All Out War escrita por Filho de Kivi


Capítulo 29
That Night, a Forest Grew


Notas iniciais do capítulo

Hei!

E aí galerita, como estão?

Trago aqui um capítulo inédito de All Out War, saindo quentinho do forno! Para aqueles que estão aguardando a volta de Glenn, bom, ainda não será dessa vez... Mas não se preocupem, logo lhes entregarei um capítulo totalmente focado no asiático e em sua nova vida no Hill Top, ainda tentando se reconstruir após os brutais acontecimentos que lhe acometeram...

Antes de mais nada, não posso deixar de agradecer a minha fiel escudeira Menta, que está sempre por aqui, firme e forte! Você já faz parte desse universo, e é peça fundamental para que AOW siga em frente! Kiitos, cara amiga!

Como prometido, o capítulo de hoje é totalmente focado no Garden, a comunidade onde Doc Hall tenta recomeçar sua vida. Teremos POVs explicativos, que farão com que entendam os pilares da comunidade, e conheçam os seus principais moradores. Além, é claro, da primeira aparição da tão citada Imperatriz!

POV Mr. Hanso, POV Patricia e POV Hall no final do capítulo... Espero que curtam!

Acho que é isso... Ah... AOW está de capa nova! Estamos cada vez mais próximos da Guerra! Portanto, resolvi colocar os brasões das comunidades... Acho que ficou legal!

Boa leitura!



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A primeira pancada estremecera o tronco seco da árvore que Hanso tentava derrubar. Acostumado ao trabalho braçal, o homem de cabelos grisalhos e barba cheia, não parecia sentir os cinquenta e sete anos já completos. O porte físico naturalmente avantajado, os braços fortes e a postura austríaca enraizada em seu sangue, ajudavam a moldar a imagem firme e séria do ex-fazendeiro, o que impactava em um espontâneo e imediato respeito de todos a seu redor.

Enxugando as gotas de suor que já tomavam conta de sua testa, marcada por rugas de uma vida inteira de trabalho, o experiente sobrevivente tomara fôlego, para logo em seguida desferir mais duas machadadas de encontro à árvore, que tombara com o próprio peso.

Por mais cansativo que parecesse, Hanso preferia passar um dia inteiro derrubando árvores, caçando ou exterminando carniceiros, do que permanecer horas a fio do lado de dentro dos muros do Garden. Manter sua mente focada no trabalho ajudava a manter sua própria sanidade.

Quantas vezes ele já não pensara em partir solitário, percorrendo as estradas até encontrar os homens que um dia assassinaram sua filha. Que levaram o seu bem mais precioso, a melhor coisa que Hanso já fizera na vida.

Sua Emillie.

Os mesmo sujeitos que ironicamente se autointitulavam os Salvadores. Um bando de milicianos sem alma, que há meses aterrorizam o Garden, levando sua onda de terror e subjugando os sobreviventes, arrastando-os ao limite extremo.

Apenas uma coisa impedia que ele tomasse a estrada em definitivo. O lenhador do Garden prometera a Eloise que ficaria ao seu lado, ajudando-a a tocar a comunidade nesse difícil período em que ela se encontra. Seria uma grande traição abandoná-la em prol de um fugaz sentimento de vingança.

Uma fome que tanto o consumira e que nunca poderia ser saciada.

— Perdido na floresta, Hanso?

Caminhando em meio ao matagal, Bill Flood, trajando as mesmas roupas que sempre utilizava quando saía da comunidade, aproximava-se de Hanso com um cigarro na boca e o rifle de caça apoiado no ombro. Na mão direita, Flood trazia um castor já estripado e sem pele.

Levantando o animal, o caipira quarentão, ostentando um já grisalho cavanhaque, abrira um sorriso antes de voltar a falar.

— O jantar já está garantido! – O homem dera uma gargalhada – Me dê um tomate, uma pimenta-calabresa, e eu transformo essa belezinha aqui em um manjar! pensando até em oferecer um bocadinho pra Imperatriz...

Bill era o grande faz-tudo da comunidade. Também acostumado à vida no campo, o simples sujeito não se escondia de nenhuma das tarefas propostas a ele, fossem elas caçar, pescar, carregar madeira, ou exterminar carniceiros nas redondezas.

Morando sozinho no Garden desde que perdera sua esposa para a nova realidade, Flood objetivara sua vida em ajudar os demais moradores. Nunca demonstrando cansaço e raramente reclamando de algo – com exceção do ódio nutrido pelos Salvadores, sentimento esse compartilhado por todos – o caipira conquistara o respeito e confiança da líder da comunidade, tornando-se então um dos membros de maior importância dentro do Jardim.

Hanso sabia que Flood também utilizava o trabalho como terapia, provavelmente por razões semelhantes as suas. Uma mente ocupada não deixa espaço para a loucura, era o que sempre dizia. O trabalho e o álcool pareciam ser os únicos analgésicos eficazes para suportar as dores impostas por esse insano mundo.

Bom, pelo menos para Hanso.

O lenhador sabia que havia outra atividade que também motivava Flood tanto quanto o trabalho. O relacionamento que o caipira levava às escondidas com Patricia, a enfermeira da comunidade, acabara caindo aos ouvidos de todos, que comumente comentavam aos sussurros sobre os encontros dos dois. Ao que parecia, apenas Lawrence, o marido de Patricia, desconhecia a traição. Ou fazia-se de desentendido.

— Tenho certeza que ela vai gostar! – Exclamou Hanso, devolvendo o sorriso – Achei que só fosse caçar amanhã... Você não estava ensinando o garoto a cuidar do perímetro?

Bill tragara profundamente o cigarro caseiro, expelindo a fumaça pelas narinas.

— Não... – O caipira cuspira em jato para o lado – Liberei ele hoje! Disse pra treinar com os outros garotos. Por enquanto prefiro que ele fique focado no football... Ainda não sei se ele aguenta o tranco!

Flood olhara brevemente para o céu.

— E tem mais... A Imperatriz deu uma missão pra ele... Aí já viu, né? O moleque ficou todo orgulhoso! Tenho medo que perca o foco...

Hanso meneou a cabeça de forma positiva.

— Ela sabe o que está fazendo... Ela sempre sabe! – Os olhos pequenos do lenhador focaram-se em Flood, semicerrando-se ainda mais – E não se preocupe quanto ao garoto! Ele tem o mesmo sangue da irmã... Tenho certeza que pode dar conta de qualquer tranco!

Bill acabara se tornando um conselheiro pra J.J. Cheever, o garoto que decidira ajudar o Garden de forma mais efusiva, assim como os membros da “linha de frente” o faziam. Inspirado em Flood, o jovem aprendera a caçar, a manusear um rifle, e a cuidar do perímetro do bosque, assegurando a limpeza da área.

J.J. também fazia parte de um dos três times que formavam a Liga de Arena Football do Garden, um campeonato de futebol americano adaptado, idealizado pela mandatária com o objetivo de criar uma atração semanal que pudesse desfocalizar os moradores de toda a merda em que estavam inseridos.

Jogando em um campo gramado dentro das limitações da comunidade, com direito a arquibancadas improvisadas, o quarterback dos Garden Redskins – que utilizava o uniforme do homônimo de Washington, encontrado em uma loja de esportes abandonada – parecia ter cansado de servir apenas como um bobo da corte, fingindo que a vida poderia ser tocada de forma natural, esquecendo-se do inferno situado do lado de fora dos muros.

Bill então o auxiliara, mostrando-lhe a realidade dos fatos, e de como o mundo pode engoli-los ao mínimo descuido. Apesar de aparentemente confiante, Hanso percebera que Flood criara um apreço pelo rapaz, e por isso parecia bastante cauteloso quanto a sua exposição aos perigos. No fundo ele sabia que J.J. não estava pronto.

— Quanto tempo faz?

Indagara Bill, os olhos direcionando-se para baixo, visivelmente preocupado.

— Sete... Oito dias. – Hanso precisara puxar da memória – Tenho certeza que eles voltarão logo... E quando chegarem, nossas preocupações acabarão!

— E se eles não voltarem, Hanso? – O caipira olhava seriamente para o lenhador – A Imperatriz já sabe o que fazer caso eles não voltem mais?

Hanso nada dissera.

— Nós já vimos isso antes... Sabemos muito bem o que aqueles demônios farão se não tiverem o de sempre.

Arrumando o machado em suas mãos, aquele que acabara de cortar a árvore, retorquira de forma direta.

— Acho que já sabemos a resposta...

Liderados por Marsha Cheever, a irmã mais nova de J.J., um grupo de cinco batedores partira do Garden a mais de uma semana, em uma desesperada missão em busca de suprimentos. Apesar de jovem, Marsha, que recebera o aval da líder do lugar para comandar a missão, sempre se mostrara muito mais ativa que o primogênito.

Hanso não contestara a decisão de Eloise, mas passou a martelar constantemente em sua cabeça sobre quais teriam sido as motivações da líder para destacar uma garota tão jovem em uma empreitada tão complexa. Havia algo a mais por trás disso, estava claro, mas o lenhador não questionava os métodos da mandatária. Não mais.

O acordo feito com os Salvadores determinava a obrigação do Garden em entregar metade de todos os seus suprimentos, medicamentos, e o que mais lhe fosse exigido, nas mãos dos milicianos. Caso o ‘contrato’ não fosse seguido à risca, as consequências seriam as mais graves possíveis. Não havia força bélica para enfrentá-los, portanto, apesar de cruel, a vida dos moradores do Jardim resumia-se agora em lutar em dois frontes pela sobrevivência.

O primeiro contra os mortos.

O segundo contra a falta de mantimentos.

Os estoques da comunidade estavam cada vez mais baixos. A criação de porcos, galinhas e as plantações no pomar não supriam mais a própria subsistência da comunidade, somado a obrigação em ceder metade de tudo o que produziam e coletavam, bom, podia-se dizer que o Garden estava chegando ao seu limite.

Talvez a utópica comunidade, que sustentava-se em um ideal esperançoso, em um local onde uma nova sociedade seria erguida, onde as pessoas seriam escolhidas pela comunidade e não o contrário... Talvez isso ruísse logo, logo. Aí, restaria torcer para que a barbárie não voltasse a imperar.

— Você que é mais chegado a Imperatriz... – Bill voltara a falar, enquanto Hanso começava a cortar o tronco em pedaços menores – Sabe se ela já decidiu o que fazer com o novato? Ele está andando por aí, ajudando com os porcos... Ela vai mesmo deixar que ele fique?

O lenhador juntara as duas mãos no cabo do machado, desferindo um violento golpe contra a madeira.

— Como eu disse, Bill... – Hanso não interrompera o seu trabalho – Ela sabe o que está fazendo! Precisamos nos assegurar que ele não foi enviado intencionalmente até aqui... Não podemos cometer o mesmo erro duas vezes!

O caipira concordara em um gesto, voltando a cuspir outra vez. Em meio ao matagal, uma estranha movimentação começara a se fazer presente. Pisando sobre as folhas secas em um caminhar cambaleante, um carniceiro desgarrado, deslocava-se na direção dos dois homens que conversavam tranquilamente.

Um rapaz magro, com suas roupas rasgadas e sujas de sangue, esticava os finos braços em direção a Hanso e Bill, movimentando as secas canelas, movido por uma fome insaciável. Os olhos leitosos arregalados, saltaram ainda mais das órbitas assim que o olfato entrara em contato com o suave cheiro de carne fresca.

Abrindo a boca e exibindo as podres presas, a criatura exalava um pútrido hálito, mesclado a um horrendo e desafinado grunhido, quase um sussurro.

Já acostumado a ação, Bill posicionara o seu rifle de caça, pronto para um certeiro tiro que eliminaria o perigo em poucos segundos. Analisando a conjuntura dos fatos, Hanso preferira aguardar, espalmando a mão direita e pedindo para que Flood não efetuasse o disparo ainda. Lembrara-se do pedido de Eloise, e apesar de não entender direito as motivações de tão estranha solicitação, o velho homem decidira acatar cegamente.

Mais uma vez.

— Esse não Bil... – O caipira, ainda mantendo a arma em posição, voltara-se para o lenhador – Ele terá outra serventia... Preciso que me ajude... E não poderá contar a ninguém o que iremos fazer!

*****

— Calma... Calma...

Lizzy mexia-se bastante enquanto Patricia tentava limpar o corte em seu supercílio. O ferimento de cinco centímetros não era o único contido em seu rosto naquele dia. Nem naquela semana.

Sentada em uma cadeira no que poderia ser chamada de sala de estar da casa de Patricia Peck, a mulher de curtos cabelos negros acostumou-se a visitar o lugar constantemente. Sempre acometida por arranhões e hematomas, a jovem costumava inventar as mais variadas desculpas sobre as causas de seus ferimentos.

Mas Peck sabia muito bem o que ocorria nos confins mais obscuros do Garden.

Lizzy Penn escolhera vielas questionáveis para atravessar o difícil caminho da sobrevivência. Mergulhada no álcool e nas drogas, a garota que assim como muitos perdera tudo o que amava, acabara jogando tudo para o alto, desistindo da própria vida e deteriorando-se pouco a pouco.

Era difícil não encontrá-la bêbada, largada sobre a cama de algum dos moradores, trocando sexo por comida. Ou mais bebida.

Tratada como um lixo por aqueles que a defloravam, Penn era sempre agredida durante as relações sexuais. Mas isso não parecia impedi-la de retornar para os mesmo homens, quando assim lhe convinha. A impressão que se tinha era que a verdadeira Lizzy há muito já havia se perdido. A jovem agora era como uma casca sem alma.

Mais um dos mortos vivos, só que vivendo do lado de dentro dos muros.

Peck esforçava-se, mas por mais que tentasse, não conseguia compreender como uma jovem tão bonita conseguira chegar a tal estado. No limite entre um ser humano e um animal. Todos ali lidaram com o sofrimento de formas distintas, mas como ela pôde ter aberto mão de sua própria dignidade? Tudo soava de forma muito escusa para Patricia.

Se bem que, refletindo bem, talvez as duas não fossem tão diferentes assim.

Patricia sempre sentia-se arrependida todas as vezes em que ia para cama com o caipira Bill Flood, mas ainda assim, retornava para os braços desse mesmo homem quando nova oportunidade surgia.

Ela sabia que Lawrence, o bondoso homem com o qual se casara há quase dez anos, não merecia ser traído, principalmente com o mundo virado de cabeça para baixo. Mas ela não podia evitar, não era algo que pudesse ser controlado em um estalar de dedos. Era uma fuga, uma anestesia, provavelmente o mesmo que Lizzy buscava.

— Obrigado, doutora... – Lizzy tinha um olhar perdido. Os olhos negros pérola, circundados por uma borrada maquiagem escura fixavam-se no nada – Não conte a ninguém que eu estive aqui, viu?

Penn dera um risinho forçado, levando o indicador à boca, como se pedisse silêncio.

— A vadia careca não pode saber que eu estive aqui... – A jovem nitidamente não encontrava-se em seu estado natural – Ela quer me expulsar... Eu sei que quer! Ela quer me mandar embora!

O odor do álcool se ampliava a cada frase pronunciada. Seu estado era deplorável.

— Ela não quer te mandar embora... – Peck mantinha um tom apaziguador – Ninguém vai te expulsar... Você sabe como as coisas funcionam. Uma vez escolhida, não há mais volta!

Penn bufara em escárnio, erguendo-se da cadeira, levemente zonza.

— Besteira! – A garota tropeçava nas próprias palavras – Ela me odeia! Imperatriz... – O sarcasmo ficara claro – O mundo já acabou Patricia, não temos mais o que fazer... Ela é patética! Não sei como vocês conseguem fingir que está tudo bem...

— Ela só quer te ajudar, Lizzy... – A enfermeira do Garden respirara profundamente – Você precisa se cuidar... Estamos todos preocupados! Eu falei com Lawrence, ele disse que você pode ficar com aqui com a gente. Podemos te ajudar a...

A descontrolada jovem passara a gargalhar efusivamente.

— Olha como as coisas são... – Lizzy erguera o indicador, direcionando-o a Patricia – Outro dia eu vi você na cabana do Flood, gemendo enquanto cavalgava o caipira... E agora você está aqui, lançando esse olhar de pena sobre mim... Que ironia, não?

Peck arregalara os olhos. O coração disparara em descompasso.

— Me responde uma coisa... O seu marido tem pau pequeno? Ele não te faz gozar? – A moça abrira os braços – Imagino que ele seja muito foda na cama, pra te fazer trair um cara tão gente boa quanto o Lawrence...

Patricia não conseguira engolir a seco as provocações, interrompendo a bêbada com um forte tapa em seu rosto.

— Você não pode julgar ninguém, senhora Peck... Estamos juntas nessa merda! Os bons já se foram, só sobraram os mortos... O resto é resto!

Lizzy Penn dera as costas, caminhando e saindo porta a fora. A enfermeira recebera o golpe, e sentira as palavras proferidas pela jovem como uma punhalada no peito. Sentando-se e tomando fôlego, sua mente passara a refletir todas as imagens que ela esforçava-se para esquecer.

Hipócrita. Patricia fechara-se em uma bolha, evitando pensar em suas próprias atitudes, agindo como se nada demais estivesse ocorrendo, e fugindo do monstro que cultivava dentro de si. Como ela poderia se sentir tão culpada por algo que lhe dava tanto prazer? E como ela poderia cometer tamanha traição com um homem que lhe ajudara a sobreviver na época mais drástica de toda a raça humana?

A contradição lhe comia o cérebro, apertando sua cabeça internamente. Era difícil refletir, e era difícil chegar a qualquer conclusão. Ela sentia-se covarde, imersa em uma dúbia vida. E apesar de tanto experimentar, e tanto esforçar-se para se manter riste, no fim das contas ela era apenas uma mulher vazia.

Talvez Lizzy estivesse realmente certa.

— Estou interrompendo?

Imersa em seus questionamentos dentro de sua consciência, Patricia não percebera que o novato morador da comunidade adentrara sua porta. O homem da perna de pau, que há pouco tempo adentrara os portões do Garden, trazido por Bill e J.J., mantivera-se distante durante o início de sua ainda breve estadia.

Desmond, como revelara ser o seu nome, aparentava ser bastante recluso e observador, revelando pouco sobre o seu passado e trajetória. Fazia bastante tempo que um novato não era aceito no Jardim, e da última vez que isso ocorrera a história não terminara nada bem. A tragédia que envolvera John e Bonnie, ainda não havia sido esquecida pelos moradores da comunidade.

Por isso todos o evitavam, o olhavam com desconfiança, mantendo-se afastados do misterioso homem que surgira repentinamente. Alguns imaginavam que pudesse ter sido enviado pelos Salvadores, outros que se tratava de mais um bárbaro, e que hora ou outra tentaria destruir o que tantos suaram para erguer.

Os questionamentos quanto as atitudes da Imperatriz, que nada fizera a respeito, simplesmente deixando que o homem de vasta barba ruiva por ali permanecesse, como um igual, começavam a reverberar pelas fracas estruturas de madeira dos barracos. Peck conhecia bem a inteligência de sua líder, e sabia que dificilmente ela cometeria o mesmo erro duas vezes. O sistema de leis criado por ela seguia funcionando perfeitamente. Não havia o que se controverter.

Com exceção de J.J., apenas Lawrence Peck recebera o novato de forma totalmente amistosa. O ex-químico apaixonado por animais, tinha como tarefa diária cuidar das criações de porcos e galinhas, que ajudavam a suprir parcialmente as necessidades alimentícias dos moradores. Como ainda estava sem função determinada, e pelo protocolo estipulado todos os moradores deveriam contribuir para que obtivessem o direito a moradia, Desmond aceitara a tarefa de ajudar o marido de Patricia.

Além disso, era mais do que provável que nenhum outro integrante o aceitasse em seus círculos, portanto, essa fora a única opção que restara ao homem manco.

— Olá Desmond... – Patricia voltara a armar o falso sorriso moldado em sua face – Esperava que você viesse trocar o curativo... Já faz alguns dias que não dou uma olhada nele.

O homem riu de leve, aproximando-se lentamente e marcando o chão com os seus passos.

— Eu me virei esses dias... Não foi nada realmente grave.

O ruivo fora atingido por um disparo de rifle no ombro. Apesar de superficial, o ferimento poderia inflamar caso não recebesse os devidos cuidados. E pelo desleixo do homem em não procurá-la nos últimos dias, certamente a ferida não se encontraria em bom estado.

— Quer que eu dê uma olhada? Você esteve exposto a bastante sujeira ultimamente. Acho melhor trocar sua atadura...

Desmond arqueara uma das sobrancelhas.

— Na verdade eu só vim aqui para pedir ácido bórico... Ou soro fisiológico, qualquer um dos dois serve...

A mulher surpreendera-se com o pedido. O ruivo parecia deter minimamente de algum conhecimento relacionado a área da saúde, o que soara de forma muito estranha. Por qual razão ele omitiria tais informações? Estariam certos aqueles que desconfiavam sobre a integridade do aleijado?

O seu olhar sempre evasivo, a forma calma e educada de se dirigir as pessoas, as poucas palavras pronunciadas, a personalidade reservada. O mistério rondava o recém-tratador de animais, que não colaborava para desfazer tal imagem cunhada.

— Acho que eu ainda tenho um frasco ou dois... – Peck sinalizara para uma pequena mesinha no canto direito, onde os seus instrumentos médicos encontravam-se – Ainda assim creio que seja melhor eu dar uma olhada... Sabe como é, só para garantir!

Um sorriso de canto de boca surgira no rosto do novato, tão repleto de falsidade quanto o da enfermeira.

— Tudo bem então.

Desmond retirara a camisa, revelando uma bandagem triangular aberta em seu ombro, diferente da que fora adotada por ela quando o atendera. A forma como a bandagem fora fixada em seu corpo exigia uma complexidade maior de conhecimento daquele que a fizera, diferentemente do simples curativo efetuado por Patricia.

A bandagem aberta fazia total sentido, já que dessa forma ela facilitava a respiração da ferida, que por ser perforocontusa necessitava de certa exposição para ajudar a curá-la. O mais espantoso era imaginar que o homem chegara a essa conclusão sozinho, fazendo algo que nem a própria enfermeira se atinara a realizar.

Ao retirar o curativo, Patricia espantara-se ainda mais.

A ferida circular estava limpa, as bordas trituradas pelo impacto praticamente já haviam cicatrizado, e a orla de detritos enegrecidos ao redor do orifício alcançara uma significativa melhora. A ulceração estava seca, o ombro aparentava já ter recuperado todos os movimentos em sua normalidade, e não havia sinal algum de manifestação inflamatória.

Com os olhos arregalados, Peck espantara-se com o que acabara de se deparar. O ruivo não a visitara uma só vez para trocar e limpar a bandagem, mas pelo que pudera atestar, virara-se muito bem sozinho, utilizando-se de métodos até então desconhecidos por ela.

— Posso te fazer uma pergunta, Peck? – O homem falava com total segurança – Por que você mente para todos dizendo ser enfermeira?

O seu coração disparara. As palavras pronunciadas com imposição na voz atingiram Patricia como um tiro certeiro. O seu sangue gelara, enquanto que todos os pelos de seu corpo arrepiaram em sincronia.

— Há muitas pessoas vivendo aqui... – O amputado prosseguira calmamente – Sabe quantos você está pondo em risco? Você é realmente a única opção que eles têm?

A mulher erguera-se da cadeira, visivelmente assustada. O peso das frases pronunciadas esmagava o seu corpo, comprimindo sua mente. Ela não sabia o que dizer, não havia o que dizer. O medo lhe subiu a espinha, contaminando cada poro.

— Quem é você, afinal?

A voz saíra falha e trêmula. Os dois se olhavam nos olhos, expressando sentimentos totalmente diversos em suas íris.

O indagador calmo e assertivo.

A indagada nervosa e sem palavras.

O sino tocara, quebrando o interrogatório. A sineta colocada em uma coluna próxima aos portões só era acionada quando algo grave estivesse ocorrendo. Com a mente a mil, e brevemente aliviada por poder fugir do interrogatório inesperado, Patricia dirigira-se até a saída de sua cabana, sem nada dizer ao novato que apenas acompanhara os seus movimentos com o olhar.

Caminhando até a parte central do Garden, ao lado dos pomares, onde comumente as reuniões eram realizadas, Peck acelerara o passo, ainda anestesiada por conta de tudo o que ocorrera e ainda insistia em ocorrer naquela famigerada manhã. Com as mãos trêmulas, a enfermeira passara a respirar de forma compassada, tentando controlar os próprios ânimos.

O caminhão frigorífico utilizado pelo grupo de batedores encontrava-se estacionado em frente à plantação de tomates, o que sinalizara a ela que Marsha e os outros haviam finalmente retornado. Contudo, o alívio momentâneo fora rapidamente substituído por uma lancinante pontada de angústia.

Um aglomerado de pessoas trazidas pelo tilintar do sino formava um círculo em volta de algo que a distância Patricia não conseguira identificar. Ao aproximar-se, atestara tratar-se de um corpo no solo, de uma mulher, uma conhecida.

Assim que Peck fora avistada, os moradores curiosos e preocupados, começaram a afastar-se, dando espaço para que a enfermeira pudesse trabalhar. Olga, conhecida por todos pela alcunha de Ucraniana, por conta de sua nacionalidade, encontrava-se desfalecida. No rosto, alguns hematomas e escoriações em um tom rubro vivo, indicavam que a área sofrera uma pancada violenta.

Ajoelhada ao lado dela, Marsha Cheever, com as roupas manchadas de sangue e o rosto sujo de poeira, segurava fixamente no braço esquerdo da ucraniana, que seguia imóvel, sem reagir a nenhum estímulo da jovem batedora. Achegando-se ainda mais, Patricia também notara que apenas as duas haviam retornado da missão que buscava sanar o problema da falta de mantimentos.

— Marsha, o que aconteceu?

Os olhos avermelhados da garota, que cobria os arrepiados cabelos loiros com um gorro, carregavam um medo inominável. O pavor que ela demonstrava estar sentindo, rapidamente começara a se espalhar pelo Garden, com o boato de que a missão havia fracassado, e com ela, as esperanças se esvaído.

— Fomos até Washington... – Os olhos da irmã de J.J. não se desgrudavam de Olga – Achamos que pelo fato de a cidade ter sido tomada pelos mortos, seria mais fácil encontrar suprimentos... No começo isso até se concretizou, quando nos espalhamos em grupos pequenos e ágeis, saqueando pequenas lojas e cobrindo o perímetro uns dos outros...

— Dormíamos nos lugares mais tranquilos, longe das maiores aglomerações dos mortos, sempre fazendo turnos de vigília... Mas não estávamos encontrando muita coisa, nem de longe seria suficiente... Foi aí que decidimos ir para o centro, onde estavam as maiores hordas, mas também onde possivelmente teríamos mais suprimentos para coletar...

Uma pausa fora feita. Enquanto a menina prosseguia, Patricia tratara de verificar os sinais vitais da moribunda.

— Eu sugeri que invadíssemos alguns prédios, onde poderíamos encontrar mais comida, água... Não deu certo, acabamos sendo encurralados, e um a um, facilmente fomos virando presas dos carniceiros... Primeiro foi o Travis, depois o Dylan, aí o Saul...

— No final ficamos eu e Olga, mas... No desespero ela acabou saltando de uma janela do segundo andar... Eu não sei o que ela pensou, só sei que... Ela ficou gritando, pedindo por socorro. Por ser menor, foi mais fácil pra mim conseguir me esgueirar até a rua! Arrastei-a até o caminhão e parti de volta, sem olhar pra trás!

— Ela desmaiou horas depois... Não queria parar para verificar se ela estava viva ou não, só queria desesperadamente voltar pra casa! Foi um milagre termos sobrevivido... Era praticamente impossível que um de nós saísse de lá com vida. Eu não sei como aconteceu... Só aconteceu.

Os batimentos de Olga estavam praticamente inaudíveis, e mesmo quando verificados em sua carótida, era difícil medir sua pulsação. A respiração também estava fraca, como se estivesse sendo bloqueada por algo. Peck então encontrara uma enorme laceração em seu abdome, perto do umbigo, uma grande camada de tecido havia sido perdida.

Ao erguer a blusa da mulher, fora revelado uma enorme mancha roxa em seu torso, estendendo-se por toda a lateral direita do seu tórax.

As mãos da enfermeira tremiam, ela tentava concentrar-se para conseguir tomar alguma decisão, mas no momento, nada passava por sua cabeça. Definitivamente ela não sabia como prosseguir. Para piorar a situação, a voz calma e imposta de Desmond, novamente se fizera presente.

— Ela precisa ser atendida logo.

Os olhares se voltaram em direção ao novato, que encontrava-se de pé ante Peck, com as mãos nos bolsos da calça social, provavelmente cedida por J.J. a ele. Ele seguia calmo, enfrentando a enfermeira em seu jogo de palavras, colocando-a contra a parede diante de dezenas de pessoas que assistiam a cena, apreensíveis.

Tentando ignorá-lo, Patricia erguera levemente o queixo da ucraniana, procurando desobstruir as vias aéreas, para facilitar sua respiração. Ao verificar novamente os sinais vitais, e atestar que nenhuma melhora havia ocorrido, Peck iniciara o procedimento de reanimação, realizando massagem cardíaca e respiração boca a boca.

Enquanto iniciava o segundo ciclo, sentira uma mão lhe tocar o ombro, fazendo com que interrompesse o procedimento adotado. Desmond agachara-se ao seu lado, mirando fixamente em seus olhos. Os lábios do novato aproximaram-se de seu ouvido, quando ele começara a sussurrar.

— Você parece ser bastante inteligente, então já deve ter percebido que eu sou médico, e que já sei que você não é enfermeira, e que nunca trabalhou nessa área... Não sei quais as suas razões para fingir ser algo que não é, mas consigo compreendê-las perfeitamente... Agora, se você quer realmente salvar essa mulher, deixe-me cuidar dela.

Com os olhos arregalados e sem ação, Patricia novamente entrara em um estado de torpor, sem conseguir dizer uma palavra sequer. Com os batimentos a mil por conta da descoberta de algo que apenas três pessoas sabiam, e que mantinham esse segredo a sete chaves, ela não pôde fazer nada além de menear sua cabeça em concordância.

Ninguém que assistia a cena, nem mesmo Marsha que encontrava-se ao lado, conseguira entender quando o novato assumira o posto, passando a atender Olga com invejável habilidade. Os olhares cruzados dos moradores questionavam-se entre si sobre o que havia gerado tamanha reviravolta, e também o que havia deixado Patricia inerte, permitindo que o amputado tomasse o seu lugar.

Puxando do bolso um bisturi, que Peck reconhecera ser um dos que guardava em sua mesinha de materiais, o ruivo dirigira a mão direita até o rosto da mulher ferida, virando a face de Olga lateralmente, e realizando um profundo corte abaixo da orelha. Os movimentos foram tão rápidos, que ninguém pudera impedir.

O coração da enfermeira acelerara. O tranquilo homem então se erguera, olhando para todos e se pronunciando agora em voz alta.

— Eu acabei de realizar uma incisão no ramo temporal frontal dessa mulher! Em pouco tempo, se isso não for revertido, ela irá adquirir uma permanente paralisia facial... – Ainda emanando tranquilidade, Desmond voltara-se para Patricia – É claro que a enfermeira aqui sabe exatamente o que deve ser feito, não é?

Ele já sabia qual a resposta pra a retórica pergunta, e Patricia também.

— Imagino que você deva ter se esquecido, o que é perfeitamente natural... – Manqueteando, o sujeito da perna de pau dera dois passos mais – Suturas epineurais para uma reconstrução primária, ou, se não for possível, um enxerto do nervo grande auricular ou do safeno externo. Lembrou agora?

— Imagino também que você tenha se esquecido que nunca movimentamos o pescoço de um politraumatizado, como no caso da moça aqui... E que pelas feridas contusas, as escoriações e a equimose no torso, ela provavelmente fraturara algumas costelas, o que provavelmente lhe perfurara o pulmão.

A ironia era dolorosa demais para Peck.

— E por último, preciso ressaltar que sua memória não anda nada boa, pois além disso tudo, você também acabara se esquecendo que no caso de perfuração pulmonar, os alvéolos acabam sendo obstruídos pelo sangue que adentra a pleura, o que anula totalmente qualquer tentativa de enviar o oxigênio por meio de ventilação manual...

— Um acesso lateral, para retirar o excesso de sangue... Você se recorda desse procedimento, não é?

Desmoralizada diante de todo o Garden. Julgada por aqueles que nos últimos anos confiaram cegamente em seu trabalho. Patricia não podia mais fugir da verdade, não agora que a mesma fora revelada de forma tão inesperada. O sagaz homem que a olhava de esguelha revelara agora o seu verdadeiro eu.

Engatilhando o seu rifle, Bill aproximara-se, mirando em direção a testa do inquisidor de Peck.

— Mas que porra tá acontecendo aqui? Quem é você? Algum capanga do Negan? – O caipira bigodudo emanava ódio em suas palavras praticamente cuspidas por seus lábios – Patricia, cuide da Ucraniana, eu mesmo dou um jeito nesse sujeitinho aqui!

Sem se abalar com as ameaças, e sem modificar o seu tom de voz, Desmond voltara a falar, seguro de que nada ocorreria com ele.

— Tem muita coisa errada acontecendo nessa comunidade! Vocês agem como se vivessem em algum mundo fantasioso, onde o perigo corre ao largo... Vocês mantêm uma mulher sem experiência alguma em suporte a vida como sua enfermeira... Vocês mentem para vocês mesmos! Eu é que me pergunto, Bill Flood – Desmond abrira os braços – Que porra tá acontecendo aqui?

— Eu cheguei há sei lá quantos dias e já estou trabalhando, cuidando dos porcos... Ninguém além do J.J., de você – O ruivo sinalizara para o caipira – E a senhora Peck aqui, conversaram comigo! Eu ouço histórias mirabolantes sobre o Garden e sobre uma líder que nunca aparece ante os seus comandados! Eu – O amputado enfatizara, tocando o próprio peito – Não sei que tipo de pessoas vocês são... Eu não sei porra nenhuma sobre esse lugar!

— Eu posso salvar a garota, posso reconstruir o nervo que eu mesmo cortei, e posso tratar os traumas e retirar o sangue de seus pulmões... Na verdade, eu sou o único que pode fazer isso! Mas eu só vou ajudá-la se for recebido pessoalmente pela líder de vocês! Nada de recados, frases de efeito, simbolismos... Eu quero falar diretamente com aquela a quem chamam de Imperatriz!

Os olhares espantados multiplicaram-se. Flood engolira a seco as palavras de Desmond, ainda mantendo o rifle em posição de disparo, encarando-o sem pestanejar.

— Que seja, então.

A calma voz que Patricia já conhecia, fizera com que todos se dispersassem de imediato, abrindo espaço para que aquela que se manifestara pudesse se aproximar do local. Caminhando calmamente, a Imperatriz, líder de todo o Garden, estacionara em frente a Desmond, olhando-o por alto.

— Abaixe a arma Bill – O pedido da mandatária fora atendido imediatamente – Receberei você em minha choupana depois que cuidar de Olga. Patricia – Peck fora novamente pega de sobressalto – Ajude-o no procedimento... Também quero falar com você depois que receber o senhor Desmond aqui.

A enfermeira concordara, sem forças para fazer nada além de balançar a cabeça positivamente.

Dando as costas sem dizer mais nada, a Imperatriz caminhou, afastando-se da multidão.

*****

Uma mulher um pouco mais nova que ele, cabeça raspada, com poucos fios brotando em seu couro cabeludo. Um corpo atlético bem moldado e curvilíneo, cobrindo-se com um casaco bugaboo e calça jeans. O antebraço esquerdo incompleto, afinando-se na extensão do rádio e da ulna, em um claro sinal de amputação congênita, provavelmente adquirida ainda no útero. Uma pintura enegrecida ao redor dos olhos, lembrando a tradicional maquiagem egípcia, eternizada nos famosos pictogramas.

Isso fora o que Vincent reparara primordialmente ao ver-se frente a frente com a Imperatriz do Garden. A mandatária sentara-se sobre a mesa da saleta que chamara de escritório, onde além do móvel, uma grande estante de livros, com dois metros de altura, totalmente preenchida pelos mais diferentes volumes das mais diferentes obras, complementava o cenário totalmente difuso de tudo o que já havia visto dentro do Jardim.

Diferentemente de todas as casas mal projetadas e construídas, a choupana imperial era uma exceção à regra. As madeiras coloniais das paredes e dos móveis davam um ar artístico ao cômodo, que assim como todo o restante da residência, parecia ter sido minuciosamente pensado e arquitetado, antes de ter sua construção efetuada. Muito provavelmente já estava de pé antes dos primeiros sobreviventes aportarem por ali.

Batucando com a ponta dos dedos sobre a mesa, a mulher mantivera-se em silêncio por quase dois minutos, antes de finalmente ficar de pé, caminhando em direção a uma garrafa de vodka que dividia espaço com os livros, na grande estante do escritório. Servindo dois copos com metade do líquido, a mandatária entregara um deles a Vincent, que por não saber como proceder, prosseguia aguardando alguma manifestação da Imperatriz.

— Como ela está?

A líder retornara a sua posição inicial, dando o primeiro gole em sua bebida.

— Realizei uma traqueostomia... Ela está com um acesso, a respiração já parece ter normalizado. Não consigo dizer ao certo a respeito das fraturas, mas... Acredito que ela ficará bem. Quanto ao nervo facial, consegui reverter facilmente, afinal de contas, não se trata de um procedimento complexo.

A mulher ouvira a tudo atentamente. Após dar mais um gole na vodka, assumira a palavra.

— Pois bem então... Você exigiu respostas ante toda a população do Garden... Aqui estou eu, senhor Desmond, pode começar.

Hall limpara a garganta, preparando-se para falar. Precisava demonstrar a mesma confiança de outrora, só assim todos os pontos que tanto lhe martelavam a mente seriam finalmente sanados.

— Eu reparei que vocês não possuem um sistema de rondas constantes. Os seus muros são altos, e o terreno é muito grande... Vejo uma situação de grande vulnerabilidade por aqui.

Mantendo as mesmas expressões, a Imperatriz respondera sem pestanejar.

— Temos poucas armas, e apenas alguns homens sabem utilizá-las com o mínimo de habilidade. Não há grande incidência de carniceiros nessa região, e nunca tivemos problemas em lidar com eles... Além de ser cercada por um grande bosque, como o senhor já deve ter atestado, há um caminho de pedras seguido por um rio, cerca de dois quilômetros ao sul... O terreno irregular nos ajuda a nos manter a salvo.

Complementando o copo que já estava quase vazio, a Imperatriz sinalizara com o braço amputado para que o cirurgião prosseguisse em seus questionamentos.

— Você sabia que Patricia nunca foi uma enfermeira, e nem passara perto disso... Por que escondia isso de todos? Qual a razão dessa mentira?

A líder seguia serena, aproveitando sua bebida enquanto recebia cada indagação de forma muito natural.

— Entenda senhor Desmond... Vivemos em um mundo onde químicos cuidam de porcos, advogados plantam tomates e contadores saem por aí saqueando lojas abandonadas... Infelizmente não demos a sorte de ter um médico entre nossa singela população. Patricia é inteligente, conseguiu cuidar das pessoas mesmo não possuindo o conhecimento que vejo que o senhor domina muito bem.

— A mentira faz parte de qualquer utopia, se não for assim, não há como ela funcionar. As pessoas só passaram a acreditar nessa comunidade, quando verdadeiramente se sentiram integrados a ela! O Garden funciona como um organismo vivo, e nós somos o sangue bombeado pelas artérias...

— Se todos soubessem desde o princípio que Patricia não era enfermeira, ao primeiro sinal de uma morte sem explicação, toda a culpa automaticamente cairia sobre ela... Isso ocasionaria em revoltas, que descambaria para o barbarismo. E é justamente contra isso que eu tanto luto... Luto para combater o barbarismo.

Uma breve pausa para saborear mais um pouco do álcool.

— O mundo acabou, as leis se foram, e aqueles que sobraram estão livres para fazer o que bem entenderem! Só que o ser humano, quando conquista a liberdade plena, acaba retornando a sua faceta mais primitiva, literalmente tornando-se um animal. Pelo que vejo – Seu olhar focou-se na perna de pau de Hall – O senhor deve saber sobre o que estou falando... Estupros, assassinatos sem motivações... A barbárie, senhor Desmond! A porra da barbárie!

— A melhor forma de controlar um animal selvagem é colocando uma rédea... É o que eu faço aqui! Minhas leis são as rédeas que domam cada um dos moradores da comunidade!

Vincent colocara o seu copo sobre a mesa, ainda tentando juntar todas as peças do discurso da Imperatriz. Ele ainda não havia conseguido chegar a nenhuma conclusão, e digerindo lentamente cada frase, começara a traçar um perfil da mulher, que o assustava com a serenidade com a qual se manifestava.

— Bill Flood me acusou de ser um dos homens dos Salvadores... Quem são os Salvadores?

Dando as costas para o seu indagador, a Imperatriz começara a caminhar pelo cômodo, novamente criando uma bolha de silêncio que só fora interrompida alguns segundos depois.

— Passamos por tempos difíceis, senhor Desmond. Infelizmente não somos os únicos sobreviventes nesse mundo, e acabamos constatando que nem todos os que receberam a dádiva de permanecer vivos nessa realidade desolada, adotaram uma forma romântica sobre como reerguer o novo mundo.

— Os Salvadores me obrigaram a assinar um acordo contra a minha vontade, e que fere os direitos do Garden... Mas – A mulher interrompera-se retirando um livro da estante – Não podemos enfrentá-los... Ninguém pode. Já pagamos o preço por quebrar as regras deles uma vez... Não vale a pena entrar na reincidência.

Vincent não desistiria de tentar entender a misteriosa mandatária. Prosseguiria questionando-a, queria saber até onde o autocontrole da mulher seguiria sem ser abalado.

— Você não me interrogou quando eu cheguei, não trocou uma só palavra comigo, e essa é a primeira que eu a vejo em dias... Não acha muito arriscado? E se eu realmente fosse um dos Salvadores?

A mulher abriu um largo sorriso.

— Eu estive de olho em você o tempo todo, senhor Desmond. Acredite, você deteve toda a minha atenção nos últimos dias, mas não necessariamente eu precisei estar presente para tal. Já sei muito sobre você... O suficiente para ter certeza que não tem ligação alguma com qualquer grupo hostil.

J.J. e Lawrence. Agora estava claro que a aproximação dos dois fora intencional. Pelas palavras pronunciadas, tudo se tratara de uma missão dada a eles. Sem nem imaginar, Vincent fora observado o tempo inteiro.

A mulher caminhara novamente até a mesa. Abrindo uma grande gaveta, retirara de lá uma estranha peça, que a princípio, Hall não conseguira identificar.

— Desculpe, senhor Desmond. Eu me sinto nua se não vestir minha prótese. Você não se importa, não é?

Hall negara com a cabeça. Agradecendo com um sorriso, a Imperatriz passou então a vestir sua prótese engenhada, que se prendia ao ombro e encaixava-se em seu coto. A peça produzida manualmente, misturava partes soldadas em metal, com largas tiras de couro, e acomodava-se perfeitamente em seu corpo. A parte que se estendia por seu braço defeituoso, substituía-o por uma lâmina longa, lembrando as clássicas espadas medievais.

O cirurgião espantara-se, e pela primeira olhou para trás, temendo as próximas ações da mulher que parecia agora estar vestida para uma guerra. Antes que se erguesse da cadeira, em uma ação totalmente instintiva, a líder prosseguira com um olhar manso, como se estivesse tentando acalmá-lo.

— A alcunha de Imperatriz não é mantida facilmente... Para ser uma verdadeira líder, é preciso primeiro ser respeitada, e nas atuais circunstâncias, só é possível conseguir isso na base da imposição. O verdadeiro líder é aquele que aparece apenas quando necessário, e que resolve qualquer problema quando ninguém mais consegue!

— Preciso manter minha imagem, fazer com que me admirem, e que sigam os meus comandos sem pestanejar... É literalmente como lidar com animais. É preciso mostrar que eles precisam de nós... – A mulher movimentara a lâmina em seu braço, fazendo soar um barulho metálico – Se eu tivesse alguma dúvida de que você poderia representar algum risco a minha cidade, já estaria morto há muito tempo!

A mulher batera três vezes com a lâmina sobre a mesa, produzindo um alto som. Naquele exato momento, dois homens adentraram a sala, segurando Vincent e impedindo que ele pudesse ter qualquer reação. O cirurgião debateu-se, mas os capangas eram mais fortes, e de nada adiantaria tentar lutar.

Achegando-se lentamente, a Imperatriz aproximara-se do ouvido de Vincent, sussurrando tão próxima, que seus lábios chagaram a tocá-lo.

— Acho que você será muito útil para a minha comunidade, e vejo também que não é alienado como a maioria dos residentes... Mas você cometeu uma grave infração ao contestar minha liderança na frente de todos. Eu sou justa, Desmond, você pagará pelo seu crime como qualquer um dos moradores do Garden. Não te darei nenhum privilégio, assim como não dou a ninguém!

Os dois sujeitos viraram Vincent de costas, arrancando sua camisa e expondo sua pele.

— Quero que venha até aqui amanhã, nesse mesmo horário... Preciso conversar com você sobre outros pontos, senhor Desmond.

O médico só conseguira balbuciar um “mas que porra” antes de receber o efetivo castigo das mãos da Imperatriz. Com a lâmina de sua prótese, a mandatária produzira um corte de cima a baixo, em toda a extensão da coluna de Hall. O homem gritara em dor, enquanto o sangue escorria pelo ferimento. Finalizando a pena, ela cruzara o corte, passando a lâmina de uma ponta à outra.

A cruz que desenhara na pele de Vincent ardia descomunalmente. O sangue descia viscoso, pingando no chão. Sem forças, o cirurgião dobrara os joelhos, mas logo fora erguido pelos brutamontes, que aguardavam as derradeiras ordens.

— Levem ele pra casa... Discretamente, por favor.

Calmamente, a Imperatriz voltara-se para a sua mesa, ainda mantendo o mesmo olhar de quando iniciara a conversa com Hall. O médico voltara-se para ela uma última vez, encarando-a. Sorrindo como alguém que encontra um amigo em um passeio na praia, a mandatária do Garden despedira-se, como se tudo permanecesse na mais perfeita normalidade.

— Nos vemos amanhã, Desmond. Boa noite!


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Notas finais do capítulo

E então, o que acharam?

O capítulo focou-se mais nas interações, e acho que serviu como um puta disclaimer pra essa nova comunidade.

Se alguém se interessar, deixo aqui os links de imagens que inspiraram a aparência de alguns dos novos personagens. Acho que será mais fácil visualizá-los assim.


http://static1.squarespace.com/static/51b3dc8ee4b051b96ceb10de/t/554d90dbe4b04605cb4563c2/1431146721395/?format=1500w
(Mr. Hanso)

http://cdn.collider.com/wp-content/uploads/labor-day-josh-brolin.jpg
(Bill Flood)

http://blog.joovy.com/wp-content/uploads/2013/07/MarshaThomasonCol-2.jpeg
(Patricia)

https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/736x/45/5a/a6/455aa6dd88aedf42c655eadc873d4bcb.jpg
(Imperatriz Eloise)


Nos vemos nos comentários!

Moi moi!



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