O Grande Palco da Vida escrita por Celso Innocente


Capítulo 19
Canarinho da cidade.


Notas iniciais do capítulo

Estou mais contente pois a estória ganhou novos leitores.
Ah! Obrigado ao amigo Dylan pela linda recomendação feita.



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Quinze de Julho de um mil novecentos e oitenta e um, quarta-feira de manhã, eu e Regis acertávamos o contrato com o senhor João Batista. Quando entramos, o produtor, que estava sentado, mesmo antes de nos cumprimentar, já começou a caçoar de Regis:

— Como o menino tá bonito! Ficou rico é?

— Não senhor! — Negou Regis, que realmente estava muito bem vestido. — Viemos pra uma conversa especial.

— O disco está pronto e já estamos começando a distribuí-lo — disse-nos o produtor.

— O senhor vai dar nas rádios? — perguntou-lhe Regis.

— Que conversa doida é essa, moleque?

— Distribuir discos nas rádios! — corrigiu Regis.

— Ah bom! Mas só vou distribuir nas principais rádios do Brasil. As demais compram! Caso contrário acaba ficando muito caro pra gente.

— Ou seja — protestou o menino. — Da outra vez o senhor deu discos de graça para as rádios pequenas, agora as pequenas que se danem e o senhor dará disco para as grandes?

— É isso!

— É injusto!

— A vida é injusta, menino! — riu o produtor. — Naquela época as rádios grandes não tocariam seu disco!

Pensou um pouco e prosseguiu:

— Não é isso canarinho?

— Espera aí — interferi. — Antes o senhor chamava o garoto de outra coisa, agora chama de canarinho. Por quê? Nova gozação?

— Não! É sério!

— O senhor vai dizer que eu depeno o canarinho... ou o sabiá!... Não é isso? — alegou Regis, ainda pensativo sobre o caso das rádios pequenas.

— Você é quem está confessando, não eu! — caçoou João Batista.

— Confessando nada! Estou completando o que o senhor quer insinuar. De quem é o canarinho?

— É seu e você pode depená-lo à vontade!... Mas ele vai sofrer!

O produtor se levantou, entrou em outra sala e voltou a seguir com um disco nas mãos, dizendo:

— Canarinho é o nome de seu novo disco, como você mesmo pediu. O que você depena mesmo é o sabiá. Pode ver que a mão tá cheia de pelos!

Regis olhou para as mãos, depois apanhou o disco. O produtor continuou:

— Ah punheteiro sem vergonha!

O menino sorriu e eu também. Não pelo gracejo desrespeitoso do produtor, mas sim pela beleza do long-play, com a foto de roupa esporte à frente da mansão, impressa na capa e contracapa, e que tinha o título:

“CANARINHO DA CIDADE”

O mais importante, era que estava, além de muito bonito, muito bem feito mesmo. Na capa, além das duas fotos o nome “REGIS MOURA”, o nome dos músicos e compositores, havia também toda a ficha técnica

Após examinarmos com muita atenção o belo disco, Regis lhe perguntou:

— E então, agora o senhor poderá me contratar?

— Está com tanta pressa, garoto! O que você pretende?

— Pretendo ganhar dinheiro! Eu preciso dele!

— Você ganha muito dinheiro em seus shows. Até já trocou de carro! Trocou de roupa! Nem eu tenho uma roupa tão chique! Está cada dia mais rico.

— O senhor é quem pensa! — protestou o menino. — Papai continua pagando aluguel.

— Sabe o que é senhor João — interferi. — Regis precisa mudar pra cá. No interior é muito difícil de contratarmos shows, divulgar em televisão…

— E por que ainda não mudaram?

— Sem dinheiro! Como? — aproveitou Regis.

— Este disco de agora vai lhe dar muita fama — continuou João Batista. — Se vocês ainda não ficaram ricos, irão ficar agora.

— Mas eu preciso ter um contrato! — insistiu Regis. — Preciso de uma segurança!

— Eh carrapatinho... que gruda na pele mais sensível que a gente tem no corpo! Dá uma trégua, garoto!

— Trégua! Como poderemos ter trégua se a vida não deixa?

— Tá querendo falar difícil, o menininho! Não tá exagerando pros seus oito anos não?

— Dez! — corrigiu Regis. — Bem vivido!

— Está bem, carrapatinho de déeeez anos! Faremos um contrato com você. Vocês estão recebendo direitos autorais?

— Regis não tem composições gravadas! — neguei.

— Mas você tem! Recebeu alguma coisa?

— Eu sempre recebo. É pouca coisa, mas sempre ajuda.

— Outra coisa batedor, você já fez seu horário de músico?

— Primeiro, por que o senhor não me chama pelo meu nome, ou pelo menos, por que não arranje outro apelido? Este é muito esquisito!

— Gracinha! — caçoou João Batista. — Isto não é apelido! É apenas um… adjetivo.

— Já lhe disse muitas vezes que não sou, não faço, não gosto!

— Quem garante?

— Só tenho déeeez anos! — declarou o menino, sério.

— E daí! Quando eu tinha oito já gostava de garotas!

— Nem todos somos iguais!

— Por que os dois não chegam a um acordo e mudamos de assunto? — pedi. — Não estamos aqui pra discutirmos interesses?

— O que estamos discutindo é interesse! — afirmou o produtor. — Interesses amorosos do bate… de Regis!

— O senhor perguntou se ele já tinha horário de músico! Ainda não tem! — neguei, tentando voltar ao assunto de interesse.

— Como não tem? Ele já é considerado profissional há quase dois anos!

— Mas ainda não fizemos!

— Nunca houve problemas com fiscalização? Nunca embargaram nenhum de seus shows?

— Graças a Deus não! — insinuei.

— Pro bem de vocês, quero que providenciem isto de preferência ainda hoje. Vai que Deus deixa de espantar os fiscais, então vocês se ferrarão. Ainda mais Regis sendo criança!

— Aonde precisaremos ir e o que deveremos fazer? — perguntou-lhe Regis.

— Darei o endereço. Chegando lá será necessário fazer um teste de músico. Mas vocês levam um disco que será aceito como teste.

— E quanto a nosso contrato? — insistiu o pequeno.

— Você perturba. Não, garoto?

— Como já lhe disse, preciso ganhar!

— Parece mesmo um carrapatinho! Não Willian? Gruda e não solta mais!

O produtor levantou-se e seguiu até a outra sala, onde falou com a secretária. A seguir, retornou, tornou a sentar-se e perguntou a Regis:

— Canarinho, quanto você quer ganhar de salário?

— Por mês?

— Claro! Não espera que eu lhe pague por dia! Ãh?

— Minha pergunta não foi cretina! Papai e Willian ganham por hora!

— Papai e Willian trabalham em empresas especiais!

— Vocês dois só resolvem na faca, não!? — ajudei no sarcasmo.

— Mas eu amo este garoto! — alegou o produtor. — Nossas brigas são de amor.

— Sartei! — negou Regis.

— Como é, garoto? Você não gosta de mim?

— Por amizade! Não por amor!

— Ora canarinho! Está com vergonha de que?

— Vamos ao que interessa! — insistiu o pequeno, bravo de verdade.

— Até parece hominho! — Riu o produtor.

— Sou homem!

— Duvido!

— Quer que eu tire a calça?

— Claro que quero! Já demorou muito!

— O que o senhor acha que eu sou pra ficar tirando a roupa em qualquer lugar?

— Pensei que fosse homem! Mas não tem problema, pra nós aqui o importante é que você cante bem! Nem precisa ser homem pra isso!

— Sou homem! — insistiu o menino, bravo. — Muito macho!

— Deixa pra lá! Meu homem!... Quanto você quer ganhar de direitos por mês?

— Não sei resolver isso! — negou Regis. — Você sabe, Willian?

— O senhor é quem deve fazer uma proposta. A gente não tem base nenhuma sobre isto. — neguei.

— Pedi pra secretária fazer um contrato semelhante ao que fiz da outra vez.

— Igual?! — admirou-se Regis.

— Só que o de agora é verdadeiro!

— Setenta mil... Por mês?

— Você gosta de dinheiro! Não pivete?

— Claro! Preciso dele. Mas não sou pivete!

— Pedi a ela pra fazer um contrato por dois anos, com direitos de duzentos mil cruzeiros por mês. Está bom assim, senhor Regis de Assis Moura?

— Está pouco — insistiu o menino, rindo.

— Se você tivesse provado sua masculinidade eu teria lhe oferecido o dobro. Mas como você não me provou nada…

— Se for pra ganhar bem eu tiro toda a roupa!

— Confessando, não? Pelo dinheiro faz qualquer coisa!

— Qualquer coisa não senhor! — negou o pequeno, bravo. — Tiro a roupa pra provar que sou homem!

— Você já viu minha secretária?

— Já!

— O que achou dela?

— Muito bonita!

— Se ela pedisse pra você tirar a roupa você tiraria?

— Não é de sua conta!

— Quem lhe ensinou a ser mal educado com os mais velhos?

— Não sou mal educado com ninguém! Apenas trato os mais velhos com o mesmo respeito que eles me tratam.

— Saiba garoto, que além de ser mais velho do que você, acabo também de me tornar seu patrão. Está me entendendo? Ou se esquece de que posso demiti-lo a hora que quiser?

— Não acredito que faria isso — deu de ombros, o menino.

— Pois experimente continuar sendo mal educado comigo.

— Levo meu currículo pra outra empresa — tornou a levantar ombros, o menino.

— Hum! Tá esnobando mesmo, o pivetinho! O que é currículo?

— Sei lá! — os ombros ajudaram na negativa. Pensou um pouco. — Mas eu levo!

A secretária entrou, trazendo o contrato preenchido em três vias. O senhor João, depois de fazer gestos com os olhos para Regis, insinuando a beleza da moça, leu, assinou-o e me entregou dizendo:

— Assine as três vias.

Li às pressas e assinei as três vias. Então devolvi ao senhor João, que me entregou uma delas, dizendo:

— Quer dizer que você concorda com tudo que está aí?

— Tudo bem!

— Você leu com pressa, sem se preocupar com todo o conteúdo. Saiba que por dois anos vocês não podem levar o cur...rí...culo pra lugar nenhum! O sabiázinho terá que me aturar... Terá que me respeitar e não poderá solicitar aumento de vencimentos.

— Concordo.

— E o sabiázinho não protesta em nada?

— Não! O que Willian aceitar estou de acordo. O único problema é que nosso dinheiro desvaloriza todo dia.

— Ah molequinho! Não passa nada? Como você aguenta esse pivete te perturbando sempre?

— Regis é um ótimo menino!

— Mas de vez em quando leva algumas cintadas. Não?

— Já foi esse tempo! — insinuou Regis tristemente.

— Bem que precisa de vez em quando!

— Sei ser eu! — riu ele. — Não preciso de cintada!

Que eu soubesse, desde o incidente com o circo, acho que seu pai entendeu que espancar não resolve.

— Atrás do contrato, acrescentei um parágrafo que diz que este valor será reajustado uma vez por ano, com base no famoso igepe. — dirigiu-se a Regis. — Sabe o que é isso, menininho esperto?

— Deve ser algum negócio que corrige dinheiro! — O retrucou, zombeteiro.

— Índice Geral de Preços. Se um dia você deixar de ser cantor, vou te contratar pra ser meu contador. Pô meu! Você parece ter saído de uma faculdade!

— Prefiro continuar cantando.

— Falando sério, meu canarinho, sinceramente você vai ser um grande artista. Não esquente a cabeça com minhas besteiras não. É tudo brincadeira idiota!

— Sei disso! — riu Regis, apanhando o contrato de minhas mãos para ler.

— O pagamento de seus vencimentos será creditado em sua conta corrente, no mesmo banco onde é depositado seus direitos autorais. Tudo de acordo?

— Tem um dia pra esse depósito? — perguntei-lhe.

— Todo dia quinze, ou próximo dele. Está no contrato.

Nosso contrato venceria em quatorze de julho do ano oitenta e três.

— Repetindo — insistiu o produtor. — Durante a vigência deste contrato não há reajuste de vencimentos.

— Nadinha, nadinha? — insistiu o menino.

— Nada de nada! Só o igepe. O que até pode acontecer é a produção de um outro disco. Não garanto que faremos! Do primeiro pro segundo, foi rápido porque o primeiro é só um chamativo; o segundo é que vem pra dar lucro. Poderemos também vender seu passe de artista pra outra empresa...

— Passe! — Riu o menino. — Não sou jogador de futebol!

— Viu só! — emendou o produtor. — Você também vale alguma coisa! Se seu pai concordar, lhe dou dez centavos pra levá-lo pra mim!

— E eu lhe dou um milhão de dólares pra vê-lo longe de mim!

— E eu estou perdido! — Protestei. — Não sei o que é serio e o que é sarcasmo!

— É isso – continuou João. —Não venderemos o passe do canarinho. Poderemos até fazer quebra de contrato, com acordo por ambas as partes. Depois você lê aí no verso que está tudo explicado.

— Muito bem! — concordei. — Estamos de acordo!

— E o endereço pra vermos horário de músico? — perguntou-lhe Regis.

— Bem lembrado! Verei isso pra vocês.

Foi até a secretária, onde conseguiu o endereço do Ministério da Educação e Cultura e nos entregou.

— O senhor pode me vender uma caixa de discos? — pedi.

— Estamos aqui pra vender, rapaz! Se você passar amanhã cedo, estará aqui à sua disposição.

— Mas precisamos levar um lá no MEC, agora! — aleguei.

— Pode levar este aqui.

Entregou o que estava sobre a mesa para Regis, dizendo:

— É um presente pra meu amorzinho.

— Eu quero que o senhor mande cópia deste disco, para as mesmas rádios que o senhor enviou o primeiro! — exigiu o menino, sério.

— Tais brincando! — riu o produtor.

— Não estou!

— Vou enviar para as grandes! As pequenas... Com exceção de algumas, como as de suas cidades... Não vai dar!

— Eu pagarei cada um destes discos!

— Vixi! — surpreendeu-se o produtor. E eu também. — Tá podendo, o galãzinho!

— Desconte de meu contrato! Quantas vezes forem necessárias!

— Tudo bem! — gesticulou o produtor. — seja feita vossa vontade!

— Isso é com Deus — foi incisivo o menino.

— Acabo de vender algumas centenas de discos.

— E eu acabo de entrar na casa dos grandes sem abandonar os pequenos.

— Se o Willian concordar farei isso, descontarei em seus vencimentos e lhe prestarei contas.

— O Willian concorda com o que eu concordo — franziu os lábios, em leve sorriso decidido.

Dalí seguimos a um restaurante.

Já sentados à mesa percebi que ele estava pensativo.

— O que há Regis? — perguntei-lhe. — Algum problema em mandar discos para as pequenas rádios?

— O que é... punheteiro?

— Como? — embaracei-me por ser tomado de surpresa.

— Aquilo que o João Batista me chamou!

Como falar de sexo na hora do almoço com uma criança? Seus pais, conservadores, jamais falaria com ele sobre esse assunto. E eu... Também não estava preparado.

— É... O menino que brinca com seu pênis! — tentei ser limitado.

— O que é pênis? — perguntou-me sério.

— Jura que você não sabe?

Deu de ombros, me olhou sério e concluiu:

— Vou saber agora. Se você souber me explicar!

— O órgão sexual masculino.

— Órgão genital é a mesma coisa?

— Isso!

— Depenar o sabiá... é a mesma coisa?

— É!

— Por que você não fala dessas coisas comigo?

— Seu pai fala?

— Claro que não! — concordou ele. — Meu pai é antiquado! Por isso você precisa falar! Não quero crescer acreditando que nasci vindo de uma cegonha!

— Você acredita?

— Não sou burro! Nasci por que meu pai transou com a minha mãe! Mas preciso saber mais! Você é meu pai liberal!

A maior gratidão que ele poderia ter por mim, era a confiança em me chamar de pai. E sua hiperatividade o fazia saber disso.

— Seu pai não transou com sua mãe! O que eles fizeram é amor. O que gerou um lindo fruto. Transar é um encontro casual entre dois quase desconhecidos que acabam em cama de motel ou bordel.

— Deu na mesma — balançou os ombros. — Quero que fale comigo sobre isso.

— Devo agir como João Batista? — perguntei-lhe.

— Não senhor! — negou bravo. — Não gosto de gozações! João Batista é um depravado! Deveria me respeitar como criança! Você deve falar comigo, como um pai que se preocupa com o bem estar do filho pré-adolescente.

— Já!? — admirei. — Você se acha pré-adolescente?

— Sei lá o que sou! — deu de ombros. — Me tratem com respeito e amor! Prometo que eu retribuo.

— Você é uma criança especial, Regis.

— Todas as crianças são especiais, Willian! Embora muitos adultos pensam que elas são bichinhos de estimação.

— Onde você aprende a ser assim?

— Com você! — foi incisivo.

Após o demorado almoço fomos providenciar horário de músico.

Enquanto caminhávamos pelas ruas de são Paulo, decidimos que ali, realmente deveria ser nosso local de morar, pois seria ótimo para que fizéssemos a divulgação correta do disco e conseguiríamos melhores shows.


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Notas finais do capítulo

Desculpe-me pelo assunto tabu nos diálogos com João Batista e também com Willian. Sei que tenho leitores muito jovens, mas não consigo excluir tais comentários sem prejuízo na estória.



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