordou com a cabeça. Ele poderia ser pequeno demais para entender essas coisas mas ela sabia que Theo nunca mais esqueceria disso e que tomaria conta de Ange.

— Vamos crianças, entrem para o quarto. – Mandou e os empurrou delicadamente pelas costas.

Foi o tempo dela fechar a porta do quarto dos seus pequeninos que Graydon a agarrou por trás e a jogou sobre a mesa da sala.

— Volta aqui, vagabunda!



Mesmo com o tamanho esforço que Ange fazia, não conseguia abrir a porta do seu quarto. Ela ainda escutava os gritos da sua mãe e móveis sendo quebrados, o que significava que Corrine precisava ajudá-la. Mas Ange não conseguia de jeito nenhum girar a maçaneta e foi quando começou se desesperar.

Theo também chorava por estar assustado e quando viu sua irmã desesperadamente girando a maçaneta, sentiu algo triste no coração. Ela chorava incansavelmente e de modo desesperado, deixando-o sem ação. Ele não sabia como confortar sua irmã, como ajudar sua mãe e estava estático de tanto medo.

— Deixa Ange, você não vai conseguir abrir. Mamãe trancou a gente aqui. – Ele tentou explicar à sua gêmea mas a pequenina não o lhe deu ouvidos continuou a esmurrar a porta.

— Mamãe, mamãe, mamãe! – Ela gritou e aquilo fez com que mais lágrimas caíssem dos olhos do seu irmão gêmeo.

— Ange, não! – Ele pediu e a tentou empurrar para o lado.

Ange tinha os olhos brilhando pelo acúmulo de água, seu rostinho estava todo molhado e a ponta do nariz vermelho.

— Eu quero a mamãe. – Ela disse à Theo, com a voz falha.

— Eu também. – Ele admitiu e abriu os braços para abraçar sua irmã.

Naquela noite não conseguiram dormir até que toda a movimentação da casa tivesse cessado. E nem mesmo depois. Continuaram a chorar até escutarem os primeiros movimentos do novo dia que havia nascido.




— Vamos ter o que? – A pequena Ange perguntou, unindo suas sobrancelhas finas.

— Outro irmãozinho. – Corrine repetiu, e mesmo a notícia sendo maravilhosa Theo notou uma amargura estranha no tom de voz da sua mãe.

Os olhos da pequena Ange brilharam e grossas lágrimas começaram a brotar, rolando pelas suas bochechas.

— Você vai nos trocar... – Ela choramingou.

— Não meu bem, claro que não. Eu nunca iria trocar meus filhos preferidos! Eu nunca faria isso. – Corrine tentou explicar à pequena Ange, que já berrava, enquanto Theo apenas assistia a cena quieto. – Não, meu bem...não precisa disso. – Corrine puxou sua filha para um abraço.

— Você vai sim... – Ange disse chorosa.

Quando Corrine segurou delicadamente o rosto de Ange entre suas mãos tinha os olhos marejados e a voz falha. Estava a ponto de chorar e Theo ficou sem entender o porque. Teria mais filhos, e ele mais irmãozinhos, não deveria ter sorrisos e bolos coloridos como sempre havia quando algo bom acontecia? Mas ele só via lágrimas e sua mãe agir de modo estranho.

— Eu nunca, nunca deixaria vocês, ouviu Ange? Nunca. Mamãe tem o maior amor do mundo por você e seu irmão. – Corrine fez um carinho na cabeça de ambos e olhou para o menininho em pé, ao seu lado. – Esses outros irmãozinhos que estão vindo são mais companhias para vocês brincarem.

— Sério? – A pequena Ange arregalou os olhos, animada com a idéia de ter com quem brincar. Theo nunca entendia que as bonecas sempre devem vestir um vestido de mesma cor que os sapatos, e depois devem passear para tomarem o chá da tarde.

— Sim. – Corrine respondeu e olhou para Theo. – O que foi meu filho?

Porque você não ta’ feliz mamãe? – Ele perguntou, fazendo a mulher levar um susto.

Ela estava feliz.

É claro que estava feliz.

Felicíssima.

Logo teria mais gêmeos correndo pela casa, a recebendo de braços abertos sempre que chegava do trabalho. Que mãe não gostaria de receber beijos e abraços multiplicados por quatro? Mas apesar de tudo ela sabia o motivo pelo qual essas crianças estavam vindo. Não que fossem indesejáveis, não. Ela estava adorando a idéia, de verdade, mas não haviam sido geradas com amor. Ela e Graydon não haviam se unido de corpo e alma, como um casal faz quando se ama. Não.

Desde a última briga deles – a mais feia de todas – ela vinha sendo tratada como nada, um lixo. Às vezes sentia até que um lixo era melhor tratado do que ela.

Graydon passou a gastar o dinheiro sem se preocupar com as contas à serem pagas, a fumar mesmo quando as crianças estavam por perto e falava palavras inapropriados para os pequeninos quando eles estavam ao seu lado. Chegava em casa, exigia comida, e quando ia se deitar procurava pela esposa. Mesmo com as exclamações da mulher Graydon estava pouco se importando e a calava como sempre fazia. Difícil era a semana em que a pele branca de Corrine estava sem os hematomas roxos.

E com o passar dos meses ele começou a chegar com uma mulher diferente à cada semana.

O pior de tudo era Corrine tentar explicar para as crianças o porque e quem eram aquelas mulheres que seu pai trazia para casa e depois nunca mais tornavam a aparecer.

Corrine sabia que era uma pecadora mas rezava todos os dias, do modo mais sincero que conseguia, pedindo perdão por seja lá o pecado que ela havia cometido, pois estava pagando por todos eles nessa vida. Era quase como viver no inferno, talvez até o submundo fosse mais fácil do que aquilo com o qual ela tinha que lidar todos os dias.

Mas havia dois seres pequeninos dos quais a mulher nutria uma energia desumana, fonte da sua força para se levantar da cama todos os dias e encontrá-los a chamando pelo nome, forças para que não se matasse, forças para continuar vivendo...

Dois pequeninos gêmeos de inocentes olhinhos claros.


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Notas finais do capítulo

O que acharam?
XO.



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