A separação escrita por slytherina


Capítulo 1
O que Deus uniu, o homem não separará.


Notas iniciais do capítulo

Desafio de Março "Grandes Mulheres da Ficção"



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1.


Grace Stewart acordou cedo. Chamou sua empregada para preparar a refeição matinal das crianças. Enquanto a esquelética e esquálida figura preparava o ralo mingau de aveia com cevada, ela já providenciava o almoço: sopa de legumes com uma torta de carne. Com a faca afiada ela fatiava e picava os poucos legumes que ainda brotavam em sua horta.


As crianças não tardaram a acordar. Ainda de camisolão, foram lavar o rosto e escovar os dentes. Depois juntaram-se ao filho da empregada na mesa da cozinha, para o desjejum. Grace sabia que o sistema de classes sociais não via com bons olhos a mistura de filhos do patrão com os filhos dos empregados, mas, por favor, eles estavam em guerra há seis longos anos. Certas coisas perderam o valor e importância naqueles tempos de guerra.


Quando a guerra acabasse, e seu marido voltasse para casa, então as coisas mudariam de figura. Aí então, todos seriam felizes para sempre. Os empregados seriam mais respeitosos, as crianças voltariam a estudar, seriam curados de sua doença, e Grace poderia voltar a ser a mulher que sempre fora, fina e delicada, dedicada à família e às obras da Santa Igreja Católica.


Após o almoço ela levou as crianças para a sala de estudos. Repetiram a lição de latim e refizeram a redação sobre os Carolíngios. Seus filhos estavam ficando afiados nos estudos, pena que sempre cometessem os mesmos erros, como na pena de Sísifo. Logo mais, eles escovaram os dentes e elas os pôs para dormir. Eles sempre lhe pediam para contar a mesma e infindável estória.


"Ó deuses conjugais e tu, guardiã do leito nupcial, Lucina; tu que aprendeste com Tífis a dirigir um novo navio que haveria de desbravar os mares; e tu, senhor implacável das profundezas do oceano; e Titã, que distribuis pelo mundo a claridade do dia; ó tu que ofereces uma luz cúmplice em cerimônias misteriosas, Hécate triforme; ó deuses por quem me jurou Jasão; e os que Medeia invoca com maior legitimidade; ó caos da noite sem fim; ó escusos reinos dos deuses supernos; ó mares sacrílegos; ó senhor de um reino sombrio; ó soberana raptada para maior fidelidade; com imprecações agoirentas vos conjuro ..."


Logo mais, quando as crianças se cansassem de escutar sobre antigas tragédias gregas, e se entregassem ao sono reparador, Grace iria para seus aposentos para descansar de mais um dia de trabalho. Esta era sua vida, seu prêmio de consolação, sua bênção e seu destino. Afinal, não eram os filhos os maiores bens de uma mãe?


2.


"Olá!" O homem alto e alquebrado deu um sorriso triste para ela.


"Charles! Oh, Charles! Você voltou!"


Grace correu feliz da vida, o mais rápido que suas quarenta primaveras a permitiram. Abraçou seu marido com energia e afeição. Sim, Deus era muito bom para ela. Tudo estava indo muito bem, como deveria ser. A guerra não levara seu marido embora. Ele estava ali, em seus braços. Junto com as crianças, tudo voltaria a ser bom e perfeito como antigamente.


"Desculpe, mas ... eu não me lembro ..." O homem titubeou.


"Não se preocupe, amor. Eu me lembro por nós dois. Venha comigo! Eu vou lhe apresentar ao resto da família."


Grace levou o marido para a casa grande. Apresentou-o aos filhos, Nicholas e Anne, aos empregados, bem como recontou-lhe tudo que já haviam vivido até aquele momento. Decerto que ele não se lembrava da vida antiga por causa da guerra. A maldita guerra contra a Alemanha que havia ceifado tantas vidas inocentes, e que havia lançado a Inglaterra na idade média.


Grace fez tudo em seu poder para que seu marido se restabelecesse de suas mazelas. Seu jantar preferido, nem que para isso tivesse que matar o último porco de sua criação. Mandara os empregados colherem dálias, suas flores preferidas e até dedilhara uma velha canção folclórica no empoeirado piano da família. Era estranho o piano estar empoeirado, pois ela sempre fizera questão de absoluta limpeza naquela casa, mas isso seria corrigido brevemente. Ela seria mais rígida com os empregados e exigiria o uso de lixívia e óleo de cedro na limpeza dos móveis.


Grace, quem diria, até permitira que se abrissem as cortinas de sua casa, para que o marido admirasse o sol da manhã. É claro, seus filhos foram proibidos de sair do quarto, dada sua condição de saúde, que tornava proibitiva a exposição ao sol. tudo isso ela fizera, além de seus deveres conjugais, para que o marido se sentisse bem vindo e amado. Tudo isso e muito mais ela faria, para não ver aquele olhar tristonho e nostálgico de quem não se sente em casa e anseia pela partida.


A guerra levara seu marido e lhe devolvera apenas seu corpo. Sua alma ficara lá, no campo de batalh. ele era como um fantoche. Oco e sem sentimentos. Faltava-lhe o vigor e a sede de viver. Seu sorriso não tinha calor, seus abraços não tinham força, seus olhos eram indiferentes. Ele era um completo estranho, não se emocionando com os filhos ou se inflamando pela esposa. Ele não a queria mais.


Um belo dia, meses após sua volta, ele lhe comunicou que iria embora. Grace não se emocionou ou pediu-lhe para ficar. Era como se seu marido nunca houvesse retornado. E agora aquele estranho que ali chegara a avisava que a época da visita de cordialidade havia acabado. Depois que ele se foi, ela foi tomada de espasmos e fúria. correu atrás dele aos berros. Clamou por sua volta e chorou amargamente quando escorregou e feriu os joelhos em lápides do cemitério da família.


Seus empregados a acharam e a levaram de volta. Ela chorou por dias, e por dias ficou admirando o teto. A mancha do encanamento antigo daquela casa estava aumentando no teto. Automaticamente fez as contas de quanto dinheiro era necessário para consertar aquilo. Iria sair muito caro, pois ela não dispunha daquela quantia, a não ser que vendesse alguns móveis. sairia mais barato simplesmente esquecer que tal vazamento existia. Talvez no futuro, ela pudesse levantar dinheiro suficiente para consertar tudo que havia de errado em sua vida.


3.


O inverno veio avassalador. Ninguém tinha coragem de ir lá fora para cortar lenha e alimentar a lareira. Este era o local preferido na casa. As crianças agora dormiam ali, emboladas em xales e baetas. O colcão de capim dos empregados fazia as vezes de sofá e cama de campanha para todos dormirem juntos e quentinhos. Mas não Grace. Ela continuava dormindo em seu quarto, com aquela temperatura enregelante, olhando para as paredes velhas da antiga residência.


A comida acabou. Não havia meios de um deles ir até o bosque e matar um animal com a velha Winchester. Quando muito saíam para apanhar gravetos para não morrerem congelados. A velha governanta teve a idéia de ir de carro até a cidade próxima, fazer escambo de alguma jóia por alimentos. Ela levou o filho da empregada. Quando esta foi até lá fora para colher lenha para a lareira, Grace chamou Annie e Nicholas para seu quarto. Ela os pôs para dormir, contando a mesma história de sempre, embora ainda não fosse a hora da sesta. Eles ficaram alegres pela história ter chegado ao fim, e Grace sempre se perguntaria por que eles preferiam esta em detrimento a outras histórias com finais felizes.


A governanta encontrou Grace caída no chão do corredor, com a velha Winchester em seu regaço. Tudo estava muito sujo, e ela teve que limpar o chão com água sanitária para tirar aquela feia mancha. Afinal sua patroinha era muito exigente quanto à limpeza. Com a ajuda da empregada eles carregaram a patroinha para seu leito e trocaram suas vestes por camisolão de dormir. O ferimento na cabeça foi sanado com água quente e unguentos. Com o penteado certo ninguém perceberia a feia cicatriz, nem mesmo a patroinha.


Grace acordou três dias depois, chorando, clamando pelos filhos desesperada, só parando de chorar quando os mesmos vieram abraçá-la em seu leito. Ela lhes pediu perdão mas não disse porque. Os três ficaram abraçados na cama ainda por um bom tempo até serem chamados para irem almoçar. O inverno havia passado. Os móveis estavam limpos e até as paredes estavam caiadas de novo. Grace gostou daquilo. Nada como uma nova vida com tudo novo, limpo e perfeito. Seu marido poderia nunca mais voltar para casa, mas ela e as crianças ficariam bem.


4.


"O que acham da casa?"


"É antiga, mas está bem conservada."


"É o que achamos também. Há móveis velhos aqui, nunca reclamados pelos descendentes da família, e o antigo corretor não quis vendê-los para desocupar o imóvel."


"Por que?"


"Dizem que são mal-assombrados."


"Chamem um exorcista ou um pesticida. Alguma coisa deve servir para purificar a casa."


"Tudo já foi tentado. As pessoas continuam ouvindo barulhos, vozes, janelas batendo, cheiros estranhos. Ninguém tem coragem de passar uma noite aqui. Até uma seance já foi tentada."


"O que aconteceu?"


"O fansma ou fantasmas que habitam essa casa não gostaram da tentativa de comunicação e destruíram tudo. E você sabe, depois das histórias de Lovecraft ninguém mais tem coragem de se envolver com isso."


"Bobagem!"


"E então, vocês vão querer comprar a casa?"


A americana deu uma boa olhada na sala com os móveis velhos e a antiga lareira coberta de cinzas velhas. Caminhou até o corredor principal e analisou a enorme escadaria que dava para o segundo andar. A sala possuía diversos janelões que íam quase do chão ao teto, como era costume em antigas residências de estilo Tudor, entretanto, ali era escuro e envolto em sombras, como se a escuridão habitasse naquele lugar. Esse pensamento lhe deu um calafrio. Instintivamente ela agarrou-se ao braço do marido, procurando amparo e calor.


"Vamos ver mais casas. Esta fica sendo nossa segunda opção, caso não nos agrademos de mais alguma casa."


"Eu lhes garanto que é a mais barata."


"Concordo, por isso é nossa segunda opção, mas sairá caro se tivermos que revendê-la. Pois então, vamos ver a próxima casa da lista."


A americana se drigiu rapidamente à saída, muito feliz e aliviada por se ver fora daquele ambiente, seguida do marido. O corretor deu uma última olhada para o interior da velha residência, e por um momento, ele poderia jurar ter visto uma velha senhora o observando do alto da escadaria, mas aquilo era impossível. Ele julgou que fosse ilusão de ótica ou que sua mente estivesse lhe pregando peças. Pelo sim e pelo não, ele se benzeu e bateu os pés na soleira da porta.


5.


Grace exigiu ver os dentes das crianças. Estavam impecavelmente limpos. Ela não gostaria de ser chamada a atenção na escola de seus filhos, quando a guerra acabasse, pois ela haveria de acabar um dia, e as crianças voltariam a estudar. Enquanto isso ela os tratava o melhor que podia, pois mesmo sendo uma mulher abandonada pelo marido, ela poderia se vangloriar de ser uma excelente mãe, nunca deixando que nada lhes faltasse, protegendo-os da luz do sol, e mantendo a casa em ordem.


Um dia, quando seu marido voltasse da guerra, eles poderiam viver felizes como era pra ser. Até lá ela dava ordens aos empregados e cultivava sua horta no quintal. Exigia a limpeza com lixívia e óleo de cedro, e ainda corrigia as tarefas escolares dos filhos. Algum dia, eles avançariam do período da idade média, ela tinha certeza.


"Pode nos contar a história, mamãe?"


"Claro, meus bebês, mas por que não uma outra história, mais alegre?"


"Queremos essa, mamãe!"


"Está bem!"


E Grace pôs-se a ler a história de Medeia, mais uma vez, para embalar o sono de seus filhos.


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