Amour Âpre escrita por Charmidle Espiratanico


Capítulo 6
Capítulo 6 - Se benze, mano


Notas iniciais do capítulo

Eae!
Curtam o capítulo 8D



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— Essa semana não vai dar, doutor.

— Sério, Docete? Vocês estão esperando isso há tanto tempo — Ernesto parecia bem chateado do outro lado da ligação. Eu também estava bastante, mas a culpa é da Ambre. Até morta essa puta me atrapalha.

Pelo menos, suas cobrinhas de estimação não estavam mais servindo de enfeite como sempre foi no colégio. Charlotte ficou triste, porém não ligou muito porque já estava bem de vida mesmo, e Li, por outro lado, chorou horrores. Bia, como já disse, fez um espetáculo de lágrimas, e era a pessoa com quem Ambre ficou nas suas últimas horas de vida.

— Sim, doutor, pelo menos enquanto a situação não se ajeitar. Já, já, vou te dar uma previsão para remarcar — eu tinha uma mania de rabiscar em um caderninho enquanto atendia o telefone. Só saíam linhas sem sentido mesmo.

— Tudo bem, mas fique atenta ao calendário e os comprimidos — ele me alertou, e tomei uma nota mental para não esquecer. Provavelmente não iria, já que não tinha mais emprego e por isso não tinha estresse algum. Por um bom lado, me dava mais tempo de ir à academia, onde eu encontrava Kentin e Bóris para bater papo com eles. Bem, o Dake também ia frequentemente, mas era muito concentrado em suas séries de musculação e por isso mal conseguia trocar duas palavras com ele. Normal. Ele sempre andava munido de batata doce e whey.

— Obrigada por me avisar. Boa tarde — me despedi educadamente e desliguei o telefone.

— Sem nenéns por enquanto? — Iris perguntou, enrolando o tapete pra varrer melhor a sala após empurrar os móveis. Recolhi meus pés na poltrona. — Mas o que houve? Ele ficou triste por causa da Ambre, né? Mas já faz uma semana.

— Pior que triste. Naquele dia, o Armin estava tão desconcertado que pediu desculpas por ter pedido ajuda e já estava quase indo embora quando falei que conversaria melhor com ele depois.

Meu celular vibrou, mas eu não imaginava quem poderia ser.

— Então — continuei —, o Nath ficou bem deprimido, e passou o resto do dia quieto. Ele mal falava!

— Você tentou reconfortá-lo? — Iris falou alto enquanto ia pegar a pazinha no armário distante.

— O conhecendo como eu conheço, é melhor deixá-lo quieto até se sentir melhor — respondi no mesmo volume. — Mas ele sabe que pode contar comigo.

Me levantei para pegar o celular na estante onde ficava a televisão, e aconteceu uma coincidência. Falando no Armin, havia um mensagem dele no whatsapp.

"eae docete, tudo belê?

mano, tô careca de saber que o natániel tá boladão e essa parada toda, e aí achei melhor não incomodar mais vçês

tô tristão também pelo que aconteceu, sério mermo

tá, vou confessar, nem tanto, a Ambre era chata pra cacilda, valeu

cortando o papo furado, brigadão por me considerarem (eu ouvi o papo de vocês, foi mal) e quererem ajudar um amigo mesmo que ele seja um merda

agora consegui um estágio! ma porra... na merda da velox¹

tenho 1s benefícios por ser funcionário, mas vou mandar a real... a internet deles é ó uma bosta!!!111

valeuzão falouzão docete, te mando notícias do nerd aqui

obs: se ainda quiser o justin dançar, é só me dizer!!!1 bejão"

— Quem é? — Iris perguntou quando entrou novamente no quarto.

— Ah, o Armin — guardei o celular no bolso. — Ele agora é estagiário da Velox.

— Wow, a internet deles é um lixo — ela fez cara de nojo. Eu dei uma risada alta.

— Ele disse a mesmíssima coisa!

— Hahahaha! — ela riu também, surpresa pela coincidência. — Mas, eheheh, mudando de assunto, você vai à academia hoje? A roupa de ginástica ainda está secando, mas deve acabar em uma meia hora.

Iris, enquanto falava, recolheu as poeiras e lentamente arrastou os móveis de volta para seus devidos lugares. Percebi que era um bom exercício braçal, e pensei no fato de ser dona de casa e fazer tudo o que pago para Iris fazer sozinha. Deve ser difícil e cansativo.

— Hoje acho que não. Eu... — minha fala foi interrompida pela porta da frente batendo. — Ué.

Me apressei, deixando Iris trabalhar em paz, e fiquei confusa.

— Nath? Não são nem quatro horas. Não era pra você estar no...

— Eu pedi férias em adiantado, e me concederam — ele me interrompeu, com a voz muito cansada. Foi na direção do banheiro, e deduzi que queria um sossego para tomar uma ducha e se acalmar.

— Tudo bem — já estava ficando incomodada por já ter passado uma semana e ele ainda estar assim. "Depois tentarei falar com ele pra abrir o jogo, se ele quiser", pensei. Me desloquei do corredor para a sala. — Iris, já tem comida pronta, né?

— Sim, tá lá nas panelas em cima do fogão. Eu já tô acabando aqui de varrer e já vou embora.

Passado uns minutos, Iris terminou seu serviço e Nath trocou de roupa no nosso quarto. Eu o deixei sossegado enquanto isso, lendo alguma revista na poltrona. Chequei meu celular novamente, e havia outra mensagem, porém dessa vez não era Armin, e sim Melody. Ela também estava preocupada com o estado de ânimo de meu esposo. Deixei para responder depois. Não gostava do jeito que Melody olhava para ele mesmo depois de casado, e isso me preocupava porque ela poderia se aproveitar da situação emocional em que está agora. Confio nele, é óbvio, é uma pessoa extremamente leal, mas não confio nela.

Mesmo que ela tenha me confidenciado naqueles tempos que tinha levado um fora, não deixou de desejá-lo, e me lembro bem daqueles rebolados nada intencionais da festa dos calouros da faculdade em que ambos estudaram.

Dei graças a Deus por ele ter tirado férias.

Outra coisa: desde o "incidente" do Mc Donald's, Agatha desapareceu. Fiquei me perguntando por dias o que tinha acontecido com ela.

— Nathaniel? — bati de leve na porta, e nenhuma resposta. Girei a maçaneta. — Você tá se sentindo bem?

— Sim, tô normal — ele suspirou, com o corpo meio esparramado e olhando pro teto. — Só sem ânimo.

— Entendo. — Sentei-me num canto da cama, pegando sua mão. — Posso fazer uma pergunta?

— Que bom que agora você pergunta ao invés de stalkear os outros.

— Como assim? — fiquei confusa.

— Eu lembro de quando você foi no vestiário masculino só para ver a tatuagem do Lysandre e acabou me vendo lá por acaso.

— Ai, meu Deus! — dei uma risada de nervoso e vergonha, tampando meus olhos com a outra mão. — Você ainda se lembra disso? Eu já tinha esquecido.

— É... lembro, sim. — Percebi que ele estava meio mole, como se estivesse sem energia.

— Você almoçou? — perguntei.

— Não.

— Então vou trazer um prato pra você. A Iris preparou comida — beijei as costas de sua mão, e antes de me levantar o senti me puxar de leve.

— Não tô com fome.

— Ontem você disse a mesma coisa.

— Sério, não — o olhar dele era bem cabisbaixo, me dando bastante pena.

— Docete, a situação dele tá me deixando preocupada — ouvi a voz de minha tia do meu lado.

— Meu Deus! De onde você veio? — dei um pulo de susto, largando a mão de Nath. Ele começou a me olhar estranho, como das outras vezes em que minha Fada Madrinha aparecia do nada.

— Sempre estive aqui, bobinha. Você que não me vê! — ela apertou a pontinha de meu nariz em um gesto brincalhão. — Aliás, fica de olho naquela rodada, hein? Isso não pode virar novela mexicana!

— Não sei, talvez você esteja certa — respondi, totalmente esquecida da companhia de Nathaniel. — Mas vou ficar atenta assim mesmo, obrigada. A sua ajuda naquele dia foi bem útil.

— Foi realmente! Pena que não pudemos ver a Ambre explodir em pedacinhos. Buuum! — ela imitou os pedaços do corpo dela indo ao ar com os dedos.

— Era pra dar tempo, né? Além disso...

— Docete — Nath me chamou, me trazendo de volta à conversa com ele, sentando-se do meu lado com certo esforço. Parecia meio cansado, e apoiou a testa na mão por uns segundos. Ele costumava fazer isso quando ficava zonzo. — Com quem você tá falando?

— Ué, com Agatha — sorri enquanto tirava uma mecha da frente de seus olhos.

— Quem é Agatha?

— Minha tia.

Não compreendia as perguntas dele. Como assim? Ela aparecia pelo menos uma vez por semana para conversar comigo, mas tudo o que ele fazia era fingir que não via ou se distrair com alguma coisa. O pior é que isso ocorria desde o colégio, mas recentemente suas reações haviam começado a me incomodar.

— Docete, eu sei que faz bastante tempo que você conversa com sua... "tia" — ele fez aspas com os dedos. — Ela ainda está do seu lado?

Olhei para onde ela estava anteriormente, e droga! Mais uma vez sumiu. Não sabia onde achá-la nunca, parecia aquelas fadinhas sorrateiras da Disney.

— Agora que você falou, não. Mas...

— Docete, não sei como dizer isso, mas não há nada.

— O que você quer dizer com isso?

— A Agatha não existe.

— Ela tá quase todo dia falando comigo, como não existe? — não sabia como reagir a isso. Procurei por todo lugar por evidências dela, mas não havia muito como provar. Ela era real, e eu sabia disso.

— Eu apenas... — ele fitou meus olhos mais uma vez, e, percebendo minha teimosia, suspirou. — A gente conversa sobre isso depois. Deixa pra lá.

Sua frase me causara uma preocupação instantânea, fazendo com que meu coração começasse a palpitar. Todas as possibilidades vieram à minha mente: ele odeia minha tia? Ele quer que eu pare de falar com ela? Como assim ela não existe? Eu a vejo, ouço e converso, disso tenho certeza.

Minha atenção foi facilmente desviada para o novo rumo da conversa que Nathaniel quis tomar, embora ainda residisse confusão em mim.

— Eu sei que você tem estado preocupada comigo, Docete. É que...

— O quê? — perguntei, sem emoção, já chateada.

— ... Eu tenho me sentido bem culpado por causa de Ambre.

— O quê? — indaguei novamente, dessa vez transtornada.

— Eu sei, eu sei, ela sempre atrapalhou nossa relação e...

— E foi uma pentelha! — quis ressaltar.

— Claro, não me esqueci disso. — Ele sentou do meu lado e apoiou os cotovelos nos joelhos, com as costas um pouco dobradas. — Eu estive me sentindo culpado pelo que aconteceu quando éramos pequenos. Eu a maltratava, e isso perdurou por um bom tempo, até eu amadurecer e passar a fazer as coisas certo. Como algumas crianças são más, e estou tão envergonhado de ser uma delas! — Nath parecia querer amassar a própria cara.

Fiquei calada, então. Talvez botar aquilo pra fora o fizesse se sentir melhor.

— Mas isso incentivou os meus pais a protegerem-na por minha causa — ele continuou, e vi que seus olhos estavam já ficando vermelhos e a voz falhando, como se engasgasse e tivesse vontade de chorar. — E é por isso que meu pai sempre me tratou como um cu!

Sem perceber, minha boca estava aberta. Não era comum Nathaniel usar palavrão.

— Porque ele tem razão! Eu sou um merda, um fracasso! Nenhuma daquelas notas excelentes que eu tirava naquele colégio de bosta poderia cobrir as razões pelas quais a Ambre ficou tão mimada. Se eu tivesse sido um irmão que oferecesse segurança ao invés de provocações, talvez ela não tivesse crescido assim.

— Mas, Nathaniel... — eu não sabia como responder, mesmo sabendo que, apesar do que tinha acontecido, não era culpa dele. Ele era uma criança e não preveria esse desenvolvimento do comportamento dela.

— Mas nada, Docete. Eu também fui o culpado pela separação dos meus pais. Eu devia ter suportado mais um pouco.

Ele deu um esmurrão na cama, enterrando o rosto nas mãos. Seu corpo tremia, e passei a mão levemente por suas costas, chegando aos ombros. O puxei para perto de mim, e aos poucos sua cabeça deitou-se no meu colo. Senti minha palma molhada de lágrimas.

— Eu estou cansado, cansado... — Nath sussurrou, dando pausas entre as palavras para respirar. Era quase agonizante.

Esse momento em especial me atingiu. Nunca o havia visto tão frágil em minha vida, nem mesmo quando dormi em sua casa quando éramos mais novos e descobri tudo sobre a história entre ele e seu pai. Ele praticamente desmoronou porque a notícia sobre Ambre foi o estopim.

Olhei para a janela, num misto de culpa e de compaixão por Nathaniel. Não tinha notado que já estava escurecendo. Será que eu realmente devia ter agido daquela maneira? Matado inocentes, inclusive?

Todos os meus devaneios foram interrompidos por uma ligação. Olhei para o celular que estava na cabeceira e estiquei meu braço, tentando deixar Nath o mais confortável possível.

— Shh, shh, as coisas vão melhorar — dei um beijo nele, que me abraçou mais apertado ainda. — Vou atender aqui por um minuto, tudo bem?

— Tudo bem, Docete, me desculpa... — ele se levantou e passou a mão nos próprios cabelos, respirando pesadamente, como se estivesse se recuperando de uma crise. — Eu... Eu tô precisando de férias. Foi uma tortura ter ido no trabalho essa semana com isso tudo acumulado.

A pessoa desligou e em menos de centésimos de segundos começou a ligar novamente. Irritada, todo aquele sentimento de culpa por causa de Ambre se esvaiu, e meu polegar deslizou na tela. Nem vi o nome do contato.

— Alô?

— Puta que pariu, Docete! Finalmente você atendeu!

— Ken? — reconheci a voz, ele parecia desesperado. — Você está bem?

Nath tirou o celular da minha mão e pôs no viva-voz, parecendo estar um pouco melhor, ou até mesmo ter ignorado o que estava sentindo.

— O que houve? — ele perguntou.

— O que houve?! — Kentin repetiu a pergunta, dessa vez sussurrando, como se estivesse se escondendo de alguém. — O que houve é que tô numa briga de rua e o porra do Bóris não atende a merda do celular.

Eu e Nath nos entreolhamos.

— Como assim briga de rua? Me explica isso melhor.

Quem diabos se mete numa briga de rua e tem a oportunidade de ligar pra alguém pra pedir ajuda?

— Caralho, acha que dá tempo? — seu nervosismo nos deixava curiosos.

— CINCO MINUTOS! — ouvimos uma voz familiar gritar ao seu lado. Eu e Nath nos entreolhamos com os olhos semicerrados, tentando nos lembrar a quem pertencia.

— Eu tô naquele beco perto daquela confeitaria, você sabe onde é — Ken desligou na minha cara.

Mesmo não entendendo nada, nós nos apressamos. Pus uma roupa qualquer no corpo e corremos para pegar um táxi, já que com tudo escuro não seria muito seguro estacionar o carro em qualquer lugar. Normalmente, Kentin não era do tipo que arranja encrenca, então isso me causou sérios nós na cabeça.

Minha vida estava uma bagunça a essa altura: Nath se sentia triste pra caramba e eu não sabia como ajudar, fiquei sem emprego e vou ter que adiar a inseminação e Kentin estava fodido. Eu não queria que as coisas piorassem... só se eu fosse presa, eu acho.

O taxista nos olhou meio torto quando demos o endereço, mas prosseguiu assim mesmo — era seu trabalho, né. Bom, compreendo o fato dele achar no mínimo interessante o que nós dois faríamos naquela região quase deserta do bairro. Mesmo sendo dia de semana, não é muito de praxe encontrar pessoas perambulando casualmente pelas ruas, uma vez que nem sempre ela é segura. Sem ofensas à Kim, mas a polícia dessa cidade é um lixo, tanto que não fui pega até agora.

Nath segurou minha mão ao longo do caminho. Ele e Ken tinham se aproximado bastante desde que começaram a treinar boxe juntos na academia, e isso me deixava feliz porque não estava sozinha para ajudá-lo.

O frear do carro me trouxe à realidade, novamente, e eram bem audíveis os berros e discussões do lado de fora. Nath saiu primeiro pela porta da esquerda a fim de se prontificar para abrir a minha. Avistei pela janela Ken localizado no centro de um círculo de pessoas, cujo homem mais alto e ameaçador vestia um gorro preto na cabeça, um moletom azul muito maior que ele e calças extremamente largas e mal presas. Senti o ar fresco do lado de fora quando saltei do táxi, que acelerou e nos deixou sozinhos. Nathaniel, por fim, sussurrou:

— Quem é esse cara? Eles ainda não notaram nossa presença. — Ele estava certo, pois nossa presença foi camuflada devido à falta de luz no poste ao nosso lado. As principais luzes daquela rua eram das paredes do beco, ressaltando o grupinho a dez metros de nós e uma lata de lixo enorme.

— Espera — cerrei os olhos. Apesar de todo o conjunto de roupas, o cabelo castanho escuro, a pinta abaixo do olho esquerdo, o nariz fino e voltado para baixo e os óculos pince-nez da época da minha avó que agora dão um toque vintage revelaram sua identidade. Foi bem difícil porque estava praticamente irreconhecível, depois desses anos todos.

— Gente... — fiquei sem palavras.

Ainda por cima, havia um ritmo no ambiente, típico das gangues que vivem nas ruas. O rap em alto e bom tom vindo do iPod de um de seus companheiros, e o principal cantava:

"É uma bosta!

Quando tu tá no banco e furam fila

Num jogo tu não acerta a mira

Some teu chá de camomila

E as mina nunca pira!

A injustiça é extraordinária

Se liga, mano

Ninguém é puritano

O Faraize tá na área!

Yo!"

~

~

~

¹ - Tá, a Velox não é da França, mas ficou perfeito.


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