Desistências escrita por Isadora Nardes


Capítulo 2
Hesitantes.




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/596691/chapter/2

Os corredores passam por mim, mas eu não os vejo. Já conheço cada centímetro de cor. Não sei como estou correndo, pois minhas pernas estão muito bambas. Meus olhos ardem. Minha boca treme e solta grunhidos.

Eu chego a uma porta. Eu não hesito nela. Empurro-a, sem me importar se aquilo fará barulho. Ela já sabe que eu estou aqui. Só não sabe o que eu estou prestes a fazer. Talvez desconfie, mas acho que seu estado de raiva é muito profundo para ela formar um pensamento completo.

A porta faz mais barulho quando eu a bato. Eu viro a chave e dou alguns passos até alcançar o armário. Eu o abro, e ele tem cheiro de sabonete e de produto de limpeza.

Há essa hora, as lágrimas já escorrem livremente pelo meu rosto. Eu avisto alguns produtos desinfetantes. Afasto os perfumadores de ar, a fim de alcançar o que estou procurando. Eu vejo.

A garrafa de plástico, com um líquido incolor, que parece água. Se fosse água, eu não estaria procurando-o tão desesperadamente. Eu o puxo, derrubando desinfetastes e um grande jarro com água sanitária.

Agora a garrafa está na minha mão. Mas minha mão não para de tremer.

Eu ignoro esse medo estúpido e abro a tampa, deixando-a cair no chão e bater repetidas vezes. O cheiro imediatamente cruza minhas narinas. É forte e inebriante, como sempre foi. Como eu me lembro dele.

Eu aproximo a garrafa dos lábios. O plástico é mais gelado do que eu achei que seria.

Eu hesito. Será que eu não devo simplesmente limpar minha bagunça, sair da lavanderia de cabeça baixa, depois murmurar desculpas para minha mãe e voltar para o quarto? Devo eu deixar isso ir? Agora, que cheguei tão longe?

Eu ignoro. Não vou deixar isso tomar conta de mim novamente.

Eu viro o líquido em minha boca. O gosto é horrível, mas eu me obrigo a engolir. O líquido arde em minha garganta, e escorre. Eu quase posso senti-lo chegar ao meu estômago. Quem sabe já não corre em minhas veias, como a adrenalina que me possui agora?

Alguém bate na porta.

–- Abra isso agora!

Nem parece a voz da minha mãe. Mas eu sei que é ela, pois nem o mais forte dos homens, nem alguém com a garganta muito rouca grita que nem ela. Eu não me incomodo em abrir. Não pulo pra trás, sabendo que aquela porta está totalmente trancada. Ela gira a maçaneta, e empurra com força, mas não abre. Eu dou uma risada alta.

–- Abra isso! Agora!

Eu não me sobressalto. Não sei se minha risada é do efeito do querosene, mas eu encosto-me à parede ao lado da máquina de lavar, e meu riso parece ecoar na minha cabeça, alto demais.

Eu sinto meu corpo ceder para o lado. O ferro da máquina de lavar é frio contra minha cabeça. Acho que morrer é como eu achei que seria. Vazio. Sem cor. Sem dor. Eu estou morrendo sorrindo? Tem gosto de querosene. Mas não dói.

Tenho plena consciência de que não mexo mais minhas pernas. Plena consciência de que o gosto de querosene em minha garganta arde. Plena consciência de que minha mãe grita e esmurra a porta, que não vai ceder. Plena consciência de que tudo cheira a produto de limpeza.

Mas não sou eu que estou sentindo isso.

Tudo está acontecendo com outra pessoa.

Eu não sinto nada.

* * *

O oficial André Unner não sabia como abrir aquela porta.

Tentara grampos de cabelo, canetas e até uma chave universal, mas o universo parecera decidir que, de repente, Holly não sairia daquela lavanderia.

André ouvia risos fracos. Já não tinha certeza de onde vinham. Por fim, André começou a chutar a porta. Ser cauteloso não levaria a nada. Ele chutou e chutou, e a porta parecia não querer ceder.

–- Sai da minha frente! – ouviu a colega, Patrícia, dizer. Patrícia era bastante semelhante àquela mulher desesperada chamada Olivia: alta, forte, um pouco gorda, com uma voz que dava medo mesmo sussurrando. Mas Patrícia era uma negra forte que jamais se espantava com nada.

Patrícia se jogou contra a porta. O ombro chocou-se e a porta tremeu. Patrícia repetiu o ato, e a porta foi ao chão.

Pedro não sabia com o que ficava mais assustado.

Ele já havia visto assassinatos a sangue-frio. Já havia presenciado roubos: desde ladrões de galinha que roubavam bolsas de senhorinhas até um ladrão que roubara uma pulseira banhada a ouro numa festa de gala.

Tudo soava fictício.

Mas aquilo não.

Aquilo era real. E André só sabia que era real porque sentia cheiro de querosene, sentia os olhos arderem e via o corpo de Holly estirado no chão, ao lado da máquina de lavar, como lixo. André puxou a camisa para se proteger do cheiro. Ia dizer para chamarem um policial, mas então lembrou:

Eu sou um policial.

E ele não tinha ideia do que fazer.

Como eu disse, Patrícia não se espantava com nada.

Exceto com aquilo.

De qualquer forma, Patrícia e ele se atiraram contra Holly.

André sabia parar um sangramento, e Patrícia também. Era parte do treinamento policial. Mas o problema é que aquela garota não estava sangrando, nem estava sufocando. Ela estava intoxicada.

E André não era paramédico.

Foi nesse instante que se ouviu uma sirene de ambulância. Era como se o próprio pavor de André houvesse chamado. Os segundos pareciam uma eternidade. Por fim, os paramédicos com uma maca entraram na lavanderia.

O primeiro paramédico era um homem: cabelos marrom-escuros, com vestígios do que um dia já foi louro. Olhos verde-musgo. Parecia um daqueles caras que se tornam lutadores de MMA. Era alto, de ombros largos e braços fortes. Em contraponto, a segunda paramédica era toda miúda: magrinha, baixinha, com mãos minúsculas, uma boca minúscula, olhos puxados e minúsculos. Ela era totalmente minúscula. Seu cabelo preto liso podia ser a maior coisa que ela tinha.

Uma terceira paramédica chegou. Ela parecia um pouco mais forte que a coreana; em compensação, parecia nervosa. Tinha cabelos marrom-escuros, com mechas cor de mel, e olhos marrons. Um nariz pontudo e um pouco arqueado; olhos amendoados, sobrancelhas arqueadas e uma boa fina. Era um rosto bonito no meio de todo aquele desespero.

–- Porra, Jason – a médica ralhou com o paramédico forte. Ele se atrapalhava com alguma coisa médica que André não sabia dizer o que era. Aparentemente, nem o tal do Jason sabia lidar com aquilo.

Porém, a médica arrancou aquilo das mãos dele e manuseou eficientemente, enquanto Jason e a paramédica coreana lutavam para abaixar a maca e colocá-la perto de Holly. A médica coreana, de repente, tossiu minusculamente, e levou sua mão minúscula até sua boca minúscula. Fechou seus olhos minúsculos e deu passos minúsculos até a porta, que parecia bem grande diante da minusculidade dela.

Minusculidade, André pensou. Que palavra estranha.

Ele não tinha certeza de existia.

Concentrou-se em ler o crachá preso na blusa da médica. Morgannah Tawier.

–- Unner, seu idiota! – Patrícia chamou. André despertou. – Me ajude aqui, porra!

Morgannah lançou um olhar impaciente para André, que ficou vermelho. Era meio lerdo.

Ele ajudou o médico forte e Patrícia a colocarem Holly na maca. Morgannah levantou a maca e colocou o respirador na boca de Holly. Cruzou os dedos, esticou os braços e posicionou-os no peito de Holly.

Bateu forte uma vez.

Nada.

Duas vezes.

Nada.

André começou a se desesperar.

Três vezes.

Nada.

Quatro vezes.

Holly tossiu levemente.

Morgannah arfou e o médico forte ajudou-a a levantar a maca e levá-la até a porta de entrada. Patrícia e André seguiram Morgannah, Jason e Olivia, a mãe de Holly. Porém, ao chegar à ambulância, que apitava e jogava suas sirenes na luz do meio-dia, Olivia entrou, Morgannah e Jason também, mas Patrícia foi até a viatura.

Pedro quis entrar na ambulância junto, mas Morgannah estendeu a mão, com a palma aberta, e disse, em tom autoritário:

–- Não!

Depois, bateu a porta da ambulância.

André ficou olhando a ambulância se afastar.

–- Unner, vamos – Patrícia chamou, de dentro da viatura. – Já fizemos o que tínhamos que fazer.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Vejo vocês nos comentários.