A Orquestra escrita por Winston


Capítulo 2
O sorriso da violinista




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Sua cabeça latejava e, mesmo com os olhos fechados, podia sentir a luz que vinha da janela com as cortinas abertas, que por sinal tinha certeza que tinha fechado assim que chegara em casa depois de ver o por do sol. Soltou vários resmungos ao abraçar o travesseiro e esconder o rosto nele, nem ao menos se dando ao trabalho de pensar em investigar quem tinha aberto as malditas cortinas. Só tinha uma pessoa capaz de uma maldade daquelas, uma pessoa sem coração que parecia nunca passar pela fase pós-bebida que Maria sempre demorava a superar.

– Joanaaaaaaaaa, fecha essa janela. – o resmungo de Maria saiu abafado pelo travesseiro, enquanto ela se encolhia mais sob os lençóis.

– A janela tá fechada, a cortina que vai continuar aberta até você se levantar. – a voz da colega de apartamento fez Maria se encolher, como ela conseguia ter uma voz tão fina em plena manhã de sábado era um mistério.

Não que tivesse algo a ver o dia com o tom de voz de alguém, mas Maria não pensava claramente naquele estado. Tinha deixado de pensar desde que tomara a primeira bebida e ainda estava no mesmo nível de lerdeza e alheisse naquele momento. Resmungou mais algumas coisas inaudíveis e provavelmente sem sentido ao rodar pela cama outra vez, apenas ouvindo o barulhos dos passos de Joana pelo apartamento, parecendo apressada.

– Para de reclamar, você tem que se preparar praquela festa que aceitou tocar, esqueceu? Já são três horas da tarde e você tem que estar lá às sete. – Joana gritou da cozinha, batendo um copo na mesa, o barulho fez Maria jogar o travesseiro pelo quarto afora de nervoso.

Então era por isso que ela estava ainda mais persistente àquelas horas, normalmente ela era chata mandando que levantasse sempre na hora certa, mas até a perfeccionista tinha seus momentos amáveis de vez em quando. Maria repassou as palavras dela em sua cabeça com uma voz irritante, tentando zoar a amiga em sua própria mente, mas assim que parou pra prestar atenção no que ela realmente tinha dito rolou de uma vez para fora da cama. Fora uma ideia idiota já que, adicionando à ressaca que a deixava meio lerda, não notou que tinha um dos pés enrolados no lençol antes de tentar se colocar de pé. Acabou por cair de uma vez de joelhos no chão.

O grito, mais de susto do que de dor, foi ouvido por todo seu cérebro de uma vez, que formou uma careta no rosto de Maria, que já não deveria estar muito bonito com a marca do travesseiro nas bochechas. E claro, da cozinha Joana também conseguiu ouvir o desespero da outra dentro do quarto, e assim que abriu a porta para entrar deu de cara com uma Maria jogada no chão com o lençol enrolado na perna esquerda.

– Eu não vou nem comentar. – foram as únicas palavras que saíram de sua boca, olhando para cima com desistência, antes de sair do quarto e fechar a porta, deixando a outra com o olhar pidão pra trás.

Maria deixou de sentir pena de si mesma depois de alguns minutos jogada no chão do quarto, obrigando-se a levantar porque tinha menos de quatro horas para treinar e se arrumar para a festa de formatura que tinha aceitado tocar. Não era normal chamarem violinistas para essas coisas, por mais que estes fossem os melhores para tocar uma música romântica digna. Mas era a antiga escola de Maria, e eles pareciam tão orgulhosos por terem alguém que se formara ali no ensino médio, e que estava entrando para algo de renome, que ela simplesmente não podia recusar.

Desenrolou o lençol da perna, jogou-o pra cima da cama ainda sentada no chão, para então se levantar finalmente, praticamente jogando o próprio corpo em direção à porta. Vestia um pijama de frio que a fazia parecer uma palhaça, e por mais que pensasse não conseguia entender como tinha passado a madrugada na rua sem morrer de frio, afinal até ali dentro de casa sentia os dedos das mãos frios.

– Bom dia. – a voz era cansada, os cabelos ruivos estavam emaranhados e pareciam ter vida própria, mas nada a deixava mais pra baixo do que ver que tinha sopa de legumes pro almoço outra vez. – Por que, Joana? Só me responde isso, por que? – perguntou Maria, sentando-se no banco da bancada da cozinha, na qual Joana andava de um lado para o outro cortando todo tipo de legumes, esticando os braços sobre a bancada como uma criança pequena.

– Por que o q...? – ela parou por um segundo de cortar o repolho para olhar o rosto de Maria, que parecia estar sendo submetida à tortura. – Porque é saudável, garota. Você ontem não fez nada além de comer coisas sem vitaminas, e não só você né. Aquele Gabriel, seu amigo, que babou nosso sofá inteiro, também é outro que precisa se alimentar melhor. – enquanto falava voltou a cortar o que tinha em mãos, adicionando a uma panela com água fervente, sem olhar outra vez para o rosto da amiga. – E antes que pergunte, mandei ele ir comprar umas laranjas e limões.

Apesar de achar sua situação deplorável, Maria não conseguiu não sentir pena de Gabriel que estava àquelas horas no meio da rua, naquele sol de três da tarde, tendo que escolher as melhores frutas pros sucos naturais de Joana. Era a única coisa natural que ela fazia e que os dois gostavam. Então ele provavelmente não devia ter feito muita manha antes de sair do apartamento pra fazer as compras. Tinha acabado de pensar isso quando a porta do apartamento se abriu, mostrando um garoto despenteado, com os cadarços dos tênis desamarrados e que segurava duas enormes sacolas de frutas.

– NUNCA MAIS! NUNCA MAIS VOU AO SUPERMERCADO NO SÁBADO! – gritou ele exasperado, deixando as sacolas perto da pia enquanto corria para a geladeira para beber um grande gole de água gelada da garrafa mesmo.

Maria reparou no olhar matador que Joana lançou ao melhor amigo, mas como ele conseguira acabar com toda a água da jarra de uma vez a outra acabou por ficar em silêncio. A essas alturas a dor de cabeça de Maria era quase uma memória longínqua, graças aos céus.

– Percebo que adorou ficar esperando horas na fila por dois pacotes de frutas. – a garota riu, espreguiçando o corpo cansado.

– E eu percebo que ainda não está se arrumando pra festa, vai esperar escurecer? – Gabriel perguntou levantando as sobrancelhas, caminhando até ela, e antes que ele pudesse fazer o de sempre, que era empurrá-la em direção ao banheiro, Maria já tinha começado a se levantar para evitar isso, pelo menos uma vez.

– Já vou, chatos pra carai vocês, hein? E eu merecia pelo menos uma lasanha hoje, Joana. – reclamou, andando em direção ao banheiro.

– Seu aniversário foi ontem, se tivesse vindo almoçar em casa tinha ganhado strogonoff, mas não... – a voz de Joana foi abafada pela porta do banheiro que Maria fechou o mais rápido possível.

Pobre Gabriel, teria que aguentar o sermão sozinho.

Depois de muito tempo de enrolação, contando encontrar uma roupa, comer a sopa fazendo careta, ajeitar os cabelos que Gabriel insistia em tentar fazer um penteado maravilhoso – que no caso era juntar tudo no alto da cabeça e chamar de surrealismo -, ser obrigada a engolir um suco complicado de beterraba e praticar o violino pelo menos uma hora e meia, só faltavam vinte minutos pras sete horas, e Maria finalmente tinha a mão na maçaneta da porta.

– Te vejo amanhã, boa sorte no hospital! – gritou de despedida para a amiga que ficara arrumando o apartamento, pela quinta vez naquele dia, antes de finalmente sair dali com Gabriel.

– Ela tem plantão hoje? – perguntou o jovem enquanto iam até o carro de Maria na garagem.

– Aham, nos plantões ela teima em fazer comida mais forte, deve ser por isso que a sopa tinha um gosto mais estranho que o normal hoje. – fez uma careta, jogando a chave do carro para o garoto, ela não ia dirigir estando de salto.

Conversaram sobre banalidades até finalmente chegarem ao local da festa, e apesar de Maria ser bem desajeitada com todas as outras coisas, com seu violino era praticamente outra pessoa. O levava em sua pequena caixa como se levasse um tesouro muito valioso, e para ela o era, e tinha também o brinco que havia ganhado de presente de Gabriel na orelha à mostra. No final das contas seu cabelo havia ficado preso para um lado, nada muito especial.

– Vou lá encher o saco dos mais novos e dos professores, boa sorte. – ele a abraçou e deu um beijo em sua testa, abrindo um sorriso animador antes de empurrá-la pouco gentilmente em direção a outra entrada.

– Tanta gentileza. – falou para si mesma, revirando os olhos, mas também estava sorrindo antes de desaparecer nos bastidores.

Faltavam apenas quarenta minutos para que fosse o momento de apresentar, tinha chegado mais do que vinte minutos atrasada por causa do transito e tivera menos que dez minutos para afinar as cordas do violino quando finalmente a chamaram para o palco.

Só conseguiu ver o tema da festa quando já estava lá em cima recebendo os aplausos dos alunos que a conheciam como a única garota que conseguira algo na carreira musical daquele colégio, e dos professores que ainda tinham a vaga ideia de que a ajudaram nisso. Mal sabiam que haviam deixado a garota praticamente maluca na época do ensino médio. O tema era dourado e prata, e todos estavam com roupas dessa cor, até mesmo alguns garotos mais espalhafatosos que não aderiram ao preto básico ou cinza. Maria sorriu para todos em agradecimento, e quando ajeitou o instrumento musical embaixo do queixo, a única coisa que ela podia ouvir era o som da própria música.

Via que alguns casais davam as mãos e começavam uma dança lenta acompanhando a música também lenta, porém feliz, que Maria tocava. Ela percebia o sorriso em seus lábios e sem querer conseguiu identificar Gabriel ao longe cutucando um dos professores para que prestasse atenção. Ele devia ser seu maior fã, mesmo que não entendesse nada de música pra ter certeza que ela tocava bem. Se não fosse por ele nem ao menos teria feito a audição para a orquestra.

Em sua cabeça a canção durou uma eternidade, afundou-se dela e fechou os olhos quando chegava ao fim, aproveitando as últimas notas como se fosse a última flor do universo, como se não tivesse nada melhor do que aquilo, antes de parar tão naturalmente como tinha começado. Finalmente seus ouvidos voltaram a apreciar os sons longe da própria música, ouviu alguns assobios de adolescentes com os hormônios a flor da pele e teve que rir, mas agradeceu como se deve aos aplausos que recebera ao final. Afinal, era sua última vez tocando naquela cidade por algum tempo.


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