Mecum omnes plangite escrita por Berlim Hime


Capítulo 1
apocalipse


Notas iniciais do capítulo

Escrevi a fanfiction ouvindo um certo álbum, então recomendo que leiam ouvindo o álbum também, especialmente a faixa The Last Crusade: https://www.youtube.com/watch?v=hnghez6xACk

Na verdade, recomendo que não leiam.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/590508/chapter/1

Fulda, 29 de novembro de 1600

A neve começava a cobrir as cinzas de Lili.

Incomum que a neve caísse tão cedo, no fim de novembro. Parecia cair apenas para Lili Zwingli, como um pedido de desculpas enviado por todos os santos.

Vater, era essa Vossa vontade?”

Gilbert Beilschmidt sabia que não.

...

Lili Zwingli era já bem conhecida por todos os padres e irmãs da Igreja Matriz de Fulda. Uma mocinha tímida, por volta de seus 12 ou 13 anos e que, ainda com todos os dentes em perfeito estado, sorria envergonhada sempre que lhe dirigiam a palavra. Espanava o pó dos bancos de madeira, abria os grandes vitrais pelas manhãs para permitir que a luz entrasse, varria a sujeira dos degraus da entrada. Alguns dias pagavam-lhe em pão e batata; outros, em algumas moedas.

Órfã de pai pela guerra e de mãe pela doença, havia crescido com o irmão mais velho. Basch e Lili não levavam uma vida fácil, mas, por tanto trabalharem, raras vezes a comida faltava em sua mesa.

Eram de poucas palavras os dois irmãos. Basch, pelo mau humor crônico, que desencorajava qualquer tentativa de aproximação. Lili, pela timidez patogênica que a tornava incapaz de trocar mais de duas palavras com estranhos.

Todos além de Basch lhe eram estranhos.

...

A Bíblia no centro do altar era fascinante. Lili a admirava enquanto removia o pó da capa de couro de carneiro. As bordas das páginas pareciam fios de ouro para a menina. O volume de páginas, incontáveis para Lili, a tornava gigantesca, quase amedrontadora.

Lili vasculhou a igreja com o olhar. Estava sozinha. Abriu o livro na metade.

“Gloria in excelsis Deo”, leu em voz alta as únicas palavras que reconhecia nas letras góticas impressas. O alfabeto latino era deveras fascinante; embora não o compreendesse, as formas eram sinuosas, quase artísticas.

“Amen”, respondeu uma voz vinda dos fundos da igreja.

Assustou-se e fechou a Bíblia de imediato, deixando que um baque surdo ecoasse pelas paredes do recinto. Na porta da tesouraria da Igreja estava encostado o Padre Beilschmidt, o mais jovem aspirante a bispo de Fulda e possivelmente de todos os reinos germânicos. Quiçá, Lili pensou no momento, o mais jovem de todo o continente!

-Desculpe! –a menina guinchou como um ratinho acuado.

-Desculpar pelo quê? Você não estava fazendo nada de errado, menina. –o padre riu, e sua risada estridente ecoava pela igreja. –Surpreende-me que uma garota da sua idade saiba ler. Onde aprendeu?

-Bem... Eu não sei ler. –Ela cruzou as pernas, passando o peso do corpo de um pé para outro. –Só conheço aquela frase. Leitura não é para mulheres.

-E quem foi que te disse isso? –Padre Beilschmidt se sentou em um banco de madeira próximo ao altar e apoiou os pés neste, para o choque de Lili. –Garotinha, algumas ideias estão se espalhando pelo continente. Os clérigos de alta posição não gostam disso, mas acho essas ideias interessantes. Elas dizem que a leitura e o acesso à palavra de Deus devem ser acessíveis a todos. Eu concordo com isso. O que me diz?

Lili engoliu em seco. Nunca havia tido uma conversa que exigisse opinião e um número considerável de palavras, como essa exigia.

-É bem... Interessante, Padre – disse baixinho.

-Ah, por favor. Me chame de Gilbert – disse o padre, sem cerimônia alguma.

-Certo. Gilbert. –Ela disse pausadamente e soltou o ar pela boca, nervosa.

-De qualquer maneira, ideias no papel não valem nada. É necessário pô-las em prática. Entende? –Lili assentiu com a cabeça. –Senhorita Zwingli, certo? Gostaria de aprender a ler?

A pergunta pegou Lili de surpresa e a deixou momentaneamente sem resposta. Nunca haveria de imaginar que um dia lhe fosse feita proposta tão tentadora!

-E-eu... –gaguejou.

-Você tem tempo pra pensar. Eu entendo. “O que eu, faxineira da igreja, vou fazer com livros?” –o jovem padre imitou grosseiramente a voz da menina –Bem, seja qual for sua decisão, está convidada para vir aqui no próximo pôr-do-sol.

Tirou os pés do altar e se despediu da menina com um aceno de mão, que mal teve tempo de retribuí-lo antes que Padre Beilschmidt saísse pela porta dos fundos.

...

Lili Zwingli passou a manhã seguinte cuidando das pequenas tarefas requisitadas pela igreja. Espanou o pó dos bancos de madeira, abriu os grandes vitrais para permitir que a luz entrasse e varreu a sujeira dos degraus da entrada. Voltou para a casa que dividia com o irmão a tempo de tomar leite e queijo de cabra como café da tarde.

Comiam em silêncio, como de costume, interrompido por um ou outro comentário vindo de algum dos dois.

-O leite está fresquinho – Lili tomou a palavra.

-É – concordou Basch, o que normalmente encerraria a breve conversação.

-Basch, – Lili chamou timidamente, recebendo um olhar intrigado do irmão como resposta – tenho mais serviço na igreja, hm, – olhou pela pequena janela de madeira, a única do cômodo, percebendo que a tarde ia embora e que o horário combinado com Padre Beilschmidt se aproximava – agora mesmo.

-Ao anoitecer? Que atípico. –Basch murmurou, porém não disse mais palavra.

-É. –Lili bebeu o que sobrava de seu leite em goles rápidos e deixou a caneca em cima do fogão a lenha. Despediu-se do irmão com um beijo no rosto e saiu pela porta da frente disposta a aprender as letras.

-

-Olha, e não é que a mocinha veio? –Lili entendeu como um cumprimento demasiado informal do padre.

-Eu quero conhecer as letras, padre – a menina respondeu com ingenuidade que arrancou risos de Gilbert.

-Adorável. –Ele bagunçou os cabelos de Lili. Cá estava um padre bem atípico, pensou ela. – E, por favor, já disse que meu nome não é padre. Bem, pode ser. Mas só se você me chamar de Incrível Padre.

Lili não esboçou reação que não abrir ainda mais seus olhos redondos.

-Pode rir, foi uma piada – o padre gesticulou com a mão para demonstrar a insignificância do título e a menina abriu um sorriso tímido com os cantos dos lábios.

Padre Beilschmidt abriu no altar a pesada Bíblia em latim nas primeiras páginas de Gênesis, e convidou Lili a se sentar a seu lado.

Lili aceitou o convite, olhando curiosa para as letras misteriosas.

-In principio creavit Deus cælum et terram. – Ele proferiu as palavras vagarosamente, deixando que Lili acompanhasse as linhas.

Quando a noite caiu, a menina conseguia reconhecer as vogais nas palavras.

...

-Requisitaram você hoje ao crepúsculo? De novo? –Basch Zwingli levantou os olhos da fatia de queijo de cabra que comia apenas para indagar a irmã.

-É – Lili esforçou-se para não gaguejar. Não tinha o costume de mentir para o irmão, mas tinha certeza de que o fazia mal. –Padre Beilschmidt precisa de ajuda com muitas coisas.

-Hm – foi a única resposta de Basch enquanto Lili saia pela porta.

-

-I... Igitur perfecti sunt cæli et terra et omnis ornatus eorum –a menina leu em voz alta, cometendo erros de pronúncia que foram rapidamente corrigidos pelo padre.

-Você aprende rápido, Lili. –Ele elogiou –Acho que conseguimos ler mais alguns versículos juntos essa noite.

Lili sorriu. A timidez aos poucos desvanecia conforme se tornava mais próxima do padre, seu professor.

-Que palavra é essa? Con... – apertou os olhos, tentando enxergá-la.

-Conplevitque. Finalizado. Algumas palavras em latim realmente são difíceis, eu te entendo – Gilbert deu tapinhas na cabeça de Lili.

-Mas é uma língua muito bonita, a meu ver - Lili disse baixinho, temerosa de estar contradizendo o padre com a frase inofensiva.

-De fato. Mas acho o alemão muito mais bonito. O alemão é incrível! - Gilbert riu como se fosse uma piada interna. O riso descontraído do padre quase fazia Lili sorrir também - Quando você tiver aprendido o suficiente de latim, podemos estudar o alemão. Mas, menina, as letras impressas são sempre as latinas.

...

-Há duas semanas você vem visitando o Padre Beilschmidt todas as noites -Basch colocou a irmã contra a parede quando esta voltou, tarde da noite, de seu décimo quarto encontro com o padre.

Lili engoliu em seco. Seu gosto pela leitura da Bíblia e pela língua latina crescia cada vez mais. E se contasse a verdade para o irmão e este a proibisse de continuar aprendendo? Não, não suportaria isso! Queria obter todo o conhecimento que pudesse alcançar. Queria um dia ler de Gênesis a Apocalipse.

Sabia que Basch desejava protegê-la de todo o mal. E se considerasse a leitura um mal?

-Padre Beilschmidt me dá bom pagamento por serviços simples - disse, gaguejando. Esperava que a explicação fosse o suficiente.

Basch assentiu e deu as costas.

Lili saiu novamente para encontrar Padre Beilschmidt na Igreja Matriz de Fulda.

...

Na terceira semana de encontros, Lili foi capaz de encerrar a leitura de Gênesis. Leu as últimas linhas sem ajuda e sorriu alegremente quando Gilbert elogiou seu progresso.

-Você vai ser capaz de ler a Bíblia inteira muito antes do que eu imaginava. Você é incrível, garotinha - Gilbert beijou a mão de Lili na despedida.

-

-Eu sei o que o Padre Beilschmidt andou fazendo com você. Não tente defendê-lo - Basch disse, fria e duramente, quando Lili entrou. O mais velho a esperava encostado no beiral da porta.

Lili congelou onde estava. Lágrimas involuntárias rolaram por seu rosto. Como Basch poderia ter descoberto?!

-Eu deveria ter te proibido de vê-lo desde o começo. Falhei em te proteger - sua voz, por um momento, pareceu vacilar de dor, mas logo voltou a ser dura e fria - Você está proibida de sair de casa para o que quer que seja até que eu ordene o contrário. Amanhã conversarei com o resto do clero a respeito dessa situação.

Basch deu as costas.

Lili caiu no chão de joelhos, chorando até soluçar.

...

-Chegou uma denúncia contra o Beilschmidt. Um tal de Zwingli que cria cabras o acusou de molestar sua irmã mais nova - um jovem de cabelos loiros relatou o acontecido a seu superior, um padre na casa dos trinta anos de cabelos castanhos, óculos e olhar desinteressado.

-Executem a menina. -Ele disse, mais interessado em uma aranha que descia por sua escrivaninha.

-Mas Padre Edelstein, é mesmo necessário? - o loiro perguntou, incomodado com o extremismo da decisão - E se o Beilschmidt realmente tiver se aproveitado da menina?

-Pouco me importa se isso aconteceu realmente ou não. Gilbert será o representante de todo o catolicismo de Fulda e pode vir a representar o catolicismo de todo o continente. Não posso deixar que a menina que lava as escadas interfira nisso - em momento algum desviou o olhar da aranha, até que deu-lhe um peteleco e olhou finalmente para seu encarregado, suspirando de tédio - Prepare a fogueira para queimar uma bruxa.

...

-Não! -Basch gritou quando Lili lhe foi arrancada dos braços -Minha irmã não é uma bruxa! Ela nunca fez mal a ninguém!

-Ordens são ordens. A justiça divina não falha. -Um dos inquisidores tinha uma lança apontada para o peito de Basch, enquanto os outros dois seguravam uma Lili em prantos.

-Desculpe, irmão, desculpe. Eu deveria ter te escutado sempre!

Basch foi imobilizado pelo inquisidor enquanto Lili era arrastada ao palco de sua execução. A macabra procissão era ritmada pelos gritos dos habitantes de Fulda, que se reuniam para assisti-la.

-Bruxa! Bruxa! - Mil vozes acusavam Lili, que sequer compreendia qual havia sido seu crime.

...

Fulda, 29 de novembro de 1600

A neve começava a cobrir as cinzas de Lili.

Incomum que a neve caísse tão cedo, no fim de novembro. Parecia cair apenas para Lili Zwingli, como um pedido de desculpas enviado por todos os santos.

Vater, era essa Vossa vontade?”

Gilbert Beilschmidt sabia que não.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Então... Sinto que a fanfiction ficou extremamente curta, mas não consegui fazer mais do que isso. Também sinto ter ficado corrida e que o mal entendido O QUE LILI ESTAVA FAZENDO/O QUE BASCH ACHOU QUE LILI ESTAVA FAZENDO não ficou bem explicado durante a história. Sinto muitíssimo, muito mesmo. Detesto terminar um trabalho sem estar totalmente satisfeita.

No mais, gostaria também de dizer que a história pode ter e provavelmente terá diversos erros de latim e de estrutura católica. Pesquisei um pouco, mas estou longe de ser especialista no assunto, portanto erros estúpidos foram recorrentes, creio eu.

E também que a história foi baseada em eventos históricos reais: as seguidas execuções de mulheres e meninas acusadas de bruxaria na Fulda medieval, entre 1603 e 1606.

Agradeço por terem lido, principalmente à minha provavelmente desapontada amiga oculta.

Grata,

Berlim-chan.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Mecum omnes plangite" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.