O Teorema Hudson. escrita por Ritsu Maru


Capítulo 5
Cinco




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Duas horas depois de terem desistido de ver o Maior Crucifixo de Madeira do Mundo, Puck tocou de novo no assunto.

— Você já sabia que o Maior Crucifixo de Madeira do Mundo ficava no Kentucky? — gritou, a janela aberta, a mão esquerda balançando em ondas com a força do vento.

— Só descobri isso hoje — Rachel respondeu. — Mas sei que a maior igreja de madeira do mundo fica na Finlândia.

— Isso não é interessante — disse Rachel.

Cada “isso não é interessante” de Puck havia ajudado Rachel a perceber o que as outras pessoas gostavam e o que não gostavam de ouvir. Rachel nunca tivera essa percepção antes de Puck, porque todo mundo ou fingia que estava interessado ou o ignorava. Ou então, no caso dos Hudson, fingia e depois ignorava. Graças à lista compilada por Rachel de coisas que não eram interessantes, ela conseguia manter diálogos razoavelmente normais.

Depois de trezentos quilômetros e uma parada para abastecer, tendo saído a salvo do Kentucky, eles estavam a meio caminho entre Nashville e Memphis. O vento que entrava pelas janelas abertas havia secado o suor dos dois sem chegar exatamente a refrescá-los, e Rachel se perguntava como poderiam encontrar um lugar com ar-condicionado quando reparou num letreiro pintado à mão acima de uma plantação de algodão, milho, soja ou algo do gênero. SAÍDA 212 — VISITE O TÚMULO DO ARQUIDUQUE FRANCISCO FERDINANDO — O CADÁVER QUE DEFLAGROU A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL.

— Isso simplesmente não parece plausível — Rachel comentou, baixinho.

— Só estou dizendo que deveríamos ir a algum lugar — Puck falou, sem dar ouvidos a ela. — Quer dizer, eu gosto dessa interestadual tanto quanto qualquer outra pessoa, mas se continuarmos seguindo para o sul, vai ficar cada vez mais quente, e eu já estou suando como uma prostituta dentro de uma igreja.

Rachel esfregou a mão no pescoço dolorido, pensando que de jeito nenhum passaria outra noite no carro se tinha dinheiro suficiente para pagar um quarto de hotel.

— Você viu aquela placa? — ela perguntou.

— Que placa?

— Aquela falando do túmulo do arquiduque Francisco Ferdinando.

Desviando completamente os olhos da estrada, Puck virou-se para Rachel, abriu um amplo sorriso e deu um soquinho no ombro da amiga.

— Excelente. Excelente. E, de qualquer forma, é hora do almoço.

• • •

Assim que Rachel saltou do carro no estacionamento da lanchonete Hardee’s, na Saída 212,

no condado de Carver, Tennessee, ligou para os pais, Hiram atendeu.

— Oi, estamos no Tennessee.

— E como você está se sentindo agora, estrelinha?

— Melhor, acho. Não sei. Está quente aqui. Alguém, humm, alguém ligou?

Hiram fez uma pausa, e Rachel pôde sentir a desagradável piedade que havia nele.

— Sinto muito, meu amor. Vou dizer para, humm, alguém, ligar para o seu celular.

— Obrigado, papi. Preciso ir agora. Vou almoçar no Hardee’s.

— Parece uma boa ideia. Não se esqueça do cinto de segurança! Amo você!

— Eu também.

• • •

Após um implacavelmente gorduroso Monster Thickburger na lanchonete vazia, Rachel perguntou para a mulher da caixa registradora, cujo corpo parecia ter sofrido os efeitos da ingestão de uma quantidade talvez grande demais de refeições no local de trabalho, como chegar ao túmulo do Francisco Ferdinando.

— Quem? — ela perguntou.

— O arquiduque Francisco Ferdinando.

A mulher ficou olhando para ele sem esboçar qualquer reação por um instante, mas então seus olhos se arregalaram.

— Ah, cês tão procurando Gutshot. Garota, cê tá indo pra roça, hem?

— Gutshot?

— É. Bem, o que cê precisa fazer agora é sair do estacionamento e virar à direita, quer dizer, saindo da autoestrada. E aí, uns três quilômetros daqui, a rua vai fazer um T. Tem um posto de gasolina Citgo abandonado por lá. Cê pega a direita naquela rua e aí cê vai dirigir um tempão sem ver nada de um lado nem de outro por uns quinze ou vinte quilômetros. Cê vai subir um pedacinho de uma colina e aí cê chega em Gutshot.

— Gutshot?

— Gutshot, Tennessee. Foi pra lá que levaram o arquiduque.

— Então eu pego a direita e depois viro à direita de novo.

— Isso aí. Espero que cês se divirtam por lá, viu?

— Gutshot — Rachel repetiu baixinho. — Tá, obrigado.

• • •

Parecia que a tal estrada de quinze a vinte quilômetros tinha ficado bem no epicentro de um terremoto, e depois nunca mais foi asfaltada. Rachel dirigia com cuidado, mas, ainda assim, os amortecedores gastos do Rabecão rangiam e gemiam nos intermináveis buracos e ondulações do asfalto.

— Talvez a gente não precise ver o arquiduque — disse Puck.

— Essa é uma viagem de carro. É uma aventura — Rachel respondeu, imitando-o.

— Você acha que os moradores de Gutshot, Tennessee, já viram um árabe de carne e osso

na frente deles?

— Ah, não seja tão paranoico.

— Ou então, por falar nisso, acha que já viram alguém assim como você, com esse cabelo?

Rachel ponderou sobre aquilo por um momento e então disse:

— Bem, a mulher do Hardee’s foi legal com a gente.

— Tá, mas a moça no Hardee’s chamou Gutshot de “roça” — Puck argumentou, imitando o sotaque da mulher. — Quer dizer, se o Hardee’s é urbano, não sei se quero ver o que é rural.

Puck continuou com sua diatribe e Rachel sorriu e deu risadinhas nas horas certas, mas simplesmente continuou dirigindo, calculando a probabilidade de o arquiduque, que havia morrido em Sarajevo mais de noventa anos antes, e que havia surgido do nada na cabeça de

Rachel na noite anterior, acabar entre ela e qualquer que fosse o lugar para onde estava indo.

Aquilo era irracional, e Rachel odiava pensar irracionalmente, mas não pôde evitar cogitar se o fato de estar na presença do arquiduque talvez pudesse lhe revelar algo a respeito de seu pedaço perdido. Mas Rachel sabia que o universo não conspirava para colocar uma pessoa em um local em vez de em outro. E pensou em Demócrito: “Em todo lugar o homem culpa a natureza e o destino, embora seu destino seja nada mais que o eco de seu caráter e suas paixões, seus erros e suas fraquezas.”

Então não foi uma obra do destino, mas sim o caráter e as paixões de Rachel Berry, seus erros e suas fraquezas que o levaram a Gutshot, Tennessee — POPULAÇÃO 864, como se podia ler na placa à beira da estrada. Num primeiro momento, Gutshot se pareceu com tudo o que veio antes dela, a única diferença era a estrada, mais bem-asfaltada. Dos dois lados do Rabecão, campos de abóbora, plantas luminosamente verdes que se estendiam num cinza infinito, interrompidas apenas por um eventual pasto de cavalos, um celeiro ou grupos isolados de árvores. Depois de algum tempo, Rachel viu à sua frente, na beira da estrada, uma construção de dois andares feita de tijolos de cimento pintados de um cor-de-rosa pavoroso.

— Acho que Gutshot é aqui — ela disse, balançando a cabeça na direção do prédio.

Ao lado, uma placa pintada a mão dizia:

REINO DE GUTSHOT — LOCAL DO DESCANSO ETERNO DO ARQUIDUQUE FRANCISCO FERDINANDO / CERVEJA GELADA / REFRIGERANTES / ISCAS.

Rachel manobrou o carro para entrar no estacionamento de cascalho da loja. Enquanto soltava o cinto de segurança, falou para Puck:

— Só queria saber se eles guardam o arquiduque com o refrigerante ou com a isca.

A gargalhada sonora de Puck ecoou pelo carro.

— Merda, Berry fez uma piadinha. Esse lugar é mágico para você. Só é uma pena o jeito como vamos morrer aqui. Tipo, falando sério. Um árabe e uma meio-judeu entram numa loja no Tennessee. É o começo de uma piada, e no final vai ter a palavra “sodomia”.

Mesmo assim, Rachel ouvira Puck atrás dela, arrastando os pés pelo cascalho do estacionamento.

Os dois passaram por uma porta de tela e entraram na Mercearia Gutshot. De trás do balcão, uma garota de nariz longilíneo e empinado e olhos dourados que deviam ser do tamanho de alguns planetas menores levantou o olhar de um exemplar da revista Celebrity Living e disse:

— Como cês tão?

— Bem. E você? — Puck perguntou enquanto Rachel ponderava se em toda a história da humanidade alguma alma que valesse a pena teria lido um exemplar sequer da Celebrity Living.

— Tô bem — disse a garota.

Eles ficaram explorando a loja por um tempo, andando pelo piso empoeirado de madeira envernizada, fingindo estar escolhendo entre os vários pacotes de biscoitos salgados, as bebidas e os peixinhos nadando em tanques de iscas. Meio agachado atrás de uma prateleira de sacos de batatas fritas que ia até a altura do peito, Rachel puxou a camisa de malha de Puck, colocou a mão em forma de concha no ouvido do amigo e sussurrou:

Fale com ela.

Só que, na verdade, Rachel não sussurrou, porque nunca dominara a arte de sussurrar — ela meio que falou com um tom de voz ligeiramente mais baixo bem no tímpano de Puck.

Puck se encolheu e balançou a cabeça negativamente.

— Qual é a superfície total, em quilômetros quadrados, do estado do Kansas? — ele sussurrou.

— Humm, uns 211.800. Por quê?

— Nada. É que eu acho interessante o fato de você saber isso mas não conseguir encontrar um jeito de falar sem usar as cordas vocais.

Rachel começou a explicar que até mesmo um sussurro envolve a utilização das cordas vocais, mas Puck só revirou os olhos. Então levou a mão até o rosto e mordiscou a almofada do polegar enquanto olhava para Puck, esperançosa, mas o amigo já havia desviado sua atenção para os sacos de batata frita e, por isso, acabou sobrando para Rachel.

Ela andou até o balcão e disse:

— Oi, nós estamos querendo saber a respeito do arquiduque.

A leitora da Celebrity Living abriu um sorriso. As bochechas salientes e o nariz longilíneo desapareceram. Ela possuía o tipo de sorriso largo e matreiro que não lhe deixa opção senão acreditar — só dava vontade de fazê-la feliz para poder continuar vendo aquele sorriso. Mas ele sumiu de repente.

— As visitas começam de hora em hora, custam 11 dólares e, pra ser sincera, não valem o ingresso — ela respondeu num tom de voz monótono.

— Vamos pagar — Puck disse, aparecendo atrás de Rachel de repente. — A garota precisa ver o arquiduque. — E então Puck inclinou o corpo para a frente e fingiu sussurrar: — Ela está à beira de um ataque de nervos. — Puck colocou 22 dólares no balcão, os quais a garota prontamente deslizou para dentro do bolso do short, ignorando solenemente a caixa registradora à sua frente.

A menina soprou um cacho do cabelo loiro da frente do rosto e suspirou.

— Tá quente lá fora — ela comentou.

— Vai ser, tipo, uma visita guiada? — Rachel perguntou.

— É. E pra minha infelicidade eterna sou eu a guia turística.

Ela saiu de trás do balcão. O rosto mais interessante que bonito.

— Meu nome é Rachel Berry — ela disse para a guia turística/caixa de mercearia.

— Lucy Quinn Fabery — ela falou, estendendo a mão pequena, as unhas com um esmalte cor-de-rosa cintilante descascado.

Ela apertou a mão dela, que então se virou para Puck.

— Noah Puckerman. Muçulmano sunita. Não terrorista. E só Puck.

— Lucy Quinn Fabery. Metodista. Também não. E só Quinn.

A garota sorriu de novo. Rachel não estava pensando em nada além dela mesmo, do H-19 e do pedaço de sua barriga que fora tirado do lugar, mas não havia como negar o sorriso dela. Aquele sorriso seria capaz de pôr fim a guerras e curar o câncer.

• • •

Por um bom tempo eles seguiram atravessando o terreno atrás da loja, com o mato na altura dos joelhos — o que causou irritação na pele sensível das panturrilhas expostas de Rachel. Ela pensou em mencionar isso e perguntar se, quem sabe, não haveria algum trecho recém-aparado pelo qual pudessem andar, mas sabia que Puck acharia que aquilo era sitzpinklerice, então permaneceu calada enquanto o capim lhe dava comichões. Ela pensou em Lima, onde uma pessoa pode passar dias sem pisar uma vez sequer num trecho de terra de verdade. Aquele mundo perfeitamente asfaltado a atraía, e Rachel sentia falta dele quando seus pés pousavam nos desníveis da terra batida, que podiam fazê-la torcer a tornozelo.

Enquanto Quinn Fabray andava à frente dos dois (numa atitude típica de uma leitora da Celebrity Living; evitando falar com eles), Puck simplesmente seguiu ao lado de Rachel. E ainda que Puck, tecnicamente falando, não o tenha chamado de sitzpinkler por ser alérgica ao mato, Rachel sabia que o amigo teria feito isso, o que a incomodou. E então Rachel, mais uma vez, puxou o assunto que menos agradava a Puck:

— Eu já falei hoje que você deveria ir para a faculdade?

Puck revirou os olhos.

— Tá, eu sei. Quer dizer, veja só aonde a excelência acadêmica levou você.

Rachel não conseguiu pensar numa resposta à altura.

— Bem, mas você deveria ir esse ano. Não dá para você não ir para sempre. Você só precisa se inscrever nas matérias a partir de 15 de julho.

(Rachel checara isso.)

— Na verdade eu posso não ir para sempre, sim. Já disse antes e vou dizer de novo: gosto de ficar coçando o saco, vendo TV e pegando garotas. Esse é o grande trabalho da minha vida, Berry. E é por isso que adoro viagens de carro, cara. É como estar fazendo alguma coisa sem, na verdade, fazer nada. De qualquer forma, meu pai não fez faculdade e é rico que nem um porco.

Rachel ficou se perguntando como porcos podem ser ricos, mas apenas disse:

— Tá, mas também seu pai não fica coçando o saco. Ele trabalha, tipo, umas cem horas por semana.

— Verdade. Verdade. E é graças a ele que eu não tenho que trabalhar nem fazer faculdade.

Rachel não tinha reposta para aquilo. Mas simplesmente não conseguia entender a apatia de Puck. Qual o sentido de estar vivo se você nem ao menos tenta fazer algo extraordinário? Que estranho acreditar que um Deus lhe deu a vida e, ao mesmo tempo, achar que a vida não espera de você nada mais que ficar vendo TV.

Mas, pensando bem, alguém que acabou de cair na estrada para fugir das lembranças do seu décimo nono Hudson, e que está se arrastando pelo centro-sul do Tennessee a caminho do túmulo de um falecido arquiduque austro-húngaro, talvez não tenha o direito de sair por aí achando nada estranho.

E Rachel estava ocupada criando anagramas para nada estranhosanta ordenha, tá nada senhor, DNA nesta hora — quando deixou o próprio DNA orgulhoso: tropeçou num montículo de terra e caiu. Ela ficou tão desorientada com a visão do solo se aproximando depressa que nem chegou a esticar os braços para a frente e tentar aparar a queda com as mãos. Apenas caiu para a frente como se tivesse levado um tiro nas costas. A primeira coisa que tocou o chão foram seus óculos, seguidos imediatamente pela testa, que bateu em uma pequena pedra pontuda.

Rachel rolou para o lado e parou de barriga para cima.

— Eu caí — anunciou em alto e bom som.

— Merda! — Puck gritou, e quando Rachel abriu os olhos, viu a imagem embaçada do amigo e de Quinn Fabra se ajoelhando e olhando para ela.

O perfume dela era forte e frutado, e Rachel presumiu que se chamava Curve. Ela havia comprado um vidro desse para a Hudson XVII (sim, a Hudson), mas ela não gostou da fragrância.

— Estou sangrando, não estou? — Rachel perguntou.

— Como um porco no abate — Quinn disse. — Fica quieta. — Ela virou-se para Puck e disse: — Dá aqui sua camisa. — Ao que o garoto imediatamente respondeu “não”, o que Rachel deduziu ter algo a ver alguma cicatrizes protuberantes de Puck. — A gente precisa fazer pressão no machucado —Quinn explicou para Puck, que calmamente negou-se, de novo, e ela retrucou: — Jesus Cristo... tá bem. — Ela tirou a própria camisa.

Rachel apertou os olhos, forçando a vista na embaçada ausência dos óculos, mas não conseguiu ver muito.

— Acho que deveríamos deixar isso para o segundo encontro — Rachel disse.

— Tá, sua lésbica — ela retrucou, mas ela pôde ouvi-la sorrindo.

Enquanto Quinn passava a camisa devagar pela testa e pela bochecha de Rachel e depois pressionava com bastante força uma região macia acima da sobrancelha direita dela, continuou falando.

— Que grande amigo esse que cê tem, hein? Para de mexer o pescoço. Nossas duas preocupações aqui são algum tipo de lesão vertebral ou um hematoma subdural. Quer dizer, as chances são bem pequenas, mas é preciso tomar todas as precauções, porque o hospital mais próximo fica a uma hora daqui.

Ela fechou os olhos e tentou não se encolher enquanto ela fazia uma pressão enorme no

corte. Quinn falou para Puck:

— Faz pressão aqui com a camisa. Volto em oito minutos.

— Deveríamos ligar para um médico ou coisa assim — Puck disse.

— Sou paramédica — Quinn respondeu ao se virar.

— Que diabo de idade você tem? — ele perguntou.

— Dezessete. Tá. Tudo bem. Paramédica em fase de treinamento. Oito minutos. Juro.

Ela saiu correndo. O que Rachel mais gostou não foi do cheiro do Curve — não exatamente. Foi do cheiro do ar logo que Quinn começou a se afastar correndo. O aroma do perfume que ficou para trás. Não há palavra em inglês que descreva isso, mas Rachel conhecia o termo em francês: sillage. O que lhe agradava no Curve não era o aroma que ficava na pele, mas o sillage, o cheiro doce e frutado que ele deixava ao se afastar.

• • •

Puck sentou-se no mato alto, ao lado de Rachel, pressionando bastante o corte.

— Foi mal não ter tirado a camisa.

— As cicatrizes? — perguntou Rachel.

— É, pois é. Só acho que é preciso conhecer melhor a garota antes de mostrar minhas cicatrizes. Cadê seus óculos?

— Foi isso que fiquei me perguntando quando ela tirou a camisa — Rachel disse.

— Nível de gay cem por centro agora. Então você não conseguiu enxergar direito?

— Não consegui. Só vi que o sutiã era roxo.

— Era mesmo? — Puck retrucou, com ironia.

E Rachel se lembrou da H-18 sentada em cima dela na cama, o sutiã roxo, enquanto terminava o namoro. E se lembrou da Hudson XIV, o sutiã preto e todo o resto preto também. E se lembrou da Hudson XII, a primeira que usou sutiã, e de todas as Hudson garotas cujos sutiãs ela vira (quatro, a menos que se contem as alças, o que, no caso, elevaria o total para sete). As pessoas achavam que ela gostava de sofrer, que gostava de levar o fora dos namorados. Mas não era bem assim. Ela só não conseguia antever que isso estava por vir, e ali, deitado no chão duro e irregular, com Puck pressionando demais sua testa, a distância que separava Rachel e seus óculos permitiu que ela percebesse qual era o problema: miopia. Ela tinha a vista curta. O futuro jazia à sua frente, inevitável mas invisível.

— Achei — Hassan disse, e tentou colocar os óculos no rosto da amiga, meio desajeitadamente.

Mas é difícil encaixar os óculos em outra pessoa e, por fim, Rachel levantou a mão e ajeitou a armação no nariz, conseguindo enxergar.

Eureca — falou, baixinho.

Hudson XIX: O Fim (do Fim)

Ele terminou com ela no oitavo dia do décimo segundo mês, vinte e dois dias antes de completarem um ano de namoro. Ambos tinham se formado naquela manhã, mas em escolas diferentes, então os pais de Rachel e os de Finn Hudson, que eram velhos amigos, marcaram um almoço de comemoração. E a noite ficou reservada só para os dois. Rachel se arrumando e se maquiado.

Ela o buscara no Rabecão de Satã e os dois seguiram na direção sul pela avenida Lakeshore, as janelas abertas, por onde podiam ouvir, mais alto que o ronco do motor, o barulho das ondas do lago Michigan açoitando o litoral rochoso. À frente, uma visão aérea da cidade. Rachel sempre amara aquela vista panorâmica de Chicago. Embora não fosse religioso, a visão do panorama urbano provocava nele o que em latim se chama de mysterium tremendum et fascinans — uma mistura de medo aterrorizante com fascínio arrebatador, do tipo que dá frio na barriga.

Eles continuaram até o centro da cidade, um trajeto cheio de curvas à direita e à esquerda, passando em frente aos arranha-céus do centro comercial de Chicago, e já estavam atrasados, porque Finn Hudson sempre se atrasava para tudo. Então, depois de dez minutos procurando uma vaga com parquímetro, Rachel pagou dezoito dólares para parar num estacionamento rotativo, o que deixou Finn irritado.

— Só estou dizendo que poderíamos ter achado uma vaga na rua — ele disse ao apertar o botão para chamar o elevador na garagem do estacionamento.

— Mas eu tenho dinheiro para isso. E nós estamos atrasados.

— Você não deveria gastar sem necessidade.

— Estou prestes a gastar cinquenta pratas em sushi — ela respondeu. — Por você.

A porta se abriu. Exasperado, ele encostou no revestimento de madeira do elevador e suspirou. Eles mal se falaram até estarem dentro do restaurante, sentados a uma mesa minúscula perto do banheiro.

— À formatura e a um jantar maravilhoso — ele disse, levantando o copo de Coca.

— Ao fim da vida como a conhecemos — Rachel completou, e os dois brindaram encostando os copos.

— Jesus, Rachel, não é o fim do mundo.

— É o fim de um mundo — ela argumentou.

— Está preocupado com a possibilidade de não ser a pessoa mais inteligente da Northwestern? — Ele sorriu e então suspirou.

Rachel sentiu uma pontada repentina na barriga. Pensando em retrospecto, essa foi a primeira dica de que alguma parte dele logo estaria faltando.

— Por que você suspirou? — ela perguntou.

A garçonete chegou nessa hora, interrompendo a conversa com um prato retangular de sushis Califórnia e de salmão. Finn separou os pauzinhos e Rachel pegou o garfo. Ela sabia falar um pouco de japonês, para um diálogo simples, mas os pauzinhos eram motivo de frustração para ela.

— Por que você suspirou? — perguntou de novo.

— Jesus, por nada.

— Não, diga por quê — ela insistiu.

— É que você... você fica o tempo todo se preocupando com o fato de deixar de ser prodígio, uma estrela, ou de levar o fora de algum namorado ou com sei lá mais o quê, e nunca, nem por um segundo, fica agradecida. Você foi o orador da turma. Você vai para uma faculdade excelente ano que vem, de graça. E daí que talvez você não seja uma criança prodígio? Isso é bom. Pelo menos não é mais criança. Ou pelo menos não era mais para ser.

Rachel mastigava. Ela gostava da alga que se usa para enrolar o sushi: de como era difícil mastigá-la, da sutileza da água do mar.

— Você não entende — ela disse.

Finn Hudson apoiou os pauzinhos na pequena vasilha com molho de soja e encarou-o de um jeito que ia além da frustração.

— Por que você sempre tem que dizer isso?

— É verdade — ela falou simplesmente, e Finn Hudson não entendia.

Ele continuava lindo, engraçado, sabendo comer com os pauzinhos. Ser prodígio era tudo o que Rachel tinha, da mesma forma que um idioma tem suas palavras.

No meio de todo esse vaivém de perguntas e respostas, Rachel tentava controlar o ímpeto de perguntar se ele ainda a amava, porque a única coisa que Finn odiava mais do que

Rachel dizendo que ele não entendia era Rachel perguntando se ele ainda a amava. Ela tentou e tentou se controlar. Por sete segundos.

— Você ainda me ama?

— Ai, meu Deus, Rachel! Por favor. Nós nos formamos. Estamos felizes. Comemore!

— Por quê? Está com medo de dizer?

— Eu te amo.

Ele nunca mais — nem uma vez sequer — diria essas palavras nessa ordem novamente.

— Dá para criar um anagrama para sushi? — perguntou.

— Ih, sus — ela respondeu imediatamente.

— Sus tem três letras; sushi tem cinco — ele disse.

— Não. “Ih, Sus.” O Ih e o Sus. Dá para fazer outros, mas eles não fazem sentido,

gramaticalmente falando.

Ele sorriu.

— Às vezes você se cansa de tanto eu perguntar se dá para criar anagramas?

— Não. Não. Eu nunca me canso de nada que você faz — disse, e aí ficou com vontade de pedir desculpas, e de explicar que às vezes se sentia incompreendido, às vezes ficava preocupado quando os dois discutiam e ela ficava um tempo sem dizer que o amava, mas se conteve. — Além do mais, eu gosto que sushi vire “Ih, Sus”. Crie uma história.

“Crie uma história” era um jogo que ele inventara no qual Rachel formava os anagramas e Finn inventava uma cena anagramática.

— Tá — ele disse. — Tá. Aí um cara vai pescar no píer e pega uma carpa. E é claro que ela está toda cheia de pesticidas, esgoto e todas as porcarias nojentas do lago Michigan, mas ele leva a carpa para casa mesmo assim porque imagina que se fritá-la por tempo suficiente não vai ter problema. Ele limpa o peixe, corta em filés e aí o telefone toca, então tudo fica na bancada da cozinha. Ele fala ao telefone por um tempo e, quando volta, vê que a irmã menor, Susana, está segurando um grande pedaço cru da carpa do lago Michigan. E está mastigando. Ela levanta os olhos para o irmão, e diz: “Sushi!” E ele exclama: “Ih, Sus...”

Eles riram. Ele nunca a amou tanto quanto naquele momento.

• • •

Mais tarde, depois que os dois entraram no apartamento na ponta dos pés e Rachel subiu a escada para dizer os pais que chegara em casa — deixando de fora a informação, provavelmente relevante, de que não estava sozinho —, e depois que haviam pulado na cama, no andar de baixo, e depois que ela tirara a camisa dele, e ele, a dela, e depois que se beijaram até os lábios dele ficarem dormentes e formigando, ele perguntou:

— Você está mesmo triste por se formar?

— Não sei. Se eu tivesse feito diferente... Se tivesse entrado na faculdade com 10 anos, ou coisa assim... Não dá para saber se minha vida seria melhor. Nós provavelmente não estaríamos juntos. Eu não teria conhecido Puck. E muitos prodígios que se esforçam, se esforçam e se esforçam acabam ainda mais fugged up que eu. Mas outros acabam sendo um John Locke ou um Mozart ou sei lá quem mais. E as minhas chances de “Mozartidade” acabaram.

— Rach, você tem 17 anos. — Ele suspirou de novo.

Ele suspirava muito, mas não devia haver nada de errado, porque a sensação de tê-lo aninhada ao corpo dela era tão boa, sua cabeça no ombro dele, mão afastando os

cabelos morenos e macios da frente do rosto de Rachel.

— Mas é como a tartaruga e a lebre, Finn. Eu aprendo mais rápido que as outras pessoas,

mas elas continuam aprendendo. Meu ritmo diminuiu e agora elas estão me alcançando. Sei que tenho 17 anos. Mas já passei do meu ápice.

Ela riu.

— Sério. Existem estudos sobre essa merda. Os prodígios tendem a atingir seu ápice aos, tipo, 12 ou 13 anos. E o que foi que eu fiz? Eu venci um fugging de um programa de televisão um ano atrás? É essa a minha marca indelével na história da humanidade?

Finn Hudson se sentou olhando para ela. Rachel pensou nos outros suspiros dele, melhores e diferentes, pensou no corpo dele roçando no dela. Ele o encarou por um bom tempo, aí mordeu o lábio inferior e disse:

— Rachel, talvez o problema seja nós dois.

— Ai. Merda — ela disse.

E foi aí que tudo começou.

O fim consistiu basicamente em sussurros dele e silêncio dela — porque Rachel não sabia sussurrar e os dois não queriam acordar os pais dela. Conseguiram não fazer barulho, em parte porque parecia que todo o ar havia sido tirado dele. Paradoxalmente, Rachel sentia como se o término do namoro fosse a única coisa acontecendo em todo o planeta escuro e silencioso, e, ao mesmo tempo, parecia que aquilo não estava acontecendo de fato. Ela sentiu sua atenção se desviar da conversa unilateral e sussurrada e começou a se perguntar se talvez todas as coisas grandes, dolorosas e incompreensíveis seriam paradoxais.

Ela era um mulher à beira da morte olhando para os cirurgiões que tentavam salvá-la. A uma distância quase confortável da coisa em si, do que estava realmente acontecendo, Rachel pensou no mantra dos fracotes apatetados: paus e pedras podem quebrar meus ossos, mas palavras nunca vão me machucar. Que mentira deslavada! Aquilo, ali e naquele instante, era o verdadeiro Abdominável Homem das Neves: parecia que havia algo congelando em seu estômago.

— Eu te amo tanto... e só quero que você me ame do mesmo jeito que eu te amo — ela disse, o mais baixo que conseguiu.

— Você não precisa de um namorado, Rachel. Você precisa de um robô que não diga nada além de “eu te amo”.

E parecia que pedras e paus o estavam atingindo de dentro para fora, era uma dor palpitante e depois aguda logo abaixo da caixa torácica, e foi aí que ela sentiu, pela primeira vez, que parte de suas vísceras lhe havia sido arrancada.

Finn Hudson tentou ir embora da forma mais rápida e indolor possível, mas assim que declarou que precisava sair de qualquer jeito, pois tinha hora para chegar em casa, Rachel começou a chorar. Ele segurou a cabeça dela encostada em sua clavícula. E mesmo se sentindo patética e ridícula, Rachel não queria que aquilo acabasse, porque sabia que a ausência dele doeria mais que qualquer fim de namoro.

Mas Finn Hudson foi embora mesmo assim e ela ficou sozinha no quarto, tentando encontrar anagramas para meupedaçoperdido na vã tentativa de pegar no sono.


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Notas finais do capítulo

Irei tentar postar o mais rápido possível.
E, ae, a Fabray apareceu! -q



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