Maldito seja, Sherlock Holmes.

Até o que está dentro de você, tudo que você mais despreza, sufoca, controla e esconde, te transforma num convite ao vício. Desde o seu rosto, sua máscara, passando por sua voz, que nunca articula nada de agradável, provavelmente ainda menos de sincero.

Não perca tempo em pensar que isto me chateia. Fique à vontade para usá-la como disfarce. Lembre-se bem do que aprendemos juntos sofre disfarces. Quanto mais me divirto com seus disfarces, mais me delicio na beleza de cada pequena linha e tom dos seus vários autorretratos, e mais tenho certeza do quanto você é lindo, por dentro e por fora.

Esse efeito deliciosamente agridoce, hipnótico, erótico, nunca falha em me acalmar e se torna uma sensação constante em meus ouvidos. Uma sensação que conduz aos labirintos intrincados da sua mente, que se transformam no cenário dos meus sonhos.

E o seu coração, relíquia entre os tesouros do seu palácio mental, que você, que é tão inteligente, cometeu a burrice de jogar fora, para viver sob uma máscara fria!

Por mais linda que seja, sua máscara nunca será mais adorável que seu rosto, o seu verdadeiro. O reflexo do seu coração, uma relíquia que você fez a burrice de largar no calabouço do seu palácio. Não a abandone, não a desperdice, como você faz com praticamente todas as suas qualidades, fora o intelecto.

Ao contrário das forças mentais em que você tanto confia, seu coração nunca poderá ser simplesmente desligado. Já que você não o quer, que tal dar o braço a torcer, ao menos desta vez, e cedê-lo para mim?

Vou tentar pedir do jeito certo, tantas vezes quantas forem necessárias. Em admiração à memória que você guarda de mim, ao silêncio e à lealdade que você dedica à minha suposta morte, prometo que vou guardá-lo, com todo o amor que eu puder ser capaz. Não me importa que ele seja frio e duro como a pedra. Será um lugar inabalável e seguro, a melhor fortaleza do mundo, disponível gratuitamente para esconder minha proteção. E também será a oportunidade perfeita para ficarmos quites. O castigo por violarmos os tesouros um do outro. Arrisquei a vida do seu melhor amigo, te droguei e te derrotei. Fiz uma bela bagunça em seu precioso palácio mental. Você roubou a fonte de segredos que me mantém viva, o coração que me sustenta fora do meu corpo.

Então vou enviá-lo para você. Será o seu presente de Natal. Nunca me importei com datas mas queria, pelo menos por um instante, comemorar com você e a meiga família disfuncional reunida à sua volta. Adoraria me acomodar junto da lareira, com biscoitos, doces e bebidas quentes, e me deliciar ouvindo o som do seu violino. Que surpresa agradável.

Quem diria que um homem acostumado a se fingir de máquina, e a se gabar das suas capacidades lógicas, teria um lado poético e sonhador, que presenteia com música, expressão espontânea, recém-saída da sua alma, as pessoas mais importantes de sua vida.

De onde você rapidamente me expulsou,em obediência inconsciente ao seu irmão implicante. Está tão envergonhado em se lembrar da mulher que te bateu? Da mulher que te derrotou?

Nunca diz meu nome, nunca responde minhas mensagens. Sempre apático e distante. Mas a minha mensagem especial, seu presente, é o seu brinquedo favorito: um enigma. Um convite irresistível ao vício; um ataque irresistível à resposta.

Ele contém a minha mente, que te intriga, gostaria de dizer que te fascina; e o meu coração, como expliquei quando nos conhecemos. Posso cedê-lo à vontade, é o tipo de enigma que você provavelmente vai demorar muitas vidas para aprender. Afinal de contas, definitivamente você não sabe lidar com corações. Nem os que você invade.

"Você poderia ter usado qualquer número, e vencido o jogo.Poderia sair por aquela porta, com tudo que exigiu em suas mãos. Por que se deixou levar pela diversão?"

Seu imbecil!! Acha mesmo que eu usaria um número?! Você é um cientista, um lógico; adora números. O celular estaria destravado em menos de cinco minutos.

"Isto é muito mais secreto que a senha do seu cofre ou as suas medidas. Isto é a sua vida, a sua intimidade, o seu coração; e você nunca deveria deixá-lo dominar sua cabeça."

Sim, isto é mesmo muito íntimo. É um jogo íntimo e perigoso, o tipo de jogos que eu mais adoro. Um jogo de implícitos, de segredos profundos, como você também adora. Não adianta fazer todo esse discurso sobre química, ambos sabemos que você precisou do seu coração para resolver o enigma desta vez. E que você adorou.

I am Sherlocked.

Apenas quatro letras e um trocadilho com o seu nome. Para quem observa de fora, parece tão banal e vulgar, quase uma brincadeira obscena. É de fato um anagrama, um jogo de palavras. Também é um jogo de sons, de sentimentos. Entrelaçados, não são defeitos, nem sinais de derrota.

Você só precisava lembrar da pista dada pelo seu fã, com a mensagem da terceira vítima: São os sons da vida, Sherlock.

Os seus ouvidos sensíveis e bem treinados não servem apenas aos combates intermináveis e sem sentido com que você adora se distrair, fugir do tédio matando dragões, na expressão antiquada e pomposa do Governo Britânico. Você é um músico excelente, e tem a sensibilidade de um poeta. Está sempre atento aos sons da vida; ao clima e às cores que eles lhe emprestam; à maneira como eles a embelezam e a tornam emocionante, viciante.

E para devolver a gentileza de me convidar a desfrutar do seu vício, eu o desafio a descobrir e desfrutar do meu. É muito mais do pareço ostentar...

"Você se rebaixou ao ridículo e tirou a roupa apenas para causar impressão."

Sua voz deliciosa finge a decência de um cavalheiro vitoriano, na tranquilidade arrogante com que tenta me humilhar com essas palavras. Que desnecessário.

Não reparou que, desde a nossa primeira conversa, não precisamos de disfarces, nem fingimentos? Admita o quanto adora a brincadeirinha que anuncia a chegada das minhas mensagens. Você não tem a mínima vergonha de recebê-las e lê-las imediatamente, mesmo em momentos inesperados, constrangedores para o senso comum; na presença dos seus raros, preciosos e teimosos entes queridos. Seu amigo chega a contá-las, de puro ciúme. Sua avó postiça logo, logo, vai te bater por não tirar o áudio "rude" que as identifica.

Sim, elas são pistas, doses pequeninas, em gotas, de mistérios, seus narcóticos favoritos. São pistas para a chave da minha proteção, que te dei de presente. Mas não são como as que você está acostumado. Para decifrá-las, precisa gostar delas, do exato jeito que são, assim como você gosta do seu vício. Precisa se lembrar dos sons com que nos comunicamos, e dos sons que nunca emitimos, nossos nomes.

Para desvendá-la não precisa formar um raciocínio analítico, ou usar uma fórmula. Precisa de mais que todo o esforço do seu palácio mental, precisa dos sentimentos que você tanto despreza, para descobrir as quatro letras que faltam para formar um anagrama, uma figura, uma frase.

Uma frase tão contraditória, claramente estranha quanto o seu nome e o nosso envolvimento. A melhor e a pior maneira de te fazer perceber que você se tornou o meu vício. Está no meu coração, e só decifrou o código porque eu também estou no seu. Somos a proteção e a destruição um do outro.

I am locked.

A tela do celular, figura da minha vida quando sob ameaça, se diz trancada, com senhas, cadeados e explosivos, a todos os intrusos e interessados.

Você não precisa aprender a protegê-la, mas simplesmente a guardá-la com carinho. Minha vida, meu nome, minha mente, meu coração, e a maneira como ele recorda você. Segredos muito mais íntimos e perigosos que os caídos às mãos do Homem de Gelo. Tudo que só nós dois sabemos um sobre o outro. Um autorretrato fiel e sem disfarce, da pessoa sob a máscara chamada por alguns como a Mulher.