A Esperança - Peeta Mellark escrita por Nicoly Faustino


Capítulo 33
Capítulo 33




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Não sei em que momento dormi, nem por quanto tempo. Mas, quando acordo, Katniss está bem desperta, Cressida me olha fixamente, enquanto Gale e Pollux se espreguiçam, com certeza sentindo as mesmas dores no corpo que eu. Talvez dormir não tenha sido uma boa ideia. Antes, estávamos elétricos, quase radioativos, com tanta adrenalina nas veias. Agora, enquanto olho ao redor, vejo apenas rostos cansados, débeis. Não tento me levantar como os outros. Sei que por ora, ficaremos aqui. Olho para Katniss, que parece estar extremamente agitada. Ela pigarreia. Uma, duas, três vezes, até que todos estamos olhando fixo para ela, o que a deixa levemente corada. E ainda mais linda.

– Eu menti pra vocês – ela começa, a voz trêmula. – Nunca houve essa missão, Coin não me mandou para matar Snow. Todos estão mortos, por minha causa. Acho que devemos nos separar. Ou tentar voltar. Ou eu devo me entregar.

A discussão começa. E Gale faz o que eu gostaria de fazer, que é tentar convencê-la do contrário. E enquanto as vozes vão aumentando cada vez mais, eu só consigo pensar em uma coisa. Ela quer se entregar. Ela acha que vai estar fazendo um favor a nós todos, se entregando? Ela acha que vamos voltar felizes para o distrito 13, sabendo que Snow está a matando lentamente? Eu nunca permitirei isso.

Cressida e Gale agora argumentam firmemente sobre nossa missão ter sido bem-sucedida apesar das perdas, sobre nós estarmos perto do objetivo dessa missão inexistente, entre outras coisas. E então a voz de Katniss os interrompe, e seu olhar se direciona a mim.

— O que você acha, Peeta? — ela pergunta, sem hostilidade.

— Eu acho... que você não tem mesmo ideia. Do efeito que pode ter. — digo, e me assusto ao dizer isso, pois me soa como algo terrivelmente familiar. Com dificuldade, consigo me sentar, pois falar, deitado, com a pulsação acelerada do modo como a minha está, me sufoca. — Nenhuma das pessoas que nós perdemos era idiota. Elas sabiam para o que estavam indo. Elas seguiram você porque acreditaram que você realmente poderia matar Snow.

Todos me olham fixamente, inclusive Katniss. E após alguns instantes de silencio, vejo a determinação se acendendo nos olhos dela. Ela puxa o mapa de seu bolso, para começar um novo plano. Não é como se eu quisesse que Katniss se torne uma assassina. Mas de qualquer forma, não é isso que nós somos? Não é isso que nos tornamos, desde que fomos enviados para os malditos jogos?

Cressida nos informa de que estamos a uma distância mínima da mansão de Snow. Chegar lá talvez não seja tão difícil se seguirmos pelo caminho certo e bem disfarçados. Mas e depois? Entrar na mansão será o maior desafio, é a conclusão a que todos chegamos.

— O que nós precisamos é colocá-lo em espaço aberto — Gale diz para Katniss. — Então um de nós poderia abatê-lo.

— Ele nunca mais apareceu em público? — pergunto, para Katniss também. E percebo envergonhado que venho disputando a atenção dela, com Gale.

— Eu acho que não — é Cressida quem reponde. — Pelo menos em todos os recentes discursos que eu tenho visto, ele está na mansão. Mesmo antes dos rebeldes chegarem aqui. Imagino que ele ficou mais vigilante depois que Finnick colocou no ar seus crimes.

Não me lembro disso. Que crimes mais Snow tem em suas mãos? Bem, não quero saber. Suor começa a brotar em minha testa, só em ter de pensar em Snow. Mas forço as algemas em meu pulso, numa tentativa de me manter concentrado.

— Eu aposto que ele sairia por mim — Katniss dispara captando minha atenção e aflição. — Se eu fosse capturada. Ele desejaria isso tão público quanto possível. Ele deseja minha execução em seus degraus da frente. Então Gale poderia atirar nele na frente da audiência.

— Não — grito, e espasmos dolorosos começam a me acometer, enquanto imagens terríveis povoam minha mente, e eu as deixo sair. — Há tantas alternativas finais para esse plano. Snow pode decidir mantê-la e torturar para tirar informações de você. Ou ter sua execução sem sua presença. Ou matar você dentro da mansão e exibir seu corpo na frente.

— Gale? — ela tenta, e eu o olho, suplicante para que ele não aceite isso. Se ele a ama, não pode permitir que ela se entregue assim. E eu sei, que se um de nós a apoiar nessa loucura, ela irá fazer isso.

— Parece uma solução extrema para agora. Talvez se tudo mais falhar. Vamos nos manter pensando – ele responde, rígido, e sustenta meu olhar.

Barulhos acima de nossas cabeças, encerra nossa conversa. Há um arrastar de coisas, barulhos de correntes, e em seguida a voz de Tigris nos alcança.

– Venham para cima – ela chama. – Eu tenho alguma comida para vocês.

Sua voz é estranha. Nasalada, rouca. Penso que se um gato falasse, seria exatamente assim. Me pego rindo com esse pensamento, em seguida me repreendo. Devo estar enlouquecendo. Essa não é a primeira vez que penso estar louco. Mas Haymitch acharia isso engraçado. Que saudades daquele bêbado.

Quando chegamos ao balcão da sua minúscula cozinha, há apenas um pouco de pão velho, e duro, um queijo mofado, e um pouco de algo que pela cor, é mostarda. Pessoas da capital também passam fome, pelo visto. A crueldade da capital não tem limites. Vejo o olhar compadecido de Katniss, e já sei o que ela fará em seguida. Ela conta sobre nossas sopas enlatadas, mas Tigris se recusa a aceitar, e solta a assombrosa informação de que come pouquíssimo, e apenas carne crua. Claro, afinal ela é um felino.

Katniss então divide a comida entre nós, e raspa o mofo do queijo. Enquanto todos comem, eu me forço a comer um pouco, mas meu estomago se recusa, então eu vou colocando discretamente minha comida, junto com a parte de Gale. Se Katniss estivesse mais próxima, eu colocaria para ela, mas ela está distante, concentrada como o restante nas informações mais recentes sobre a capital, que está passando na televisão velha de Tigirs. Me lembro, de repente, que a televisão que havia na minha casa, na aldeia dos vitoriosos, era melhor que essa.

Não olho para as notícias, mas sou obrigado a escutar. Aperto firme o pedaço de queijo que restou em minha mão, e desejo que Finnick estivesse aqui, enquanto ouço os repórteres falando com aversão sobre nós, sobre os rebeldes.

— Os rebeldes fizeram alguma declaração hoje? — Katniss pergunta para Tigris.

Vejo pelo canto do olho, Tigris balançar a cabeça negativamente. E vejo também, apenas por um segundo, a imagem na televisão da mulher que Katniss matou. A flecha ainda em seu coração. Seu rosto num tom rosado, devido as maquiagens que devem ter feito nela. Cerro os dentes. Aguente firme, suplico a mim mesmo.

— Eu duvido que Coin saiba o que fazer comigo agora que estou viva novamente.

Tigris apenas ri.

— Ninguém sabe o que fazer com você, garota.

Penso nessa frase, e vejo nela um contexto verdadeiro. Em meio as minhas turbulentas emoções, eu sorrio.

Antes de voltarmos, eu pergunto a Tigris, discretamente se ela não poderia dar a Katniss, alguma roupa quente, pois o porão é extremamente frio. Ela dá de ombros, mas em seguida eu a vejo entregando a Katniss, uma calça de tecido fofo, e grosso. Aceno com a cabeça para Tigris, agradecido. Ela faz algo que parece ser um sorriso, revelando suas presas afiadas, como um gato. Credo, que loucura. Quando voltamos ao nosso porão-esconderijo-frio, recomeça a discussão sobre um plano. Eu me junto a Pollux, que infelizmente não pode participar da discussão, e apenas escutamos, uma ideia mais suicida, e absurda que a outra. Porém, a uma conclusão é chegada. Não podemos tentar chegar até a mansão os cinco juntos, visto que a capital supõe que cinco de nós estão vivos. A hora derradeira em que terei que me separar de Katniss está chegando. Adiando esse pensamento, me afundo em minha cama de peles, que pinicam em meu pescoço, e adormeço quase instantaneamente, enquanto ainda escuto alguns sussurros.

Dessa vez, em meu horrível sonho, Katniss está ajoelhada, nos degraus brancos da mansão de Snow. Seu sangue forma uma poça ao redor dela, seu cabelo pende numa perfeita trança. Quando ela ergue o rosto, hematomas cobrem quase toda sua pele. As algemas em seu pulso parecem apertadas, e eu sei que sua pele deve estar em carne viva. Eu quero correr até ela, quero tirá-la dali mas percebo que meus pés estão presos, por algemas. Eu forço, o máximo que posso, mas tudo o que consigo, são cortes em meus tornozelos. Lágrimas molham o rosto de Katniss, enquanto meu nome se forma em meus lábios, Snow, aparece ao lado dela, e corta sua cabeça, num jorro de sangue. A cabeça dela quica nos degraus, e para em meus pés.

Acordo em lágrimas, um grito sufocado em minha garganta. Tusso, engasgado, em desespero. E das sombras, Gale se move, e me levanta, batendo em minhas costas, até que eu consigo recuperar o fôlego. Ele se afasta, e volta com uma garrafa com água, e me faz beber quase tudo. Minha respiração volta ao normal, e eu percebo que todo aquele horror não foi real. Me sinto leve com essa constatação. Gale, sem nenhuma palavra, volta para sua cama improvisada, não antes de colocá-la para mais perto de mim. Ele parece preocupado comigo. O que é estranho. Decido não contar a ele, sobre o real motivo que me deixou assim, afinal, foi apenas um sonho. Porém, eu contaria a Finnick, se ele ainda estivesse aqui. Pensar em Finnick, é como cutucar com cacos de vidro, uma ferida aberta. Jogo para o fundo da minha mente e do meu coração esse sentimento, incurável de perda. Decido agradecer a Gale, pelo menos uma vez na vida.

— Obrigado pela água — digo, sem jeito.

— Sem problemas — Gale responde. — Eu acordo dez vezes por noite, de qualquer modo.

— Para ter certeza que Katniss está mesmo aqui? — pergunto, já sabendo a resposta.

— Algo assim — ele admite.

É bom saber que há alguém no mundo que ame Katniss também, e que a proteja, inclusive de mim.

— Isso foi engraçado, o que Tigris disse – solto, sentindo uma onda de confiança em Gale, nascer dentro de mim. - Sobre ninguém saber o que fazer com ela.

— Bem, nós nunca soubemos — ele responde, e em seguida começa a rir. Percebo que também estou rindo, e dessa vez, não tento me conter. Rimos, por um momento bastante longo no qual finalmente tenho de admitir uma coisa. Sempre terei algo em comum com Gale. Algo que nos impede de ser amigos, mesmo sabendo a ótima pessoa que ele é. E ao mesmo tempo é algo que nos impede de ser inimigos. Estranho isso.

— Ela te ama, você sabe — digo, quando o silencio volta a preencher o ambiente. Sinto como se já tivesse ouvido essas palavras dele, mas não posso ter certeza. — Ela deixou isso bem claro depois que eles açoitaram você.

— Não acredito nisso — ele responde. — O modo como ela beijou você no Massacre Quaternário... bem, ela nunca me beijou assim.

— Isso foi somente parte do show — eu falo, e me lembro do beijo. Será que alguém pode fingir algo de uma forma tão real daquele jeito?

— Não, você a conquistou. Desistindo de qualquer coisa por ela. Talvez essa seja a única forma de convencê-la que você a ama. — Ele suspira. — Eu devia ter me voluntariado para pegar seu lugar no primeiro Jogos. Protegendo-a, então.

— Você não podia. Ela nunca teria perdoado você. Você tinha que proteger a família dela. Elas importam mais para ela do que sua própria vida.

— Bem, isso seria uma discussão muito longa. Acho que é improvável todos os três de nós sobrevivermos ao fim da guerra. E se nós sobrevivermos, eu penso que esse é um problema de Katniss. Quem ela deve escolher — ele diz, em seguida boceja. — Nós devemos ter algum sono.

— Sim – respondo, com essa frase martelando em minha mente. “Quem ela deve escolher”...É ruim demais, pensar em ser rejeitado por Katniss. Eu movo minha algema para baixo, e me deito novamente. Sei que não dormirei, não depois do pesadelo que tive. Vou passar, mais uma noite, velando o sono de Katniss, coisa que descobri ser uma ótima distração. Porém, após alguns minutos, ainda me sinto inquieto. Sei que Gale ainda está acordado, e não resistindo, eu falo, baixinho.

— Eu queria saber como ela se decidirá.

— Oh, isso eu sei — Gale sussurra, sonolento. — Katniss escolherá quem ela pense que não pode sobreviver sem.

Dolorosamente, sei que ele pode estar certo. E a dor, não é por amar alguém, que ama outra pessoa, ou que pode nunca ter me amado. A dor, é por saber que Katniss na verdade pode sim, sobreviver sem mim. E que na verdade, estando comigo, é que ela pode não sobreviver. Pois até quando meu amor por ela vai conseguir sobrepor meu instinto de querer acabar com a sua vida?


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