Oceano escrita por Mateu Jordan


Capítulo 1
Algo se quebrou em mim




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Só fui uma vez para a praia, e depois dessa única experiência com água salgada, eu nunca mais cheguei perto do mar.

A chuva retumba nas paredes rosas do meu quarto. Eu nunca fui como as outras meninas, que sempre amavam rosa e bichos de pelúcia que mais servem para ocupar espaço do que para ser usado como companhia em uma noite chuvosa como essa. Mas esse rosa é diferente, é mais bonito e menos chamativo, me deixa calma.

As árvores do nosso quintal balançam no mesmo ritmo uma das outras, como barcos navegando no mar selvagem.

A água é tão perigosa, tão instável, tão venenosa.

Ela pode te dar a liberdade que você não encontra em terra firme, mas também pode te causar traumas que podem ser levados até a morte. Ou até depois dela.

No meu caso foi a segunda opção, e como eu a odeio.

Sinto-me encolher para junto da cama enquanto leio Orgulho e Preconceito de Jane Austen. Só estou lendo-o para a escola, mas não estou prestando atenção alguma. As páginas estão sendo passadas pelos meus dedos em sincronia. Tenho 30 segundos para ler a página toda. Se entendeu, entendeu, se não entendeu, vermelho na prova.

Nunca fui muito de ler, nunca fui de levar livros para a escola e ficar lendo naquelas aulas chatas – principalmente quando a professora está passando coisas na lousa – eu nunca fui disso. Eu sempre preferi fazer qualquer outra coisa. Menos nadar. Ai sim eu preferia ler milhões de página, a nadar mais uma vez.

Eu nunca vou me esquecer do dia em que meu coração bateu tão forte que eu precisei segura-lo para consola-lo.

Ele estava batendo tão forte que minha cabeça doía, meu corpo umedecia até debaixo d’água, e meus olhos brilharam não de prazer, mas sim de medo.

Três deles me cercaram, três dele me fizeram roer as unhas dos pés depois de meses do acontecimento. Hoje já não faço mais isso. Pelo menos foi um progresso.

Eu também não sinto mais o cheiro dos tubarões, um com aquela cabeça de martelo e os outros dois normais – mas isso não quer dizer que não eram tão horripilantes quanto o outro. Eu senti medo, muito mais porque fui pega desprevenida e sem nenhuma arma para me proteger. Eu só tinha meu instinto humano.

Minha mãe me diz até hoje que eu tenho que agradecer todos os dias a Deus, que tenho que continuar a seguir suas palavras e a ser uma boa menina. Como se eu tivesse dentes pontudos prontos para rasgar a garganta das pessoas, como tinham aqueles tubarões, mas as vezes, quando paro para pensar em como eu fui sortuda, eu agradeço – silenciosamente – a Deus, por eles não terem me seguido quando meu instinto humano me levou o mais rapidamente para a praia. Eu, Leona Parker uma sobrevivente de quase um ataque mortífero de tubarões.

Quando meus pés e meus dedos da mão tocaram a areia, eu nadei nas minhas lágrimas, as únicas águas em que eu me sentia segura. Eu chorei muito, clamei por ajuda e pela minha mãe. E quando eu vi ela, eu desmaiei em paz, só para sair daquele pesadelo que terminou num final feliz – ou não – e numa cama de hospital, com aquele cheiro de doente entrando pelas narinas como o cheiro da água do mar.

Tenho todas essas lembranças porque eu entrei em um trauma e nunca mais saí. Na verdade eu já saí e voltei tantas vezes, que meus dedos já estão cansados de contar.

Minha mãe e meu pai dedicaram muito do tempo livre deles antes ou depois do trabalho que eu serei eternamente grato a eles por todo aquele carinho. Sinto-me feliz quando vejo-os sorrindo, mas quando choram, fico longe deles, de um jeito ou de outro, sinto que firo eles mais que ferro no fogo quente, espalhando labaredas e causando gritos de dor e terror.

Me sinto tão vulnerável sem eles. E perto deles, sinto-me bem, em terra firme.

Agora minha janela começou a balançar, não quero ter que levantar e parar a “leitura” do livro. Quero termina-lo rápido o bastante para fazer qualquer outra coisa. Dormir, andar, comer, respirar. Tudo é tão mais interessante.

Ouço o barulho do portão eletrônico de casa se abrir. Aquele barulho significa para todos daqui de casa: o papai chegou, agora ele é outra pessoa, o nosso pai.

Infelizmente levanto, daqui a alguns minutos meu pai iria vir me ver para perguntar se está tudo bem, então já aproveitei e me levantei antes das palavras de costume dele chegar aos meus ouvidos. Aproveitei também e fui conferir a janela. Fechei-a bem, agora nenhum som entrava no meu quarto. Nem a água da chuva.

Desci as escadas da nossa casa, e logo meu irmão caçula – Logan – já está tentando abrir a porta branca e envernizada da frente de casa. Ouço a porta do carro bater, e depois de alguns segundos, meu pai destranca a porta e entra na casa.

Meu irmão pulou nos braços dele, e meu pai segurou-o com um braço só, pois no outro estava segurando sua habitual maleta de couro preta. Ele sorri para Logan que parece tão pequeno daqui dos degraus da escada em comparação a meu pai que eu sorrio por isso. Logan também me ajudava quando tinha os acessos de medo pela água da nossa banheira. Ela vinha perto de mim e dizia:

– Quer que eu tome banho com você, Leo? – Sua vozinha era tão sensível e tocante que eu sempre acabava tomando banho no chuveiro enquanto ele brincava na banheira.

De pouco em pouco eu fui acostumando com o chuveiro e com outros tipos de coisas necessárias que envolviam água. Como a banheira. Tudo graças a minha família, que sempre estava do meu lado.

Meu pai foi até mim, senti seu terno preto um pouco molhado, mas como o pano parecia bem grosso, a água não conseguia entrar muito pelo tecido, e estremeci quando algumas gotas pingaram em mim, estavam geladíssimas.

Sorri pra ele, e meu pai disse o que eu tinha certeza que perguntaria:

– Como foi seu dia querida?

– Tirando o Orgulho e Preconceito – Digo, sorrindo – Meu dia não poderia ter sido melhor. – Reflito sobre o que acabei de dizer, acho que tenho razão. Meu dia foi legal, na verdade foi normal. Mas era o que eu queria, queria dias normais. Uma vida normal. Sem traumas.

– Então meu dia acaba de ficar melhor ainda – Ele fala e sorri, seus dentes são tão brancos que as vezes sinto inveja. Depois ele me beija na testa e fala para Logan – Filho? Chame sua mãe e venham até a sala. Tenho uma surpresa.

Olhei para ele com uma cara de curiosidade. Ele nunca fazia suspense quando o assunto era grave. Só quando era bom. Não pude deixar de sorrir.

Segui-o até a sala, onde ele colocou a maleta e desabotoou o paletó. Eu sentei no sofá de veludo bem cuidado, que eu fora com mamãe comprar numa loja daquelas filiais da Toger & Thanks, e que ainda havia escolhido a cor do sofá: uma cor vinho que parecia desbotado a luz fraca, e bem vivo a luz do sol. Eu tinha um gosto bom, sinceramente.

Batuquei os dedos de uma mão nos dedos da outra mão, esperando minha mãe chegar. Meu pé batia no chão, só o esquerdo. Algumas dessas manias eu havia adquirido depois que eu ganhei o trauma. Como se só ele não bastasse.

Mamãe vem arrastada por Logan, que deve estar tão ansioso quanto eu.

Olho para mamãe de relance. Como eu quero envelhecer como ela, mas mesmo mais velha, nos parecemos muito. Temos os mesmos cabelos negros como a noite e levemente ondulados, a boca carnuda e escura e as sobrancelhas bem desenhadas. Os cílios dela são maiores que os meus, mas por ser quase idêntica a ela, eu não reclamaria de não ter belos cílios grandes. Ela também era um pouco mais alta.

– Olá querido – Diz ela, ela também não parece preocupada, deve saber que meu pai não faz cerimônia quando é algo sério – O que tem para nos falar.

– Lembra quando você disse que queria passar alguns dias na Califórnia, amor? – Meu pai disse com uma voz excitada, ele olha diretamente nos olhos de mamãe.

Algo em mim se quebra.

– Sim, por que querido? – Minha mãe o olha, agora mais ansiosa e ignorando os puxões no braço esquerdo que Logan faz nela.

– Eu consegui quatro vagas num hotel perto da praia, num condomínio. Tudo de graça – Ele diz tudo tão rápido, mas a palavra praia retumba na minha mente tão forte que parece que estou vendo um filme mudo, em preto e branco.

Algo com certeza se quebrou em mim.

– Você está brincando, Hugo – Minha mãe chama meu pai pelo nome, e incrível, agora consigo ouvir tudo, mesmo ainda enxergando tudo preto e branco. Acho que meu cérebro quer ter certeza. – Nós vamos para a Califórnia? Na Praia?

E agora eu sei o que se quebrou.

– Isso! – Logan ergue o punho fechado e comemora. Ele é tão pequeno, não era nascido quando quase fui quase atacada pelos tubarões. Aquela imagem desesperadora toma conta de mim. Eu vejo tão nitidamente, tão perto, tão vivo.

O vidro do meu trauma se quebrou.

– Vamos partir no final de semana – Meu pai diz – Vamos passar 10 dias lá. Vai ser demais! – Minha mãe o abraça, mas eu ainda não disse nada, estou batendo os dedos uns nos outros ainda. Meu pé esquerdo bate no chão tão rápido como o meu coração.

E agora o trauma todo se espalhou pelo meu corpo. Como o sangue nas minhas veias.


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