O Ritual dos Pães escrita por Gabriela Maria


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Embora seja one shot, essa fanfic é, de certa forma, baseada em minha fanfic anterior, "Voltando", que conta como o casal principal teria iniciado seu relacionamento. Não é preciso ler as duas para compreender essa segunda, mas certamente ajudaria o leitor a entender alguns detalhes.



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Um peru selvagem caminha despreocupadamente sob a mira de minha flecha. Escondida atrás de um arbusto, eu preparo a mira com cuidado e libero a flecha, que voa direto para a cabeça do bicho. É um peru gordo e adulto, do tipo que Greasy Sae adora quando vai fazer seus ensopados e que Peeta usa para as tortas que aprendeu a preparar.

Apanho o peru e sinto seu peso, satisfeita. Removo a flecha e a guardo na aljava outra vez. Como a bolsa de caça já está muito cheia, levo esse último peru na mão durante todo o caminho até a cidade.

Se alguém me falasse há um ano e meio que o Distrito 12 conseguiria se reconstruir, eu jamais teria acreditado, mas o fato é que nosso pequeno território se transformou num verdadeiro canteiro de obras, repleto de novos e velhos moradores. Ainda não me sinto confortável o bastante para circular pelas áreas mais movimentadas, mas faço um esforço para não me esconder demais. Foi algo que Peeta me pediu.

– É o nosso lar – ele disse. – Você não pode achar que o Doze se resume às nossas casas e à floresta.

Durante muito tempo, eu quis que ele estivesse errado, mas agora há algum conforto em saber que não somos os únicos no Distrito.

A cerca que circunda floresta não é mais eletrificada. Eu a atravesso civilizadamente por um pequeno portão que sai na Campina. Tivemos um bom período de chuvas ao longo do ano, o que deixou o terreno coberto por uma bela camada de grama, mas já chegamos ao inverno e o frio está começando a diminuir a cobertura vegetal. Algumas crianças estão brincando na grama gelada, indiferentes ao mau tempo.

É bom ver crianças no Doze outra vez. Elas alegram e trazem esperança, o que não significa que estão muito seguras. Sempre que vejo minhas cicatrizes, lembro que o sistema é frágil e que ele ainda está muito recente. Talvez o país esteja à beira do colapso outra vez e, nesse caso, as crianças seriam certamente as mais prejudicadas. Eu sei qual é o saldo de uma guerra: filhos sem pai, sem mãe, sem irmãos e sem amigos. Em casos extremos, já punimos dissabores políticos com os Jogos Vorazes.

De toda forma, o que se sabe é que está tudo sob controle em Panem, quase como se Plutarch tivesse acertado suas previsões acerca de uma paz duradoura.

Atravesso a Campina, sentindo certa nostalgia. Houve uma época em que fui criança também e brinquei na Campina durante horas para depois voltar às pressas para a Costura e tomar banho a tempo de receber meu pai após sua jornada de trabalho nas minas.

Parece que isso aconteceu na vida de outra pessoa.

Alcanço a praça principal, onde Thom, que trabalhou com Gale nas minas antes da guerra, me cumprimenta. Há alguns meses, Peeta me contou que ele estava envolvido com Delly Cartwright. Ao que parece, os dois são um casal agora. E Delly é a nova parceira de Peeta em suas aventuras culinárias.

– Esse peru ai parece muito bom – Thom comenta, sorrindo.

– É, acho que vou levar para o Peeta usar nas receitas dele. Cacei outras coisas que Greasy Sae pode usar.

– Ele está com a Delly na loja. Você sabe como é, os dois não saem mais de lá.

Desde que a fábrica de remédios começou a funcionar, alguns meses atrás, a demanda por serviços no Doze cresceu rapidamente. Vários moradores decidiram se tornar comerciantes. Thom conseguiu um emprego como chefe de produção na fábrica, mas Delly preferiu se arriscar. Como ela não sabia no que deveria investir, convidou Peeta para que os dois fizessem uma parceria e reabrissem a padaria da família Mellark.

– Podemos usar até o mesmo nome, se você quiser homenagear seus pais e seus irmãos – Delly falou.

À época, Peeta teve muitas dúvidas. Ele passou vários dias considerando a proposta, inseguro.

– Uma coisa é cozinhar para a gente, fazer algumas doações... Outra muito diferente é abrir um negócio. Fazer pão é minha terapia.

– Delly não disse que você seria o padeiro, disse? Pensei que só precisaria treinar os funcionários – eu falei.

– E supervisionar o serviço – ele balançou a cabeça. – Não, Katniss, não estou pronto para isso.

– Peeta – eu segurei suas mãos entre as minhas e Peeta imediatamente sustentou meu olhar. – Você é o melhor padeiro que Panem já conheceu. Se existe alguém pronto para isso, esse alguém é você. E Delly é sua amiga. Ela sabe que você só vai prometer o que puder cumprir.

– Empresário... Sócio de Delly... – ele fez uma careta. – E se der errado?

– Não vai dar errado. Ninguém aqui está mais preparado para isso do que você. E você já está vendendo bolos sob encomenda, de qualquer forma.

– Você percebe que, se eu realmente me meter nisso, vou passar boa parte do dia fora, trabalhando. Não vou passar a maior parte do tempo em casa, esperando que você volte da caçada ou...

– Peeta, você tem o direito de viver também. Nós vamos lidar com isso juntos. É o que fazemos de melhor, certo?

No fim das contas, ele acabou aceitando a ideia e financiando com Delly a construção da padaria em frente à praça. O lugar já está perto de inaugurar e Peeta finalmente parece empolgado de verdade. Ele fala o tempo inteiro dos funcionários, dos equipamentos, dos retoques finais na obra.

Quando empurro a porta de vidro e entro, ele está atrás do balcão principal, conferindo o acabamento do móvel. Peeta não percebe que entrei, então gasto alguns segundos para observá-lo. Ele recuperou algum peso e não está mais tão pálido. Suas cicatrizes nunca foram menores. Ele ainda tem pesadelos e flashbacks, mas eles ficaram menos frequentes e menos intensos. Observo seus cabelos louros caindo sobre os olhos. Eles definitivamente precisam de um corte.

Ponho o peru sobre o balcão e Peeta ergue a cabeça para ver o que houve.

– Ei – ele me cumprimenta, sorrindo. – Não vi você chegar.

– Trouxe essa belezinha para você – digo, indicando o peru.

– Nada mau – Peeta elogia, avaliando o animal. – Acho que esse vai ficar para festa de inauguração.

A festa.

Uma noite inteira em que ficarei diante da população do Distrito 12 por várias horas, indefesa, enquanto Peeta mostra a todos o seu empreendimento.

Como se adivinhasse meus pensamentos, ele se inclina e me beija devagar. Esqueço momentaneamente sobre a inauguração.

– Desculpe. Eu prometo que chego mais cedo hoje – diz. Balanço a cabeça, tentando demonstrar indiferença.

– Tudo bem, Peeta. Eu sei que você está ocupado.

Ele sai de trás do balcão e vem para junto de mim, passando um braço por meus ombros. Encolho-me em seu abraço, porque estou com saudades. Eu já estava acostumada a vê-lo durante a maior parte do dia e a interrompê-lo sem remorsos. Com a padaria, não posso simplesmente pedir a Peeta que largue tudo por minha causa.

Não de novo.

– O que você acha? – ele indica a padaria como um todo. – Ficou bonito?

– É linda – digo com sinceridade. Peeta sorri.

– Você está incomodada – minhas bochechas esquentam um pouco.

– Eu sinto sua falta lá em casa – digo. – Só isso.

– Você sabe que, tecnicamente, eu passava o dia na minha casa, cozinhando, porque Greasy Sae não sabe dividir o espaço – não respondo. Peeta beija o topo de minha cabeça. – Você está bem?

Estou, segundo o Dr. Aurelius, em meu melhor estado de saúde física e emocional. Já voltei a caçar todos os dias pela manhã e, pelo resto do dia, limpo a caça e providencio tudo de que as casas precisam, a minha, a de Peeta e a de Haymitch. Semanalmente, entrego parte do que cacei para um açougue aqui perto.

Levou muito tempo, mas, quando Haymitch finalmente aceitou a ideia de Peeta sobre criar gansos, o estado dele melhorou o suficiente para que saísse de casa e nos ajudasse com o livro de recordações. Como o livro já está quase pronto – na prática, nós podemos fazer uma nova adição a qualquer instante – e Peeta está trabalhando fora, Haymitch tem ido com menos frequência à minha casa. Ainda assim, quando não quero ficar sozinha e desocupada em casa, procuro por ele, nem que seja só para ouvi-lo reclamar da falta de bebidas alcoólicas no Distrito.

– Estou ótima – respondo enfim.

– Katniss! – olho por cima do ombro e vejo Delly saindo da cozinha, com um grande sorriso. Ela vem até nós. – E aí, o que você achou do lugar?

– Fica mais bonito a cada dia – respondo gentilmente. Ela não cabe em si de alegria.

– Obrigada! Peeta, você conferiu o forno que recebemos ontem? – ele confirma.

– Tudo certo – informa. – Acho que já podemos abrir na semana que vem.

Eu o aperto com um pouco mais de força. Não gosto de pensar na festa de inauguração.

– Ótimo! – Delly comemora. – Bem, vou almoçar com o Thom. Vocês vêm? – nego com a cabeça.

– Obrigada, Delly, mas preciso voltar para casa, cuidar da caça e tudo o mais.

– Eu vou junto – Peeta acrescenta.

Finalmente, ele carrega a bolsa cheia de caça até minha casa, insistindo que não preciso levar tanto peso.

Greasy Sae não está aqui, então começo a limpar a caça, jogando as entranhas para Buttercup, enquanto Peeta providencia algo para o almoço. Conversamos sobre o Distrito nesse meio tempo. Peeta fala algo sobre o grande número de pessoas que já estão ansiosas pela inauguração da padaria, já que poucos estabelecimentos do tipo entraram em funcionamento.

Ele está de costas enquanto fala, concentrado com uma panela fumegante no fogão, e eu me distraio enquanto o observo. Gosto da maneira como Peeta se move, da entonação de sua voz, de como tudo parece tão simples para ele. Sei que o trabalho na padaria é importante para ele se sentir mais seguro consigo mesmo, mas também sei que vou sentir saudades se ele ficar muito ocupado.

É uma bobagem. Peeta já dorme aqui todas as noites. O pior que tem acontecido é ele se atrasar para o jantar uma ou outra vez, nada demais. Mas, teoricamente, ele ainda não mora aqui.

– Katniss? Katniss, você ouviu o que eu falei?

Quando dou por mim, Peeta está ajoelhado à minha frente, confuso.

– O que houve? – sei que ele vive o medo eterno de que a concussão em minha têmpora me deixe desorientada outra vez, então explico:

– Eu só estava distraída em pensar. Desculpe.

– Qual o problema, Katniss?

Mordo a parte interna da bochecha, mas não quero ficar envergonhada. Não há nada de vergonhoso nisso.

– Gosto de observar você – improviso. Peeta sorri.

Eu quero, do fundo do meu coração, acreditar que não estou arrependida por tê-lo incentivado a abrir a maldita padaria, mas, quando terminamos de almoçar e Peeta avisa que voltará para a praça em cerca de uma hora, meus esforços começam a perder seus efeitos.

Subimos para o quarto e ficamos abraçados na cama, deitados, num silêncio sagrado. Tento não aparentar mau humor e, para isso, distraio-me com os botões da camisa de Peeta. Ouço o som de seu coração sob meu ouvido, batendo num ritmo constante em seu peito.

É sempre reconfortante ouvir o coração dele batendo.

– Você está chateada com alguma coisa – Peeta sussurra de repente. – Verdadeiro ou Falso?

Ele sempre usa o jogo quando quer me pressionar a responder. Provavelmente, sabe que eu não responderia de outra forma.

– Verdadeiro – digo.

– E você está com raiva de mim? – suspiro, cansada. Ergo o corpo num antebraço para olhá-lo.

– Estou com raiva dessa história da padaria, mas é só uma implicância egoísta minha. Você sabe que sou assim.

– Katniss, seu ciúme apenas me envaidece, sério.

– Não estou brincando, Peeta.

– Nem eu – ele sustenta meu olhar com firmeza. – Não tem sido fácil para mim, se você quer saber – percebo sua hesitação, mas ele continua: – Tive um lapso bem na frente da Delly, anteontem.

– Peeta.

– Desculpe – ele suspira. – Eu sabia que você ia brigar se descobrisse.

– Por que você não me contou? – exijo.

– Exatamente pelo que está acontecendo agora. Eu sabia que você ficaria preocupada. Mas é assim que funciona, Katniss. Você sabe melhor do que ninguém.

– Você estava tão melhor... – toco seu rosto, aflita. Um lapso significa que ele provavelmente caiu no chão e começou a gritar coisas sem sentido enquanto se debatia. Há meses isso não acontecia. Ultimamente, ele só perdia a noção do que estava fazendo por alguns instantes e se agarrava a alguma coisa para não perder o equilíbrio durante sua luta mental. Peeta dá um risinho abafado.

– Katniss, eu nunca mais vou ser normal. Mantenha isso em mente.

– Não fale assim.

– Não é muito pior do que você, que ainda se chama de bestante.

– Você já viu minha pele?! – ele ergue uma sobrancelha, com uma expressão odiosamente charmosa. – Peeta!

– Bem, não sei se você esqueceu isso também, mas acontece que eu vi algumas vezes, sim.

Desabo sobre ele, escondendo o rosto em seu peito. Foi preciso tanto tempo para que eu me sentisse minimamente segura quanto a meu corpo e, mesmo assim, as piadas dele ainda me deixam envergonhada. Minhas bochechas ardem impiedosamente. Peeta está rindo.

– Será que algum dia você vai acreditar quando digo que você é linda?

– Pare – digo, com a voz abafada por sua camisa. Peeta toca meus cabelos com carinho. – Não quero que você piore – admito, num momento de fraqueza. – Não posso sem você.

– Katniss – ele segura meu rosto e faz com que eu o encare. – Não vou piorar. Acontece que a padaria tem o nome do meu pai – alguma coisa na expressão dele fica subitamente sombria. – Foi impossível não pensar, não...

– Pensei que sua memória só fosse afetada a partir do que houve depois dos Jogos – digo.

– E é, mas meu estado emocional influencia no controle dos flashbacks. Acho que fiquei meio ansioso com tudo isso. Às vezes, parece que vou virar meu pai. E não sei se isso é bom ou ruim... – ele suspira. – Às vezes, eu só queria que ele pudesse ver tudo isso...

Afago seus cabelos enquanto ele fala. Os olhos de Peeta encaram o vazio por um momento, então focam nos meus outra vez.

– Foi isso. Delly ficou assustada. É por isso que tenho insistido em testar todos os equipamentos com minhas receitas.

– Ela mencionou algo sobre você está produzindo mais pães do que o previsto para os primeiros dias de funcionamento – Peeta confirma com a cabeça.

– Fazer pão é minha terapia – remexo-me junto dele.

– Você sempre pode conversar comigo – Peeta sorri. Ele desliza um polegar por meu rosto.

– Você já tem tanta coisa na cabeça, Katniss. Eu não gosto de lhe falar as coisas enquanto não entendo o que está havendo. Não preciso confundir mais ninguém.

Quero lhe dizer que isso é uma bobagem, que não me importo de ouvir seus relatos sem sentido, mas Peeta me beija e todo o resto desaparece.

Deito por cima dele e sinto suas mãos subindo por minhas costas. Em momentos assim, não consigo entender o que estamos esperando para trazer de vez todos os pertences de Peeta para cá. Rolamos para o lado e Peeta está por cima agora. Antes nós tínhamos problemas com sua perna mecânica, mas agora ele já sabe como acomodá-la melhor. Faço menção de abrir sua camisa, mas Peeta recua.

– Preciso voltar. Prometi a Delly que ia dar um jeito naquele bolo de chocolate.

– Do que você está falando? – pergunto, confusa. – O bolo de chocolate ficou perfeito – Peeta franze o cenho.

– Não acho que ficou perfeito. O gosto de manteiga na cobertura ficou muito forte – reviro os olhos.

– Só mais uns minutos – tento negociar. Peeta enterra o rosto em meu pescoço, esfregando a ponta do nariz na curva de meu ombro.

– Sou um homem de negócios, Katniss.

– Meu homem de negócios? – pergunto, com a voz abafada. Peeta me segura com mais força.

– Claro que sim. Seu homem de negócios – sorrio, momentaneamente satisfeita.

– Eu sabia que tinha feito bem em lhe trazer aquele peru enorme de presente.

Pouco depois, quando Peeta sai, acabo tomada por uma terrível sensação de abandono. Sei que Greasy Sae não vai demorar muito a chegar. Mesmo assim, sigo para a casa de Haymitch. Minha cabeça está subitamente fervilhando com mil e uma ideias e preciso falar com alguém que conheça Peeta de verdade.

Quando atravesso a porta da frente, paro um instante para observar as prímulas noturnas que Peeta plantou ao redor da casa. As plantas já estão grandes, mas as flores não estão em sua melhor forma por causa do tempo frio. Na próxima primavera, elas certamente estarão muito mais bonitas.

Prim.

Não passo um só dia sem pensar nela, sem torcer com tudo o que sou para que esteja bem. Ainda acordo, aos berros, de pesadelos em que a vejo pegar fogo enquanto grita meu nome, implorando por ajuda. E sempre acordo no meio de uma crise de choro.

Felizmente, Peeta está por perto para me acalmar.

Minha mãe conversa semanalmente comigo no telefone. Ela sugeriu que eu a visitasse, mas não gosto muito da ideia. Peeta até a apoiou, mas não consegui me empenhar nisso. Também não consigo me animar com os convites de Annie para conhecermos seu bebê. Ela nos manda fotos dele de tempos em tempos e o garoto parece cada vez mais com Finnick.

Semana passada, Peeta rolou de rir quando abrimos o envelope com o nome de Annie Cresta e demos de cara com a foto de um garotinho louro, ainda no berço, vestindo fraldas enormes, agarrado a um pedaço embolado de corda. “O primeiro nó!” foi o que Annie escreveu no verso da folha.

Peeta telefonou para lhe contar sobre a padaria e leu para ela, ao telefone, os trechos mais recentes do livro de recordações. Eu também conversei com Annie, mas por menos tempo. Ver o filho de Finnick me faz rir, mas também me traz pesadelos e falar com a viúva dele me lembra de que não consegui salvá-lo.

Bato à porta de Haymitch muito mais por hábito do que por necessidade. Dessa vez, porém, antes que eu perceba essa bobagem e alcance o trinco, ele abre a porta para mim.

– Olá, docinho. Eu não sabia que você ia aparecer hoje – seu hálito está com um cheiro forte de bebida.

– Eu não sabia que você ia acordar mais cedo – respondo.

Haymitch se afasta para que eu entre e caminho direto para a cozinha, onde ele sempre recebe todo mundo. Consegui convencê-lo a pagar uma boa quantia para que Greasy Sae mantivesse sua casa nos padrões mínimos de um lugar habitável, então a cozinha está menos bagunçada do que se poderia esperar.

Demoraram vários meses até que eu conseguisse encarar Haymitch de novo. Em grande parte, eu só voltei a vê-lo por causa de Peeta. Ele não cansava de tentar resgatar nosso mentor, mas nunca conseguia o resultado desejado. Houve uma época em que os dois discutiram. Por minha causa, Peeta confessou, e o resultado foi uma piora no tratamento dele que durou alguns dias. Então vim falar com Haymitch para que ele nunca mais fosse tão ingrato e nós só nos encaramos, sem conseguir trocar uma palavra que fosse. Pensei em como ele me abandonou depois da guerra, em como nunca mais apareceu para ver como eu estava, e simplesmente fui embora sem maiores explicações. Dois dias depois, cismada com o quanto isso estava me incomodando, voltei para vê-lo. Choramos juntos durante a maior parte da tarde. Semanas depois, cedi aos pedidos de Peeta e disse que Haymitch poderia nos ajudar com o livro de recordações. Ele apareceu após muita insistência e, desde então, vivemos nossa tríplice aliança esquisita.

– Peeta esteve aqui ontem – Haymitch informa. – Veio me chamar para a inauguração da padaria.

– Você vai? – ele dá de ombros.

– Ainda estou me decidindo. Não virei um completo recluso, mas também não sei se quero ser visto por todos.

– É importante para o Peeta – digo. Não consigo condená-lo por não querer ir, mas certamente o condenarei se ele faltar. Peeta foi o grande responsável por nós dois estarmos com um mínimo de sanidade outra vez.

– É, eu sei. Provavelmente vou aparecer para dar os parabéns e beber de graça. Volto mais cedo, se não aguentar a multidão.

– Qual é, Haymitch, é só uma padaria. Não vai estar tão lotada – ele dá de ombros.

Estamos todos mais velhos e com as aparências um pouco diferentes, mas Haymitch foi o que mais mudou nos últimos anos. Ele agora tem muitos fios de cabelo grisalho e rugas profundas. Por um segundo, penso em Peeta, que nunca mais conseguiu resgatar seu rosto corado de saúde nem seus músculos avantajados. Penso em mim mesma, com o rosto mais comprido do que antes e com curvas modestas. O que aconteceu com todos nós?

– Você também não parece animada com a ideia – Haymitch recomeça. Ele me oferece um pouco de sua bebida, mas não aceito. Respondo enquanto ele se serve:

– Você sabe que não gosto muito de estar com várias outras pessoas. Só vou mesmo pelo Peeta.

– Ele me contou que você apoiou bastante a ideia – vejo um brilho diferente nos olhos de Haymitch. – Fiquei orgulhoso.

– O que você esperava que eu fizesse? – digo na defensiva.

– Só estou lhe elogiando, Katniss. A propósito, você não tem nada a temer. Peeta continua louco por você. A padaria não tem chance.

– Não é essa a questão – digo, impaciente.

– Não? – percebo que há uma cesta repleta de pães sobre a mesa. Peeta certamente os trouxe hoje de manhã, como sempre faz.

– Eu me acostumei a tê-lo por perto – digo, olhando para os pães. – Só isso – Haymitch ri.

– Não é pouca coisa, Katniss. Eu ainda acho que você poderia viver mil vidas e não merecer aquele cara.

– Bem, perfeita ou não, ainda sou eu quem o ama – respondo, irritada. Haymitch sorri com satisfação.

– Viu só? É por isso que o garoto anda tão feliz. Katniss Everdeen, professando seu amor com tanta facilidade. Quem diria – vejo quando ele toma um longo gole, apreciando a bebida.

– Você o conhece, Haymitch. Eu preciso da sua opinião – isso o pega desprevenido. – Peeta e eu... Bem, nós já estamos juntos há mais de um ano. Ele praticamente vive na minha casa, mas...

– Não me diga que você tem medo de perdê-lo para o trabalho – ele deduz.

– Um pouco – mordo a parte interna da bochecha, nervosa. – Tenho medo de virar um atraso na vida dele – disparo. Haymitch revira os olhos.

– Ora essa, me dê um desconto, docinho. Peeta não deixou de gostar de você por um segundo que fosse durante todo esse tempo. Por que isso aconteceria agora?

Não respondo porque não sei o que dizer. Em meio ao silêncio, ouço o barulho dos gansos no quintal. Haymitch me encara demoradamente, esperando. Finalmente, ele diz:

– Você não vai atrapalhar a vida dele, Katniss. Aquele garoto é louco por você. Se existe alguma coisa que você ainda queira resolver com ele, faça isso. Diga tudo que estiver faltando. Peeta não vai te deixar por causa disso.

Com isso em mente, volto para casa e espero Peeta voltar da padaria. Ele chega mais tarde que o de costume e, para meu espanto, Greasy Sae não veio fazer o jantar. Nesse meio tempo, tento improvisar um ensopado de esquilo, porque, além de resolver a questão do jantar, isso me mantém a mente ocupada. Uma hora depois, quando me encontra na cozinha, à sua espera, Peeta sorri.

– Desculpe a demora – ele pede.

Eu lhe conto sobre a falta de Greasy Sae, mas ele não parece preocupado. Está cheio de coisas nas mãos.

– Tenho boas notícias: trouxe uma cestinha só com pães de queijo e ainda preparei um monte daquele pão doce que você também adora – olho para ele, sem saber se devo ficar contente ou preocupada. – Até fiz uma mini torta de peru selvagem.

– Fazer pão é sua terapia, hum? – Peeta sorri, sem jeito.

– Não é o que você está imaginando.

Espero em silêncio enquanto ele deixa tudo o que trouxe sobre a mesa e caminha até mim. Estou em pé, perto do fogão, subitamente preocupada que Peeta esteja me olhando assim porque trouxe alguma notícia terrível.

– Eu sei que você anda meio preocupada com essa história de eu trabalhar fora e tudo o mais. Delly me perguntou algo sobre isso agora na semana passada e, enquanto nós conversávamos, um dos fornecedores apareceu sem ter marcado, pedindo para falar com a gente. Já era hora de voltar para casa, então eu disse: “desculpe, mas prometi a milha mulher que chegaria mais cedo hoje” – meu coração dá um pulo. Peeta se aproxima mais um passo e segura minhas mãos trêmulas entre as suas. – Ele me olhou como se eu fosse um louco por falar assim, mas, quando penso sobre isso... – ele engole em seco. – Katniss, você nunca vai acreditar nisso, mas sua teimosia salvou minha vida. Sua paciência em cuidar de mim, em reconstruir minha memória sobre tudo o que a gente viveu. Amar você me custou muito caro, eu sei disso. Mas ser correspondido por você... me trouxe de volta tudo que a Capital tentou destruir, inclusive você. Então eu não sei por que nós não podemos tratar as coisas desse jeito. Não sobrou ninguém, Katniss, você é minha família agora – Peeta abaixa a voz: – Você é tudo.

Fecho os olhos, mergulhada na alegria de ouvi-lo. Tantos anos com medo de me envolver, ocupada demais em sobreviver ao desafio de cada dia, para acabar rendida a Peeta Mellark. Quando abro as pálpebras outra vez, dou de cara com os olhos azuis dele.

– Você me salvou.

– Nós salvamos um ao outro – digo, com a voz embargada. Ele sorri.

– Sim, porque é isso que fazemos de melhor, não é? Cuidar um do outro? – confirmo, mas não me atrevo a falar. – Tem uma fogueira lá fora – Peeta informa. – Eu mesmo a preparei antes de entrar em casa. Nós não precisamos de nada com papéis e formalidades... eu só quero o que nós já temos, Katniss. Eu quero isso aqui para sempre.

– Peeta...

– Eu trouxe uns pães para gente assar na fogueira. Está fazendo um friozinho gostoso lá fora. Será que você aceitaria assar pães comigo pelo resto da vida, Katniss Everdeen?

– Sim – falo imediatamente. Minha voz está meio esquisita porque a fala de Peeta me deixou com vontade de chorar, mas insisto. – É claro que sim. Vou assar pães com você até nós ficarmos velhinhos. Se você aguentar minha carranca, claro.

Peeta me beija sem aviso prévio. Eu o seguro com força, retribuindo o beijo. Quando nos afastamos, enterro a cabeça no pescoço dele.

– Nós estamos casados – digo. – Verdadeiro ou Falso? – ele ri.

– Falso. Nós ainda não assamos os pães. Rituais são rituais, Katniss. – eu rio.

Então vamos para a lateral da casa e Peeta acende a fogueira. Volto para a casa e trago alguns cobertores. Uso-os para improvisar uma cama perto do fogo enquanto Peeta começa a assar os pães. Nós sentamos lado a lado, bem juntinhos, e cuidamos dos pães. Beliscamos alguns pães de queijo nesse meio tempo. Apoio minha cabeça no ombro de Peeta e canto baixinho todas as músicas que me vêm à cabeça. Vejo o pé dele batendo no chão conforme o ritmo e sorrio. Depois de um tempo, Peeta diz:

– Sabe que eu nunca consigo imaginar um futuro de fato. Eu mal consigo acreditar que teríamos algo a planejar para daqui a duas semanas. Mas acho que eu fiquei pensando sobre a padaria e como você parecia preocupada que a gente fosse se vir menos e simplesmente tive que fazer algo a respeito. Seja qual for o meu futuro, Katniss, você a única certeza que quero ter sobre ele – beijo sua bochecha assim que ele termina de falar e deixo que Peeta passe um braço por meus ombros. Viro o rosto para olhá-lo e digo:

– Peeta Mellark, eu te amo.

Não falo isso com frequência e é provável que seja um erro, mas esqueço-me disso quando vejo o sorriso de Peeta. Aproveito a leveza do momento e acrescento:

– Venha morar comigo – Peeta arregala um pouco os olhos.

– O quê?

– Venha morar comigo – repito. – Você sabe como me sinto e já dormimos juntos todas as noites. O que está faltando? – Peeta ri.

– Bem, eu não vejo por que não - há uma pausa antes de ele acrescentar: – Você sabe que a minha casa também fica por perto, não é?

– Você não gosta daqui? – pergunto.

– Claro que gosto. Só quero registrar que você pode se mudar, se preferir – penso por um instante.

– Gosto de viver aqui – Peeta beija minha testa.

– Bom, então está decidido. Ah, a propósito - ele sorri sugestivamente -, eu pedi a Greasy Sae para faltar. Disse a ela que nós tínhamos um compromisso com Delly e Thom hoje à noite - balanço a cabeça, fingindo reprovação.

– Felizmente, algo me diz que meu enorme coração ainda pode lhe perdoar por isso.

Nós rimos e ficamos em silêncio por um instante. Observo as prímulas noturnas junto da casa. Suspiro.

– Prim gostaria disso – murmuro. Peeta afaga meus cabelos.

– Sua mãe também. Na verdade, eu acho que todo mundo vai ficar feliz, até o Haymitch - concordo com a cabeça.

–Nossa, a Annie vai fazer uma festa lá no Distrito Quatro, se duvidarmos - Peeta ri.

–E Greasy Sae?! Já posso até ouvir ela se gabando, dizendo que sempre deu essa ideia...

Rimos outra vez, ainda abraçados. Estou de olhos fechados, aproveitando o momento quando Peeta recomeça em voz baixa:

– Nós estamos casados. Verdadeiro ou Falso? – olho para ele, tão contente que me sinto um pouco idiota por isso. Mas já assamos os pães e é isso que importa.

– Verdadeiro. Nós já começamos o ritual dos pães.


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