Amigo escrita por slytherina


Capítulo 1
Amigo é coisa para se guardar ...


Notas iniciais do capítulo

Desafio de Março "Grandes Mulheres da Ficção"



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"Meu nome é Isabelle. Fui criada em um rancho à moda antiga. Alimentando os animais domésticos, carregando águas dos poços, e matando para comer. Meu pai era um survivalista, isto é, ele acreditava que deveríamos estar preparados para o fim do mundo, ou desastres naturais, sem dependermos da ajuda do governo ou de uma força maior, para conseguirmos sobreviver e perseverar."


"Isabelle! Já está na hora. Os animais esperam pela comida. Vamos, levante!"


A vida em um kibutz não era fácil. Nem sua mãe. As pessoas acham que mães judias são superprotetoras e maternais. Ledo engano. Pelo menos sua mãe não era assim. Ela era rígida. Administrava a fazenda comunitária com mão de ferro. Agia como um homem, intolerante, forte e corajosa. Ela exigia a mesma disposição férrea de seus filhos. Isabelle não via a hora de ser independente e mandar no próprio nariz.


À tarde, já tinha feito suas tarefas, e agora se molhava toda, consertando o encanamento da irrigação que parara de aguar as plantas. Um cano enferrujado e furado. Uma luxúria em um continente árido e seco como o Oriente médio. Isabelle concertou o encanamento, e viu com gosto a água fluir para a plantação. Um colega de trabalho a abraçou por trás carinhoso, mas ela sabia melhor que ele. Empurrou-o fazendo-o cair no chão.


"O que pensa que está fazendo, Adrien?"


"Ora, eu gosto de você. Quero que seja minha namorada. Que mal há nisso? Eu sei que você gosta de mim."


"Minha mãe vai te esfolar vivo."


"Ela não é tão má assim, não é?"


"Não se meta com ela. Ia ser muito humilhante apanhar de uma mulher."


O rapaz se levantou e ajeitou as roupas enquanto olhava desconsolado para Isabelle, que adotou a postura da mãe, e ficou encarando-o incisivamente. Ele se foi. Isabelle se perguntou quando foi que começou a se parecer com sua mãe.


O pai de Isabelle veio em visita ao kibutz e a levou consigo para uma caçada no deserto. Ambos usavam turbantes e túnicas compridas como os árabes, não porque quisessem parodiar seus vizinhos, mas porque o sol do deserto era inclemente, podendo matar de insolação e queimaduras, antes da pessoa definhar de sede e fome.


Seu pai fez tocaia sobre um monte próximo. Ficou com o rifle preparado, até que um antílope apareceu. Um disparo e ele errou por pouco. O animal fugiu. O pai lamentou o azar e ensinou a filha a mirar e atirar no próximo animal. Isabelle teve mais sorte. Matou uma lebre. À noitinha armaram barraca e dormiram sob o céu do deserto. Antes mesmo do sol nascer se puseram a fazer o trajeto de volta.


"Minha avó era diferente. Uma mulher idealista que confiava na bondade inerente do ser humano. Ela acreditava no bem e no poder dos homens para mudar seus destinos. Ela entrou para a política e lá encontrou seu fim. Um terrorista atacou um órgão público onde ela estava. Ela foi um dos muitos inocentes que perderam a vida em nome da causa fundamentalista. Até hoje me pergunto se a vida de minha avó teria sido poupada, se ela se limitasse a cuidar do próprio umbigo e salvar a própria pele, como era o lema de meu pai."


"Filha, tem certeza? Pode fazer outras coisas na vida."


"Pai, o senhor me ensinou a sobreviver no deserto. O senhor me ensinou a lutar pela minha vida. Não entendo por que se opõe a que eu entre no exército."


"Sou a favor da sobrevivência do homem frente às adversidades. Não gosto que você seja só um peão seguindo ordens alheias. Você pode morrer em combate, já pensou nisso?"


"Sim, já pensei. Nada me orgulharia mais do que morrer pelo meu país."


"Desista! Ela já está de cabeça feita. Nada do que dissermos mudará sua opinião."


Isabelle olhou para sua mãe, sabendo que no fundo, a mesma tinha orgulho dela. Isso era engraçado. Isabelle sempre achou que se parecia mais com o pai, mas cá estava ela seguindo os passos da mãe.


"Entrei para o exército e me tornei soldada. Era uma survivalista por profissão, e lutava pelo bem comum, como defensora de meu país. Sem dúvida morreria cumprindo meu dever, mas era assim que as coisas deveriam ser. Uma vez parti para enfrentar mais um dia de combate. Armada até os dentes, fui para o campo de batalha. Assumi meu posto e mirei no inimigo. Senti uma picada no ombro e logo tudo ficou confuso e fora de foco, até que mergulhei na escuridão. Acordei em queda livre. O instinto me fez procurar por um botão ou fecho para liberar o paraquedas. Isso salvou a minha vida."


Ela caiu em ambiente estranho e totalmente diferente da sua terra natal. Era uma floresta desabitada, sem sinal de presença humana, sem ruídos de animais. Consigo estavam a metralhadora e os artefatos militares, que garantiriam a sobrevivência em combate.


A mata densa, úmida e fria, era muito parecida com as florestas da américa do Norte, ou do extremo sul do trópico de capricórnio. Havia muitas árvores ali. A comida seria difícil de obter, mas provavelmente algumas raizes seriam comestíveis. Havia água também, em rios e lagoas, além da coleta da seiva de caules. E com certeza choveria nos próximos dias.


A sua frente a paisagem era ao mesmo tempo deslumbrante e assustadora. Haviam nada menos do que quatro luas no céu. Isso era tão surreal que significava algo terrível. Ou ela estava louca, ou estava em outro planeta. O que era pior?


"Royce, Edwin, Stans, Nikolai, Cuchillo, Hanzo, Mombasa, e eu. Sequestrados, e atirados em um planeta desconhecido. Forçados a somar forças e lutar por nossas vidas, para sobrevivermos em um ambiente hostil. E o que seria mais difícil, sobrevivermos uns aos outros.


Royce era o líder nato. Lógico, sensato e o único que não parecia querer devorar os outros como um animal faminto. Edwin era um médico, então, logicamente, seria nosso cuidador. Royce, Nikolai, Mombasa e eu éramos militares. Estávamos acostumados a seguir ordens. Cuchillo e Hanzo eram mercenários, enquanto Stans era o único criminoso condenado à morte. Mas dependendo do ponto de vista, nós todos poderíamos ser considerados criminosos ou predadores.


Royce era preciso e frio como uma máquina de destruição, mas por vezes eu podia jurar que vi um lampejo de humanidade naqueles olhos gelados. Ao menos ele não procurava matar a todos, como a princípio alguns de nós tentamos fazer.


Edwin era calmo, prestava atenção ao que conversávamos, além de ter boa índole e ser gentil. Gostaria apenas que seu instinto de sobrevivência fosse mais acurado. Afinal de contas não poderíamos nos dar ao luxo de perdermos nosso médico.


Nikolai tinha família esperando por ele em casa, e ele os amava. Aparte ser um turrão que tentava resolver tudo apertando um gatilho, poderia muito bem se adaptar em uma vizinhança suburbana, e dar festas para os vizinhos nos fins de semana.


Cuchillo sempre fora um homem que obedecia ordens. Ele procurava cumprir seu dever e ser leal ao seu patrão. Uma pena que seus negócios e interesses fossem ilegais, do contrário poderia ganhar o prêmio de funcionário do mês. Estou sendo irônica é claro.


Mombasa fora arregimentado no exército ainda criança. Fora treinado para dar a vida por seu país. Era uma realidade triste e brutal, mas era assim que as coisas funcionavam em sua terra natal. Ele tinha família e amigos esperando por ele, e no todo era um homem decente.


Hanzo pertencia à Yakuza. Fora subjugado e endireitado para tornar-se uma arma letal. Aqui neste planeta eu apreciava seu silêncio e recolhimento. Parecia confiável e honesto. Talvez não na terra, mas aqui eu confiaria minha vida a ele.


Stans era uma figura. Falastrão, amedrontado, irracional e inquieto. Fora condenado à pena de morte, não sei bem por que, mas ele era um de nós, um ser humano, a quem acolhemos em nosso grupo, e cuja vida velávamos."


O planeta em que estavam abandonados tinha seus próprios predadores. Um animal misto de javali os atacou em manada. Plantas venenosas, muito parecidas com as que tinham na terra. E o pior de todos, o inimigo invisível e letal, que usava ao mesmo tempo, armas fabricadas com paus e cipós, e lâminas, bem como explosivos. Ele os caçava, os matava, e exibia os corpos como troféus. Não havia como sobreviver, a não ser usando de todos os artifícios e armas de que dispunham.


"O que torna um homem um monstro? O desejo de viver a qualquer custo seria maior do que o desejo de ser decente, de fazer a coisa certa? Poderíamos assistir impassíveis à morte de nossos companheiros, sem sentirmos um pingo de tristeza e agonia? Um a um fomos caindo sob a ação do monstro alienígena. Ele brincou conosco como o gato brinca com o rato, como o leão encurrala o antílope solitário. Em nosso mundo éramos perigosos, aqui éramos abatidos como moscas. Tivemos que aprender a duras penas a confiarmos um no outro, a valorizarmos a vida um do outro, porque senão não sobreviveríamos.


O que seríamos nós se não déssemos a mão a alguém que nos acompanha em nossa jornada? Nossos amigos e companheiros de sofrimento? Seríamos como os monstros que nos perseguiam e aniquilavam. Seríamos predadores. Um dia, até mesmo o maior dos predadores encontraria um ser maior e mais forte, que o subjugaria e o destruiria. Essa é a lei do mais forte. Será que era isso que eu queria?


No passado eu agira friamente, por instinto. Estava com um companheiro de farda em uma patrulha, ele foi ferido e caçado por uma companhia inimiga. Eu poderia tê-lo salvo se atirasse no inimigo, mas eles estavam em maior número. Eu teria sido executada. Assisti covardemente escondida, a morte de meu companheiro, e essa culpa eu carregava comigo desse momento em diante.


Tentava agora agir diferente, mas não sei se isso aplacaria meu remorso. Nu fundo esse sequestro e caçada de que era vítima eram uma punição pelos meus atos. Eu sabia que merecia ser castigada. Eu não sairia viva dali. Talvez Royce e os outros, mas eu não."


Na fuga alucinada pela vida, Edwin, o médico, se feriu. Royce queria abandoná-lo, mas Isabelle não. Ela preferia morrer nas mãos do predador do que deixar mais um companheiro e amigo à própria sorte. Royce se foi, e Isabelle apoiou o amigo ferido para irem adiante. Quando finalmente caíram em uma armadilha, Isabelle teve uma surpresa.


"Sabe, aqui nesse planeta, eu encontrei meu lar. Não há mais convenções, leis, penas ou consequências. Aqui eu posso exercer o meu métier sem medo ou preocupações."


Edwin feriu Isabelle no pescoço com um bisturi envenenado.


"O que está fazendo? Eu te ajudei. Isso não significa nada para você?"


"Você não deveria questionar a natureza do escorpião."


"Tem razão." Royce falou às suas costas.


"Royce? Pensei que tinha fugido. Que bom que voltou. Isabelle precisa de ajuda."


Royce debruçou-se sobre ela para ver seus ferimentos, enquanto Edwin aproximou-se calmamente por trás.


"Você é realmente um homem de bom coração, Royce." Edwin falou meloso pelas costas do outro.


"Não, eu não sou." Royce virou-se rapidamente e enfiou uma faca de caça no estômago de Edwin, fazendo o outro estrebuchar sangue.


Isabelle assistia a tudo como a um sonho, com as luzes apagando-se lentamente diante de si, e um turbilhão ameaçava engolfar a todos na escuridão. Royce destruiu os predadores. Alienígenas e humanos. Ao fim daquela noite só tinham um ao outro para se apoiar e confiar. Observaram abraçados à chegada de mais predadores humanos, descendo de paraquedas. Sabiam que os predadores alienígenas logo viriam para a nova caçada. Seriam pegos no fogo cruzado. Precisavam se esconder e elaborar um plano de fuga daquele planeta.


"Com certeza morreríamos, mas ao menos teríamos encontrado coisas mais valiosas do que a nossa própria sobrevivência: a amizade e o respeito à vida. Parece que eu puxara mais a minha avó, afinal de contas."


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Notas finais do capítulo

Quase deletei esse texto porque não gostei dele.



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