All Out War escrita por Filho de Kivi


Capítulo 26
Adrift


Notas iniciais do capítulo

Hei!

Depois de uma breve semana de off season, All Out War retorna para o primeiro capítulo de sua segunda e derradeira temporada... Como dizem por aí, é chegada a hora de separar os meninos dos homens!

Gostaria de fazer um rápido adendo, antes de prosseguir falando sobre o capítulo abaixo...

Chegou até mim um comentário sobre o os últimos capítulos de AOW postado no grupo do Nyah! Fafiction no Facebook (do qual eu ainda não participo). Tendo isso em vista, recordei-me de que preciso fazer um agradecimento especial...

Agradeço a Marta Piber (que postou o comentário no grupo, exclamando o quanto o referido capítulo a emocionara), mas estendo essas congratulações a todos aqueles que acompanham a história, mas não possuem uma conta no site. Muito obrigado! Imagino que seja mais complicado para vocês, já que não há como saberem quando a fic será atualizada, por isso mesmo, um “kiitos” especial a vocês que seguem esse humilde trabalho até hoje!

Agradeço também a Menta, minha grande amiga que me apoia desde que essa história era apenas um embrião... Muito, muito obrigado por todos os elogios e críticas construtivas, sei que cresço cada vez mais com toda a sua ajuda! Kiitos!

E é claro, agradeço também aos novos leitores que começaram a ler a fic agora!

Lentamente os números de AOW vêm se ampliando, e isso me deixa muito feliz... Obrigado, galerita!

Bom, no capítulo de hoje teremos dois POVs, Vincent e Rick. No POV no Doc Hall saberemos um pouco mais sobre a nova comunidade em que ele se encontra, além de vermos como anda a sua mente perturbada... No POV de Rick teremos, obviamente, a continuação de toda a horrenda situação ocorrida no último e sôfrego capítulo...

Espero que gostem...

Boa leitura!



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A chuva caía de forma contínua, seus grossos pingos desciam dos céus, ressonando após encontrar-se com a superfície metálica e enferrujada dos carros que serviam como uma barreira física para a choupana isolada do restante da comunidade. O som estridente e ritmado causado peso impacto da água, misturava-se ao uivar dos fortes ventos, que faziam com que as copas das árvores dançassem, seguindo uma compassada melodia, sempre de um lado para o outro.

Pequenas poças d’água começavam a ser formadas por conta da descomunal tempestade que já se estendia por duas horas completas. A tarde que aparentava ser clara, passara a um tom cinzento uníssono tão logo as primeiras nuvens negras começaram a pintar o céu do bosque.

Ninguém mais era visto caminhando pelas enlameadas ruas do lugar. As mais de cinquenta pessoas que ali viviam, escolheram, por motivos óbvios, recolher-se em suas moradias, apesar de que as construções em madeira, grande parte delas mal projetadas, não pareciam passar tanta segurança assim, visto que os ventos mais fortes comumente ameaçavam levá-las consigo.

Apenas alguns corajosos deslocavam-se rapidamente em direção ao galinheiro ou chiqueiro, sempre com muita pressa, levando com ele uma lona já utilizada outrora para a proteção dos animais. A carne e os ovos eram itens por demais preciosos, e é claro que valeria o esforço para que nenhum dos bichos acabasse morrendo em meio à chuva.

Proteção igualmente utilizada nas hortas, cultivadas e gerenciadas com primazia por aquelas pessoas que aprenderam com os próprios erros, após inúmeras tentativas, como lidar de forma produtiva com a terra, arando-a e adubando-a de forma a torná-la sempre fértil. Os tomates, batatas e cenouras, além de consumidos internamente, também eram utilizados nas trocas com outras comunidades.

Alheio a tudo isso, aparentemente ainda tentando entender os motivos de ter parado naquele lugar, Vincent Hall ainda se sentia perseguido, por isso mesmo escolhera à tarde chuvosa para colocar os pensamentos em dia enquanto caminhava em meio à lama e água.

Talvez ali, sozinho e banhado pelas gotas que caíam dos céus, o homem de agora volumosa barba ruiva, ainda manqueteando com sua perna de pau, e tentando recuperar-se do ferimento à bala no ombro, encontrasse respostas para as inúmeras perguntas que ainda percorriam todo o interior da sua cabeça.

A voz de Julia ainda ecoava em seus ouvidos. A forma doce como sua amada falara consigo, em meio a todo o delírio que tivera por conta da falta de líquido no cérebro, parecera real demais para ser ignorado.

Fugir dos problemas definitivamente não fizera com que eles desaparecessem, pois, apesar de estar tão distante de Alexandria, sua cabeça ainda encontrava-se na utópica comunidade que deixara para trás sem se despedir. O rosto de Leah ainda era muito presente, a forma meiga como ela se movimentava, como falava com ele, como o desejava. Assim como Rosita, sempre direta, decidida, uma linda mulher de corpo escultural, que conseguia ser doce ao mesmo tempo em que era fatal.

Mas não eram apenas os conturbados relacionamentos de Vincent que perturbavam sua mente. Magna fora abandonada ferida, em recuperação após uma complicada cirurgia, mas ainda assim, deixada para trás em estado gravíssimo, com ínfimas chances de conseguir se recuperar sem o devido acompanhamento.

Alexandria agora não possuía mais um médico, e com tudo o que vira acontecer, tanto na estrada quando por detrás dos muros, Vincent sabia o quão temerário isso era. Nesses tempos difíceis, um simples resfriado poderia se tornar uma grande epidemia caso não fosse tratado de forma correta.

Tom, o turrão homem com quem brigara, e que agora sentia tanto a falta. Os dois já foram amigos antes de Hall perder parte de seu discernimento. Tudo jogado fora por sua falta de convicção, por sua indecisão sempre levada ao extremo. Leah já lhe dissera que ele nunca soube na realidade o que queria, e agora mais do que nunca, isso parecia fazer todo o sentido.

Valeria a pena prosseguir naquele lugar? Valeria a pena tentar outra vez recomeçar sua trajetória, em meio a todos aqueles desconhecidos?

Hall lembrou-se imediatamente do dia em que fora encontrado por Mike em seu apartamento e levado para o comboio liderado por Tom Price. Ele estava afogado em álcool, ainda preso à perda de Julia, sem dar a mínima para o fim do mundo, já que para ele, os seus problemas internos eram maiores do que qualquer apocalipse de mortos vivos. Provavelmente morreria sozinho, sufocado pela bebida. Sufocado por si mesmo.

Lembrou-se também de como fora feliz enquanto vivera com aquelas pessoas, obviamente ignorando todas as perdas ocorridas na estrada, que acabaram tornando-se intrínsecas a sobrevivência de qualquer um. Conhecera Amanda e Goodwin, cuidara com sucesso da gravidez de Susie, sentira-se útil após muito tempo enterrado em suas próprias convicções.

Vincent Hall fizera coisas que jamais imaginara conseguir realizar novamente. Tomando então por essa premissa, talvez valesse a pena dar a si mesmo mais uma chance, uma derradeira, para que finalmente todas as lacunas fossem preenchidas e todos os pecados apagados.

Estava na hora de começar de novo, dessa vez pra valer, em definitivo. Um recomeço do zero, onde um novo homem poderia se impor ante ao fraco e impotente Vincent Hall. Só assim sua vida faria sentido outra vez, e só assim sua caminhada poderia encontrar as respostas para as perguntas que tanto o martelava, e que provavelmente só poderiam ser sanadas quando ele próprio conseguisse se compreender.

Passando os dedos brevemente pela estrutura de concreto que ali fora edificada para se tornar futuramente uma residência, e que agora não passava de uma base para as construções de madeira feitas pelos veteranos, Hall começara a cultivar em seu peito algo que já considerava ter sido totalmente abandonada. O cirurgião sentia-se esperançoso, uma esperança que lhe abraçava o peito, como em um carinhoso afago.

O Garden seria o seria o seu lar, e ali ele buscaria por sua redenção.

Pisando mais fortemente sobre o solo de terra fofa, e com isso espirrando lama pela lateral de sua bota, o doutor começara a caminhar com maior velocidade em direção a um dos casebres. Próximo aos grandes portões, o casebre específico tinha sua lateral formada por partes de trocos de árvores, todas retiradas do próprio bosque. A cobertura era mesclada entre a mesma madeira utilizada em sua base e algumas placas de ferro que ali já se encontravam.

O encontro da chuva com o metal causava grande estrondo, além de respingar para o lado de dentro, por conta do encaixe mal calculado, a água jorrada dos céus, molhando parcialmente o interior da residência. Com toda a certeza o período de chuvas era aquele que mais exigia da parte estrutural da comunidade.

Fora dito a Vincent, em uma das poucas conversas com um dos membros do lugar, do qual ele não guardara o nome, que o Garden fora projetado por sobreviventes que não possuíam qualquer experiência em engenharia ou construção civil, por isso a dificuldade em resolver problemas simples, como o gotejar da residência citada.

Todavia, ao observar tudo o que fora feito, aparentemente por ‘ignorantes’, o lugar tornava-se fantástico aos olhos. Não foram apenas os muros que foram erguidos do zero. Todas as casas, estufas, despensas, arsenais, galinheiros, chiqueiros e hortas, foram construídos utilizando-se apenas dos poucos materiais encontrados em meio às ruínas do antigo projeto governamental, que ali construiria algumas casas, além é claro, da madeira retirada do bosque que cerca o Jardim.

Madeira essa também retirada à duras penas, após muitas tentativas, algumas inclusive resultando em mortes, como contam os mais antigos membros da comunidade. A própria floresta, inclusive, passara a ser utilizada como arma por seus moradores, já que, por saberem que nos tempos atuais alguns dos vivos acabaram se tornando mais perigosos que os mortos, possuírem uma barreira natural de proteção, afastando-os das estradas e do perigo que ela carrega consigo, acabara sendo de grande ajuda para que se mantivessem respirando por tanto tempo.

Os muros, construídos com madeira viva, utilizando-se de enormes pedaços das árvores, retiradas por inteiro, em um processo que ao todo levara mais de dois meses para ser concluído. Os seus alicerces, que demoraram mais dois meses para ficarem prontos, é outra prova do quanto aquele povo esforçara-se para recriar os conceitos de sociedade no descampado escolhido por eles.

O Garden se mostrava como o grande exemplo da resistência do ser humano ante as tragédias que passaram a assolar o mundo na metade de dois mil e três, ano em que os mortos caminhantes iniciaram sua marcha sanguinolenta por todas as regiões do mundo. O pequeno forte construído, mesmo que simplório, significava a vitória do ser humano pensante sobre a barbárie que facilmente poderia transformar todos ali em animais.

Um relâmpago cortara o céu, seu brilho prateado parecia descer das nuvens, tocando o chão como um presente enviado pelo próprio Deus. Deus que, para Vincent, já os abandonara há muito tempo.

E estando sob sua própria custódia, Vincent agora caminhava de volta para a casa que o acolhera, o único lugar dentro do Garden que o admitira sem muitos questionamentos ou desconfiança, onde, aparentemente, ele poderia encontrar a segurança para recomeçar.

Diante da porta de madeira, onde os pingos colididos por conta dos ventos eram rebatidos pela sólida estrutura, o médico utilizou-se do punho direito, cerrado, para dar apenas duas leves batidas, prontamente respondidas por aquele que situava-se no interior do casebre.

Adentrando rapidamente, Hall dera dois passos compridos, sentindo o sólido chão do casebre sob a sola de sua bota e perna de pau. Parado sobre o capacho, o pequeno tapete colocado do lado de dentro, próximo à porta, provavelmente em uma premonição do estado em que o médico ali chegaria, Vincent esperou por alguns segundos, tempo suficiente para que o excesso da água da chuva que encharcara suas roupas escorresse parcialmente.

Erguendo os olhos, após cruzar os braços a frente do tórax, fechando-se em si mesmo e sentindo a mudança de temperatura pela primeira vez, Hall reparara o quanto os seus anfitriões cuidavam com zelo do lugar, apesar de todas as visíveis e aparentes dificuldades.

As paredes da casa eram repletas de prateleiras, também feitas de madeira, presas por pregos ou arames enrolados nos troncos maiores que formavam a base. Nessas estruturas, latas de mantimentos, rolos de papel higiênico, garrafas d’água e alguns utensílios domésticos eram resguardados. Além é claro, de algumas fotos amassadas em porta-retratos trincados.

As fotos remetiam os moradores há tempos que para muitos já havia se perdido. Pais mortos, filhos que pereceram, irmãos que nunca mais seriam vistos, amores perdidos para toda a vida. Aqueles pequenos objetos eram como boias salva-vidas, uma tênue e frágil corda que servia para que as pessoas não se perdessem, não se deixando levar pelo lado animalesco que parecia querer consumir a todos. Uma forma de não perder a própria essência, humanidade e sanidade.

No lugar não havia camas, sacos de dormir e colchas amontoadas sobre o chão eram utilizadas para que os moradores tivessem o mínimo de conforto ao dormirem. Tudo muito diferente da realidade vivida por Hall em Alexandria, onde, além de casas enormes, os residentes possuíam confortáveis camas e cobertores.

De todo jeito, tudo parecia repleto pelo imediatismo, como se a comunidade fosse apenas o ponto de parada de um grande grupo nômade, que logo tomaria suas coisas sob o braço, partindo para um novo ponto. A falta de conforto, conjecturava Vincent, provavelmente fazia desse povo um grupo menos alienado que a utópica comunidade comandada por Grimes, já que lá, a grande maioria já havia se deixado levar pela segura e cômoda rotina, esquecendo-se do perigo que batia a porta todos os dias.

E era justamente naquele emaranhado de colchas e cobertas que o doutor Vincent Hall passara as últimas noites, ainda tentando se acostumar à nova vida que caíra em seu colo de supetão.

Ao lado das “camas”, dois baldes azuis eram calculadamente colocados em uma posição que pudessem evitar que as goteiras, que pingavam de forma deliberada pelo teto mal projetado, inundassem o restante da casa, que parecia bem frágil ante a torrencial chuva que seguia em curso.

O barulho do lado de dentro ressoava com ainda mais potência que aquele em campo aberto. Ora, o metal das placas ampliava o som da chuva, tornando-o mais grave e imponente, o que inclusive dificultava a comunicação entre o anfitrião e Doc Hall.

— Onde você se meteu? Saiu sem dizer nada... Que porra é essa cara? Você mal conhece o lugar...

O rapaz com um meio sorriso no rosto e uma falsa preocupação olhava para Vincent do alto de seus mais de um metro e noventa, as mãos na cintura e a cabeça levemente tombada para o lado esquerdo. No topo de seus dourados cabelos curtos, um gorro negro com o dobro do tamanho correto para ele, protegia suas orelhas do frio, além é claro de dobrar o tamanho de sua cabeça.

O jovem de não mais do que vinte e um anos, cobria os singelos músculos com uma velha camisa de algodão, onde uma enorme estampa com a letra C em vermelho, destacava-se em meio a coloração azul escura do restante do tecido. Uma larga calça camuflada e um par de meias negras, completavam o visual do rapaz que ainda aguardava a resposta de Hall.

— Estava pensando... – O médico passara uma das mãos sobre os cabelos, mantendo a seriedade no olhar – E se não conheço o lugar, acho que a melhor forma de resolver essa questão é justamente andando por aí...

Um sorriso brotara no rosto do garoto, que parecia bastante a vontade. Totalmente o oposto de Vincent, que ainda se incomodava bastante com o fato de ser um total estranho naquele ninho, e ainda não ter conseguido fazer uma leitura total sobre os perfis dos moradores, para carimbar se poderia ou não confiar neles. E o mais importante, se eles representavam ou não um risco a sua sobrevivência.

Definitivamente o médico não queria mais morrer, encontrara em meio a sua loucura um resquício de motivo para continuar lutando, buscando. Mesmo que acabasse desistindo e jogando tudo para o alto mais tarde. Como já fizera diversas outras vezes.

— Toma... – O garoto retirara de uma mala, posicionada em uma das esquinas da parede, uma toalha, entregando ao médico – Não é permitida a circulação de pessoas encharcadas na residência dos Cheever! – Brincou.

Hall tomara o regalo em mãos, passando-o sobre o rosto. Ainda não estava adaptado as brincadeiras e piadas, principalmente quando remetidas a uma intimidade que eles ainda não possuíam. Vincent incomodava-se com o fato de ser tratado dessa forma em tão pouco tempo de convivência. Esperava que desconfiassem mais dele, que mantivessem distância. Toda a animosidade não parecia um bom sinal.

— Valeu J.J...

J.J. Cheever, o mesmo garoto que atirara em seu ombro, quando Hall, cambaleante e delirante por conta da desidratação, aparecera subitamente em meio ao território do Garden, ainda sem sequer mensurar o que estaria reservado para o seu futuro.

Aquele que por pouco não retirara sua vida, acabara sendo o único disposto a abrigá-lo. O universo costuma reservar momentos incompreensíveis como esse, que sempre servem para que consigamos enxergar as coisas de maneira mais ampla.

Aparentemente redimido do que fizera, o jovem J.J., oferecera-se de bom grado para abrigar o novato na comunidade, no período em que ali estivesse disposto a permanecer, já que o próprio Vincent afirmara não ter certeza sobre uma estadia mais longa ou permanente no Garden.

Hall sabia que o garoto disparara contra ele por puro reflexo, acreditando tratar-se de um errante. Se Vincent estivesse em seu lugar, provavelmente teria agido de maneira semelhante. Talvez por isso mesmo o jovem tenha se mostrado tão solícito, apenas uma forma de diminuir o remorso interno.

O médico também notara um medo inominável que parecia rondar todo o local. Sussurros e comentários tortos denotavam que algo ali não corria em linha reta. Hall já vira aquelas expressões anteriormente, já experimentara a tensão de viver sob constante pressão. E olhando nos olhos dos moradores do Garden, percebera que algo muito estranho se passava por debaixo dos panos.

Daria tempo ao tempo, de qualquer forma. Uma hora ou outra, o próprio Garden lhe revelaria os seus segredos.

A tempestade seguia sem dar tréguas, sem uma mísera pausa para os moradores da frágil comunidade. Aparentemente habituado às mudanças extremas de clima, J.J. parecia bastante tranquilo, muito diferente do médico, que olhando rapidamente pela fresta da porta, assustava-se a cada brilho mais forte produzido pelos relâmpagos, que iluminavam toda a região a cada clarão.

A impressão que se tinha era de que as casas poderiam ser arrancadas de seus eixos a qualquer momento, levadas pelo vento que lambia os telhados de metal.

Mas Cheever seguia impávido, recostado a uma das colunas de madeira do casebre, retirando do bolso um cigarro – que não aparentava ser de nicotina –, acendendo-o e dando uma longa primeira tragada.

A fumaça não aprazível atingira as narinas de Vincent, que tentara ignorar o fato, passando a toalha sobre o rosto molhado.

— Servido?

J.J. estendera a mão, oferecendo o cigarro que aproveitava prazerosamente. Olhando fixamente para o rapaz, Hall, mantendo sua firme expressão, apenas balançara a cabeça em sinal de negativa.

Dirigindo-se novamente a mesma mala que retirara a toalha, Cheever tomara em mãos uma camiseta dos Redskins, a jersey principal da equipe de futebol americano de Washington, estendendo o braço e oferecendo a Vincent Hall. O largo tecido da vestimenta seria muito útil para amenizar parcialmente o frio que a tarde chuvosa trouxera. Por isso mesmo, o médico aceitara a oferta sem discussões.

— Des... – Voltara a manifestar-se o garoto, ainda tranquilamente tragando o seu cigarro – Eu posso te chamar de Des, não é?

Bom, se fosse para recomeçar, pensara Vincent, que fosse então para valer, por completo. Vincent queria deixar o antigo Doc Hall totalmente para trás, por isso, assumira desde que fora atendido por Patricia, a enfermeira da comunidade, a alcunha de Desmond Wales. Um novo homem com uma nova história, que pretendia mais do que qualquer coisa, não repetir os mesmos erros que outrora tanto lhe trouxeram sofrimento.

O médico fizera uma breve pausa enquanto vestia as roupas limpas recebidas por J.J. Um tempo necessário para respirar fundo e refletir momentaneamente sobre o turbilhão de novos eventos que agora faziam parte de sua nova vida.

— Apenas Desmond, por favor...

O garoto expelira lentamente uma razoável quantidade de fumaça pelas narinas, voltando a falar em seguida.

— Ok, Des... – O rapaz dera um breve sorriso com o canto de boca – Você disse que trabalhava com o quê mesmo?

Hall baixou o olhar.

— Eu não disse... E por falar nisso, só que em um assunto não relacionado – Vincent atrapalhara-se com as palavras, tentando fugir do assunto proposto – Quero resolver de uma vez por todas a minha situação por aqui... Não quero voltar pra estrada, não mais...

— Sério? – O garoto ergueu uma das sobrancelhas – Você estava cheio de “senão”, achei que pretendia seguir viagem... E já que tocamos no assunto, pra onde você estava indo quando te achamos no meio do bosque? – Seu olhar fixara-se no médico – Você estava sozinho, sem comida e água... Qual a tua história, cara?

Caminhando para o centro do cômodo, Hall sentara-se sobre o emaranhado de lençóis e colchas que agora faziam o papel de cama. Repousando o corpo ao lado dos baldes utilizados para a retenção da água, Vincent seguia reflexivo, calculando cada palavra antes de pronunciá-la.

— Eu fiquei tempo o bastante lá fora para saber que não quero mais voltar... Definitivamente, qualquer lugar é melhor que lá fora... – Outra breve pausa – E já que você parece tão interessado assim na minha história, bom... Digamos que antes de tudo isso acontecer, eu costumava consertar as coisas...

O garoto seguia observando-o atentamente. Hall prosseguira.

— Eu era muito bom inclusive... Costumava consertar as coisas de forma minuciosa, de uma maneira tão boa que elas não mais voltavam a demonstrar defeitos... Eu era elogiado por essa habilidade... O problema é que, depois de tanto consertar os defeitos alheios, eu acabei não conseguindo identificar um muito maior, dentro de mim mesmo... Hoje eu sei que perdi esse dom, não consigo mais fazer essas coisas...

Apesar de evasivo, J.J. conseguira, a sua maneira, captar a essência do que Hall acabara de dizer. Sentando-se ao lado do companheiro de morada, o jovem Cheever apagara o cigarro em um dos baldes, parcialmente cheio pela água da chuva.

Olhando para o médico, sem nem sequer conseguir mensurar tudo o que ele já havia passado nessa longa jornada pela sobrevivência, o garoto de cabelos loiros estendeu o braço esquerdo, dando um leve tapa nas costas do cirurgião.

— Eu não sei o que aconteceu com você cara... – Asseverou – E nem consigo imaginar as causas que te levaram a andar por aí, sem proteção, sem comida e água... Mas imagino que você já tenha visto muita merda, talvez mais até do que todos nós aqui dentro...

— Também imagino que você tenha perdido alguém da família, até porque, quem não perdeu alguém nessa droga de mundo? – O garoto ergueu os olhos, fitando agora a janela principal do casebre – Eu não consigo me imaginar sem minha irmã... Não sei se conseguiria continuar sem ela, então, entendo que toda essa droga deve ter sido muito foda pra você!

O rapaz ganhara agora a total atenção de Vincent, que se interessara pelas palavras ditas pelo sóbrio rapaz.

— Imagino também que chegar até aqui, principalmente da forma como as coisas foram, deve ter te deixado mais zureta ainda... – J.J. retirara o gorro de sua cabeça, passando a mão direita em toda a extremidade dos cabelos – O que eu to querendo dizer, brother, é que o Garden é especialista em casos assim... Desde que eu cheguei aqui, me deparei com zilhares de casos parecidos com o meu, com o seu...

— Nós nos apoiamos, nos seguramos uns nos outros para que ninguém caia no caminho... Vai parecer clichê pra caralho o que eu vou dizer agora, mas... Pode contar com a gente, até porque, uma hora nós também iremos contar contigo!

Hall balançara a cabeça positivamente, erguendo os orbes em direção ao garoto.

— As coisas ficaram meio esquisitas nos últimos tempos – Retomara Cheever – Sei que não parecemos tão receptivos quanto eu falei, principalmente após toda a treta com os Salvadores... Mas acredite Desmond, assim que você conseguir entender como as coisas funcionam por aqui, com certeza vai abrir essa guarda!

Vincent abrira um breve sorriso. Sua visão quanto ao garoto que discursara de forma tão sincera, começava a se modificar aos poucos. Ele estava disposto a dar um voto de confiança ao Garden, deixar que a comunidade conversasse com ele, o aceitasse, para que só assim, pudesse tocar a sua vida pelo tempo que ainda lhe restasse.

— Pode me chamar de Des se quiser... – Manifestou-se Hall timidamente.

Cheever gargalhara alto.

— O que foi que eu disse? – Os dois riram, Vincent um pouco mais discretamente – Já começou agora... Des, brother, seja oficialmente bem-vindo ao Garden!

O ameno clima perdurou por alguns segundos, antes que Vincent, após espantar-se com mais um potente trovão, indagasse preocupadamente.

— Você me parece tranquilo até demais... Desculpe dizer isso, mas... Essas casas são muito frágeis, você não tem medo de uma tempestade tão forte quanto essa?

Instintivamente, o rapaz erguera a cabeça, passando a encarar as placas de metal no teto, que seguiam ritmadas ao compasso da forte ventania.

— Não, já tivemos chuvas mais fodas que essa... – A voz tranquila de Cheever retificava sua aparente despreocupação – E de qualquer forma, a chuva já vai parar!

Incrivelmente, após a última frase dita pelo garoto, toda a forte tempestade que assolava a comunidade cessara de forma imediata, como em um piscar de olhos.

*****

Glenn ainda olhava atônito para o corpo de sua esposa quando Rick Grimes, desperto de todo o torpor pelo qual haviam passado, finalmente levantara-se do solo, cambaleando até o furgão e tomando em sua mão esquerda, da maneira com a qual fora possível, uma pequena faca, libertando-se das cordas que o havia prendido.

O nó fora feito com muita violência, o coto direito preso ao pulso esquerdo para que o xerife não conseguisse se libertar. As marcas avermelhadas em seus membros, denotavam o sangue que fora preso na região, além do formigamento que a parte afetava lhe causava. A dor era lancinante, porém, controlável.

O rosto tomado de suor e sangue, o olho ainda inchado, o que prejudicava quase que totalmente a sua visão do lado direito, além é claro, das mais diversas escoriações espalhadas pelo torso, resultado dos inúmeros chutes e pontapés que recebera ao ser agredido por pelo menos cinco Salvadores. Nada disso conseguia chegar aos pés da dor interna que o xerife sentia naquele momento, apenas equiparando-se ao dia em que perdera Lori e Judith.

Um sentimento de culpa exprimia os seus músculos cardíacos, comprimindo-os em uma massa sem vida, obscura, como se o seu interior acabasse de ser posto em um liquidificador, remexido ao bel prazer daquele que apertara o botão de ‘power’. Aquele que agora sabiam tratar-se de Negan.

O homem chegara junto a sua escória, ironicamente autodenominando-se “Os Salvadores”, salvadores que apenas trouxeram morte e sofrimento para Rick e seu grupo.

As cabeças de Heath e Abraham ainda remexiam os leitosos olhos, piscando de forma descompassada, como se ainda possuíssem uma aura pulsante em meio àquela bizarra forma de existência. As mandíbulas, mordiscando o ar, trincando os dentes sem encontrar nenhuma preza que pudesse suprir sua fome voraz, seguiam movimentando-se, guiadas pelo único instinto que ainda as mantinha com vida.

Olhando para os restos mortais dos dois amigos, Grimes sentiu-se como um lixo, um homem fraco, aquele que tomara uma estúpida decisão, decisão essa que levara três de seus mais valiosos companheiros a um fim trágico e sem sentido. Afinal de contas, o que poderia ter sido mais gratuito do que as mortes de Abe, Heath e Maggie?

Você sabe que a culpa é sua... Assim como ocorreu comigo e Judith...

A voz de Lori ainda reverberava em sua cabeça. Apesar de nunca mais ter retirado o famigerado telefone vermelho do armário, muito bem trancado em seu quarto em Alexandria, Grimes não deixara de ser assombrado pela presença da esposa, fazendo-se presente sempre nos momentos em que o xerife cometia um deslize.

Mas de todos os deslizes que cometera, com toda a certeza, esse havia sido o maior.

Como pudera subestimar o grupo de Negan? Como realmente conseguira acreditar que poderia subjulgar tão facilmente um homem como aquele? Porque diabos enviara Heath e Abraham para assassinar Goodwin?

Olhando por aquele prisma, nada mais fazia sentido. Talvez nunca mais fizesse.

Caminhando em direção ao que sobrara dos amigos mortos, Rick, com todo o pesar que o momento exigia, agachou-se próximo aos dois, cerrando os olhos antes de cravar sua faca em suas têmporas. Exterminando-os de uma única vez, e finalmente os deixando descansar.

O silêncio imperava no pátio do posto de gasolina. Até mesmo o bebê Jacob parecia ter sido tomado pelo luto, já que nem mesmo a pequena criança esperneava-se. Parecia saber que os tempos que viriam seriam negros, tristes e enfadonhos. Um ‘start’ em algo grandioso acabara de ser dado, definitivamente, estava apenas começando.

Ainda sem nada dizer, Rick dirigiu-se primordialmente até o filho, libertando-o das amarras, e o abraçando fortemente. Carl não conseguia parar de olhar para o cadáver de Maggie. Com o olho direito arregalado, o garoto exprimia em suas feições uma perigosa mistura entre o impávido e o aterrorizado. Apesar de ser forte e já ter passado por muitas coisas – talvez coisas até demais – Carl Grimes sabia que o que ocorrera ali era único e devastador o bastante para destruir qualquer pessoa.

As coisas nunca mais voltariam ao normal. Nada voltaria a ser o que era antes. O mundo, tão bom em retirar das pessoas aquilo que elas mais prezam, parecia querer deixar um sinal ao pequeno grupo de sobreviventes, como se dissesse “eu ainda estou ativo, e sou eu quem comanda essa nova era”.

Rick já deveria imaginar que algo dessa magnitude poderia acontecer, afinal de contas, já haviam passado por situações semelhantes outrora. Fora assim na prisão, quando muitas vidas foram perdidas nas investidas do ‘Governador’, e fora assim quando o grupo, logo após tais ocorrências, fora caçado por dias a fio por um grupo de sobreviventes canibais.

Alice, Hershel, Bill, Tyresse, Patricia, Axel, Lori, Judith, Heath, Abraham e Maggie. Todas as mortes causadas por atos temerários do ex-policial. Rick sentia que estava andando em círculos, como se sua vida seguisse um ciclo, e todo o sofrimento e dor aparentemente superados, precisassem voltar com toda a força para destruir gradativamente sua mente.

E o seu coração.

Retirando o filho do transe em que aparentava estar inserido, Grimes entregara-lhe sua faca, para que o menino pudesse ajudá-lo na libertação dos demais.

Ajeitando o curativo surrado que cobria o que antes fora o seu olho – curativo esse manchado por um filete de sangue, causado por uma das agressões físicas sofridas – Carl dirigira-se lentamente até Susie, cortando as cordas que prendiam suas mãos. A mulher, ainda em silêncio, tão horrorizada quanto qualquer um ali, apenas tomara sua criança nos braços, beijando a testa de Jacob, e agradecendo mentalmente por ainda estarem vivos.

O filho de Grimes caminhara até Sophia, que chorava sem emitir nenhum barulho, apenas deixando as lágrimas correrem soltas por sua face, pingando em suas pernas e no solo. Seus olhos arregalados e avermelhados não desviavam da imagem de sua mãe Maggie. Os lábios levemente abertos e trêmulos, confirmavam a incredulidade da menina, que tão nova e em tão pouco tempo, perdera suas duas mães. Duas mulheres que de formas distintas, a amaram mais do que tudo.

Após ser libertada, a menina prosseguiu na mesma posição, ainda de joelhos e sem nada dizer. Nitidamente ela estava se deixando ser consumida totalmente pela dor, pelo ódio e pelo sofrimento que agora lhe tomava todos os poros. Imersa em um pesadelo sem fim, a garotinha apenas desejava que tudo aquilo não passasse de uma mera ilusão, um sonho ruim do qual logo despertaria.

Mas infelizmente tudo era real. Dolorosamente real demais.

Ainda tonto, como se tivesse passado uma noite inteira aproveitando litros e mais litros de whisky escocês, Rick Grimes dirigira-se ao último de seu grupo que ainda permanecia preso. E não eram apenas as cordas envoltas em seu punho que escravizavam Glenn naquele momento.

O asiático fora posto, após ser submetido à tamanha dor e crueldade, em uma jaula, uma sela de grades constituídas do metal mais poderoso de todos. Algo tão potente que poderia aprisionar o seu coração para sempre, transformando o pacífico e esperançoso rapaz, em um poço sem fundo de tristeza e rancor.

Grimes sabia até onde aquilo poderia chegar. Suas perdas o levaram ao limite extremo, fazendo-o quase abandonar de uma vez por todas a sua própria sanidade. Não poderia deixar que o mesmo acontecesse com o seu amigo, não poderia permitir que Glenn fosse tomado por um ódio inominável, algo que o consumiria por dentro, sem prazo de validade.

Uma execração que nunca teria fim. Uma dor que se alimentaria de tudo o que ainda havia de bom em seu interior, deixando para trás apenas uma sombra negra, que tomaria por inteiro o seu coração.

Apesar de difícil, ou melhor, apesar de praticamente impossível, Glenn precisaria reagir. O asiático deveria recomeçar.

Era o que Maggie faria, era o que ela gostaria que seu amado fizesse. E se o xerife pudesse de alguma forma ajudá-lo, faria de bom grado, sem cobrar absolutamente nada em troca.

Parando ante o arrasado asiático, Grimes agachara-se, retirando as cordas e libertando o amigo. Glenn ignorara completamente a ação realizada pelo xerife, seguindo de joelhos, olhando fixamente para o cadáver de sua esposa, ainda com os braços cruzados para trás.

Rick pousara sua mão sobre o ombro de Glenn. Ele sabia que não havia nada que pudesse dizer para amenizar tamanha dor. Porém, sabia também que precisava fazer alguma coisa, tomar as rédeas e assumir a responsabilidade por seus erros.

— Glenn... – A voz rouca de Grimes fora pronunciada em um sussurro – Vamos, precisamos ir...

Um leve aperto no ombro do batedor fora o sinal que o policial usara para tentar retirá-lo do torpor em que estava envolto. O asiático nada fizera, permanecendo estático, como se estivesse em outro mundo, como se sua consciência não mais habitasse aquele lugar.

— Glenn... – Reiterara Grimes, dessa vez ampliando um pouco mais a tonalidade de sua voz – Nós temos que voltar... Nós temos que voltar, Glenn...

— Glenn...

Rick erguera-se do chão, girou nos calcanhares e posicionou-se a frente do amigo. O batedor permanecia na mesma posição. Dos olhos avermelhados e inchados, nenhuma lágrima escorria, de seus lábios entreabertos, nenhum som era propagado. O homem que perdera a esposa e filho, estava totalmente sem chão, sem ação, sem controle sobre o seu próprio ser.

Grimes estendera novamente a mão esquerda, aguardando que o asiático o respondesse, se erguesse do chão e prosseguisse viagem. O xerife sabia que estava pedindo demais, mas também sabia que era necessário. A duras penas ele conseguira se recuperar de todas as merdas pelas quais passara, e por isso tinha total certeza que o sóbrio amigo, como sempre demonstrara ser, também poderia ultrapassar tais percalços.

Bastava querer, bastava se deixar ser ajudado.

— Temos que voltar – Rick manteve o braço estendido – Glenn... Vai amanhecer logo, um grupo de errantes pode acabar nos surpreendendo... Vamos pra casa, amigo!

Com movimentos módicos, Glenn erguera um dos braços, ainda sem encarar o xerife. Segurando na mão esquerda de Rick Grimes, o batedor deixara ser erguido, utilizando-se do peso do corpo do policial como apoio para que pudesse se levantar em um único movimento.

Porém, aproveitando a mesma pegada que o ajudara a se reerguer, o asiático puxara a mão esquerda de Rick com toda a sua força, que somado ao ódio cultivado em seu interior, acabara por ser muito grande. Trazendo-o para junto de si, Glenn desferira um poderoso chute lateral contra as pernas do policial, deslocando sua base e fazendo com que Grimes caísse de costas no solo gelado.

Com os dentes trincados e uma ira que emanava em sua face, como uma aura que envolvia por inteiro, Glenn lançara-se sobre o corpo de Grimes, iniciando uma chuva de socos e cotoveladas, tão vorazes e impulsivos, que alguns deles acertavam apenas o chão, ou o pescoço e peito de seu alvo.

— A culpa é sua! – Gritava Glenn, a plenos pulmões – Você deixou que eles a matassem! Você não fez nada! Você não fez nada!

Com os braços abertos, sem expressar nenhuma reação defensiva, Grimes deixava-se ser agredido, como se não só entendesse as motivações de Glenn, mas também as compartilhasse. Em seu interior, Rick sabia que tinha uma grande parcela de culpa pela morte de Maggie. Apesar de não ter desferido os golpes, eram como se tivesse entregado Lucille ao algoz.

As lágrimas escorriam pelos olhos de Glenn como uma cachoeira descendo por uma queda d’água. As mãos do agressor já se encontravam ensanguentadas, e sua força parecia ir se esvaindo a cada golpe mais violento.

Rick sentira os ossos do seu nariz se partir, uma aguda dor tomara conta de sua face. O gosto do sangue em seus lábios e em sua língua ia se ampliando a cada soco desferido contra sua boca. O olho direito, já machucado pela agressão sofrida anteriormente, agora se encontrava totalmente cerrado e inchado. Ainda assim ele não se defendia, ainda assim ele se deixaria ser morto se precisasse. Ele devia aquilo a Glenn, uma dívida que talvez só pudesse ser paga com sua morte.

Sua visão turva, que antes apenas conseguia visualizar os punhos cerrados e os cotovelos pontudos subindo e descendo em direção a seu rosto, agora finalmente haviam visualizado algo diferente. Inesperadamente as agressões haviam cessado, subitamente o castigo fora interrompido.

Respirando com dificuldades, Rick encarara o rosto de Glenn, que evitava o seu olhar, direcionando seus orbes para frente, fixamente, como se algo ali tivesse chamado bastante a sua atenção.

— Porque você parou?

A voz de Grimes saíra totalmente afônica, sua língua parecia ter o dobro do tamanho dentro de sua boca, e seus lábios, saltados em um inchaço mais do que aparente, ajudavam a atrapalhar sua dicção.

Movendo a cabeça em direção à imagem em que Glenn fixava os olhos, Rick entendera o motivo de o asiático ter interrompido o acerto de contas com o amigo.

Carl estava de pé, segurando sua pistola fixamente com a mão direita, enquanto que com a esquerda, utilizava-se da palma para dar apoio ao pulso, em uma clássica posição de disparo. A arma se encontrava apontada em direção à testa de Glenn, que não parecia assustado, apesar de ter interrompido as agressões direcionadas ao pai do garoto. Seus olhos ainda emanavam ódio, e suas mãos, tomadas pelo sangue do xerife, tremelicavam em um ataque súbito de ansiedade.

— Para de machucar o meu pai!

O pequeno Grimes bradara altivamente, cuspindo as palavras por entre os lábios. O asiático não demonstrara nenhuma reação, apenas encarara o xerife, antes de direcionar as íris para o garoto outra vez. Ainda montado sobre Rick, o batedor apenas passara o dorso da mão direita sobre os lábios, antes de lentamente erguer-se, dando dois passos para trás em recuo.

Contudo, apesar da aparente resolução do conflito, a celeuma ainda não havia encontrado o seu fim. Saltando sobre o braço em que Carl segurava o seu revólver, Sophia, totalmente destruída pelo que fora obrigada a presenciar, encaixara firmemente os dentes no antebraço do garoto, mordendo-o com grande potência.

O pequeno Grimes soltara um horrendo grito, deixando que a arma caísse sobre o solo. Sangue escorria, jorrando do ferimento recém-criado. A menina loira passara então a estapeá-lo, lançando os braços de qualquer maneira em direção ao garoto que ameaçara o seu pai. Gritando de forma histérica, a filha de Carol mais errava do que conseguia acertar Carl, movimentando-se em desespero enquanto chorava copiosamente.

Carl abraçou-a fortemente, entendendo em definitivo o que ali estava ocorrendo. Por ser mais forte do que a garotinha, o filho do xerife conseguiu facilmente envolvê-la em seus braços, trazendo-a para junto de si, e compartilhando com a menina que a tanto o acompanhava, toda a tristeza que aquela desesperadora situação pedia.

Daquele momento em diante, eram assim que as coisas deveriam seguir. Mais do que nunca, aquele grupo teria de ficar unido, ou então, seriam ainda mais facilmente dominados por Negan e seus Salvadores.

Glenn, após respirar profundamente, estendera a mão direita, ajudando o xerife a se levantar. Após erguer-se, Grimes dera dois passos tortos para o lado, ainda sentindo a diferença de gravidade, e obviamente totalmente sem eixo após uma nova seção de espancamento.

Enxugando com a mão o rosto manchado de sangue, Rick tentou abrir o olho direito, porém, por conta de todas as pancadas recebidas, não obteve sucesso. A visão do lado esquerdo já seria suficiente, apesar de estar turva e semicerrada. Recuperando o fôlego e apoiando-se nos próprios joelhos para conseguir reestabelecer totalmente o funcionamento dos pulmões, Grimes retesara o seu corpo, olhando para os céus e atestando que a manhã estava chegando.

— Temos que voltar...

A frase saíra pausada por conta de todos os cortes internos na boca do xerife.

— Eu não vou voltar para Alexandria... – Manifestou-se Glenn, mantendo a seriedade no olhar – Eu vou para o Hill Top, quero... – Nitidamente sua voz embargara, ele parecia engolir uma bola de boliche tamanha a dificuldade em prosseguir – Quero enterrar minha mulher e meu filho por lá... Não vou conseguir voltar, não mais...

Não havia motivos para mais uma discussão, portanto, Grimes concordara de bom grado com o pedido do asiático.

Cobrindo o corpo de Maggie Greene com um lençol, ritual esse feito carinhosa e lentamente por Glenn, que não permitira que mais ninguém de aproximasse de sua esposa, o grupo seguiu viagem em direção ao Alto do Morro assim que todos adentraram ao furgão.

O trajeto seguiu silenciosamente em toda a sua extensão. O sol raiara, mas timidamente preferira esconder-se entre algumas nuvens, como se até mesmo o astro rei estivesse ressentido ante tamanha barbaridade que ocorrera na última madrugada.

Cortando o asfalto a pouco mais de cinquenta quilômetros por hora, a máxima velocidade em que podiam prosseguir, já que as íngremes ruas estavam, quase que em sua totalidade, tomadas por obstáculos físicos, Susie prosseguia ao volante, olhando fixamente para a estrada.

A seu lado, Rick, que por não possuir condição alguma de dirigir, passara o posto a mãe de Jacob, dava as instruções do percurso, enquanto mantinha o filho da motorista em seu colo. O garotinho aconchegava-se no peito do xerife, que no estado em que se encontrava, lembrava-se a todo o momento de Judith e dos breves instantes que tivera com sua menininha.

Seu peito enchia-se de amor ao recordar-se de como vivera feliz no curto período de tempo em que sentira o gosto da paternidade pela segunda vez. Porém, assim como tudo no mundo, aquilo também fora arrancado abruptamente de si, como um castigo por sua sobrevivência ante ao fim do mundo.

Sentados nos bancos de trás, Carl ainda abraçava Sophia, que apoiava a cabeça no ombro do companheiro enquanto fixava os olhos no vidro da janela do veículo, provavelmente com o pensamento bem distante dali. Em um sincero e puro sinal de amizade, o pequeno Grimes retirara o seu inseparável chapéu de cowboy, presente que recebera de seu pai, dando-o a menina loira, que o colocara sobre a cabeça, aconchegando-se ainda mais no corpo de Carl.

Nos fundos da van, Glenn sentava-se apoiando as costas nas portas traseiras, mantendo o cadáver de Maggie, enrolado em um cobertor esverdeado, sobre o colo. O asiático passava as mãos carinhosamente sobre o torso da esposa, acarinhando-a como se ela apenas estivesse dormindo, como se hora ou outra ela fosse retornar para ele.

Após algumas poucas horas seguindo as instruções de um monossilábico Rick Grimes, Susie conseguira levar o furgão ao seu destino. Parados diante dos grandes muros do Hill Top, Grimes aguardara que Kal, o lanceiro que cuidava da segurança, abrisse os portões, permitindo a entrada dos visitantes de Alexandria.

Assim que as duas estruturas metálicas fora repuxadas, abrindo passagem para a van, Susie direcionara o veículo ao interior da nova comunidade, estacionando em frente às portas da Barrington House.

De pé e com um amplo sorriso no rosto, Jesus parecia surpreso, porém contente com o inesperado retorno do grupo de Rick até o seu lar. Abrindo a porta do furgão e descendo do automóvel, Rick caminhara lentamente em direção ao diplomata.

A expressão no rosto do barbudo se modificara imediatamente. Ao ver Grimes no grave estado em que se encontrava, comparado com os tristonhos rostos de todos ali, Paul pode ter certeza de que algo muito grave havia ocorrido.

Sem mais perguntas, entendendo a delicada situação, Jesus levara todos até os seus aposentos, um confortável cômodo na antiga e gigantesca mansão utilizada como moradia coletiva. Deixando todos confortavelmente instalados, Paul pedira que Grimes o acompanhasse até o seu escritório, uma saleta privativa ao lado do hall principal, onde poderia conversar tranquilamente, e sem interrupções, com o mandatário de Alexandria.

Servindo-se com uma pequena dose de licor, Jesus apoiou-se no balcão onde as bebidas se encontravam, arqueando uma das sobrancelhas, ainda tentando digerir tudo o que acabara de ouvir. Rick contara a ele sobre Negan e os seus Salvadores, sobre os inúmeros homens fortemente armados que os capturaram com se fossem formigas, além é claro, de toda a barbaridade que o insano homem fizera com Maggie Greene.

— Por Deus! – Exclamara o barbudo homem, jogando o pequeno copo no chão, passando a tomar a bebida diretamente no gargalo da garrafa de cristal – Nós nunca havíamos visto o Negan antes... Ele nunca estava nos postos avançados, e não podíamos nem mensurar o poder de fogo que ele possuía!

Dando mais um profundo gole no álcool, Paul voltara a dizer.

— Vou voltar com vocês, quero retornar à Alexandria com o seu grupo! Sua comunidade não está mais segura, não depois do que ocorreu... – Jesus olhara fixa e profundamente nos olhos do xerife, finalizando em seguida – Quero que me conte exatamente tudo o que ocorreu, se analisarmos todo os detalhes desse ataque, podemos extrair os pontos fracos dele!

Grimes respirara profundamente, balançando a cabeça de forma positiva. Ele nunca imaginara que um dia as coisas poderiam chegar a esse ponto. Tudo agora era muito mais sério e profundo do que um dia já fora. Alexandria entraria em guerra, Rick entraria em guerra.

Por Heath, por Abraham, Por Maggie... Por Glenn. Rick não sabia quanto tempo demoraria, e nem quantas vidas mais precisariam ser perdidas. Mas ele entraria nessa guerra, com o todo o coração e alma.

Negan encontraria o seu fim por suas mãos. Era uma promessa, uma promessa que carregaria dentro de si enquanto respirasse.


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Notas finais do capítulo

E então, o que acharam?

Agora é guerra, e agora é pra valer!

Enquanto isso, Hall, ou Desmond, ainda tenta se situar no novo mundo em que se enfiara, porém, logo, logo ele verá que Alexandria ainda não o abandonou por completo...

Nos vemos nos comentários...

Moi moi!



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