Em Busca de Utopias escrita por Luamar


Capítulo 1
Cap. Único - Segure minhas mãos...


Notas iniciais do capítulo

Não sei se alguém vai ler isso até o fim...
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Já aviso: está confuso... Algumas coisas podem ter vários significados. Um pra você, outro para mim... Ou então não ter sentido nenhum.
De qualquer forma, se acharem erros, me avisem! Apenas revisei...



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EM BUSCA DE UTOPIAS

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Utopia: Sonhos ou planos irrealizáveis. Fantasia.

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No lugar onde o sonho tropeçava com sua realidade.

Ali [estão] meus pequenos olhos.

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Não me perguntem nada. Eu vi que as coisas

quando buscam seu curso, encontram seu vazio.

Há uma dor de ocos pelo ar sem ninguém,

e nos meus olhos, criaturas vestidas. Sem nudez!”¹

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Deixava que aquelas mãos deslizassem. Aquela caneta deslizava e suas costas deslizavam pelo sofá. Uma perna sobre a outra, uma braço esticado e o outro segurando um cigarro em sua boca. As roupas curtas e rasgadas propositalmente. Riscos de canivete.

Foi por isso que ele a escolhera. Por isso e por sua gentileza. Falsa gentileza imersa numa enganosa bondade.

Tentara por anos e nunca A conseguiu. Agora narrava, palavra por palavra de sua busca. E ele deixava sua caneta deslizar pelo papel.

— Por que a bondade é sempre a estragada, Marco?

— Porque ninguém a merece. — E ele percebeu que não tiraria nada mais dela, por enquanto.

Um olhar de peixe morto. Vasos vazios não guardam velhos vermes. Não era isso?

Nunca viu nada de especial na lua. Nunca tivera nenhum objeto que lhe trouxesse boas ou más recordações. E veja, já havia passado por tantas coisas! Mas todas aquelas lembranças simplesmente não pareciam existir... Ela remoía o passado, mas já o digeriu. As escassas sobras estavam a poucos segundos de abandonar seu estômago.

Ela nem sabia por que fumava. Talvez porque a brutalidade das drogas fosse real demais, rápida demais.

Suspirou quando sentiu o peso de Marco sobre sua barriga e o ajudou a tirar a blusa. Os cabelos negros desarrumados desciam pelos ombros, e olhos azuis claros vívidos. Aqueles olhos estavam irritados como os de algum predador. Ela deveria avisá-lo de que já esta morta, porque remexer no que já estragou?

— Você já pensou no buraco negro que está criando em si mesmo? — sussurrou. Ela sabia que ele entenderia – era triste, mas ele sempre a compreendia, e por isso ela estava ali.

— Amo-lhe exatamente por causa disso. — “Mentiroso”, pensou. Ou talvez não. Ele amava aquele maldito vazio.

Puxou os longos cabelos negros daquele homem, arranhou suas costas, sentiu seu gosto. E enquanto sentia as estocadas e soltava fracos gemidos, não podia deixar de pensar que sua Bondade estava mais distante que nunca. “Céus, eu o odeio”.

(...)

Numa manhã de anos atrás, Karin ainda era jovem e conversava com um homem de quarenta e poucos anos. Aquele homem chamava-se Rafael e era professor de faculdade.

Ela pensava em seduzi-lo e por isso havia se aproximado. Era uma tonta, e se reconhecia sendo uma. Uma tola ninfeta. Vadia inocente.

Sorrisos falsos em lábios brilhosos. Olhares tímidos sobre olhares desconfiados.

— Me diga minha jovem, qual seu sonho? — Ela se assustou, mas não deveria. Não era exatamente isso que estava escrito na grande camiseta laranja que ele vestia?

Com ele, ela aprendeu sobre utopias.

— Você um dia irá perceber que está andando em círculos e que tudo ao seu redor parece feder. — Ele lhe dava sorrisos meigos, tocava delicadamente em sua mão, e ela se sentiu confiante. Ergueu o olhar devagar e ousou o encarar seriamente, como poucas vezes se dava ao luxo de fazer.

Lembrava-se vagamente de que ele corou ao ser encarado de tal maneira. Retirou rapidamente sua mão, e desviou o olhar, hesitante. E como se ela lhe tivesse dado uma ordem clara, continuou sua história, contou tudo o que sabia sobre as batalhas da vida.

A partir daí ela começou a compreender que seu olhar possuía uma aura forte, algum poder desconhecido.

Nesse instante, eles não tinham mais nada.

(...)

— Por que desistiu da medicina? — perguntou com sua voz costumeira, suave e grossa – toda e toda fingidamente compreensiva.

Ele tem uma bela voz. Ela ainda estava no sofá, ainda estava jogada e ainda fumava. Ignorava a nudez da mesma forma que fingia não perceber o sol quente que vinha da janela lhe queimando o rosto.

Ele estava sentado no chão. O peito branco, cheio de tatuagens pretas. Assim como as dela, frases escritas ao acaso. Gostavam de escrever em si mesmos. E tudo, absolutamente tudo, deve ser profundo. Profundo deixa marcas que nunca curam, apesar de poderem ser esquecidas.

Ela esqueceu-se tanto, que pressentia que suas tatuagens já tivessem se misturado a sua pele, dando-lhe um monstruoso tom cinzento.

Ele era tão bonito, assim como ela. E ele foi atormentado, jogado e pisado, assim como ela. Por que então, era um predador tão sedento?

Haveria chances de se preencher sugando a alma de outros?

“Ele quer me ver cair. Meu suporte é feito com grãos de areia. Isso é algo que ele deseja presenciar, o fim absoluto de uma alma.”

— Eu te amo, Marco. — disse na voz delicada e baixa, livre de qualquer emoção. Ele sorriu de lado, sedutor. Sabia que era mentira, e que também não deveria mais insistir no antigo assunto. Hoje não sairia mais nada.

Aquele pausado ‘eu te amo’, aquelas unhas negras lhe arranhando as costas e mesmos os gemidos que diziam seu nome. Era tudo falso, e ela nunca desarmaria aquele estranho teatro, mesmo que ele desejasse.

E como ele desejava! Queria que ela fosse, ao menos uma vez, sincera! Que se deixasse abalar por um último resquício de saudade e culpa, e se dispusesse a contar-lhe tudo, soluçando em seus braços, pedindo-lhe as penitências. Que ele diria, oh, como diria. Saberia exatamente quais eram necessárias para seu caso.

Faltavam umas poucas páginas.

Uma história de uma buscadora num mundo sem nada que valha a pena perseguir. E ele mostraria isso à esse mundo.

Mas não conseguia sair dali. Aquele maldito beco que ela criou. Teve o Amor e o Trabalho escritos em suas folhas. Contudo ela recusava-se a lhe dar a Bondade.

E então eles ficavam quietos, vazios. Longe dos movimentos do universo. E sempre esse nada preenchia o cômodo onde ambos ficavam. Eles eram o nada e suas almas ímpias impregnavam tudo.

Contudo, ele se levantará, enquanto ela definha.

Suspirou e apoiou a cabeça na parede atrás de si. Fixou os olhos no nada, deixando com que seu eu-louco tomasse conta de si. E logo após, ouviu a janela fechar-se rapidamente. As sombras tornaram-se densas e tão presentes quanto um bando de mamutes peludos e sem ossos. Mamutes-jiboias que o espremiam com seus corpos moles.

O silêncio o corroía, transpondo-o como uma onda de respostas perdidas. Ninguém mais aguarda alforria alguma. Muito menos ela.

E então o vento trincou a realidade: gritou vermelho enquanto suas mãos tremiam com a pureza da prostituta. Ele a via. Ele a via e nela havia algo desastroso.

Exatamente como na primeira vez que a vira.

(...)

Um dia, estando ele de braços abertos a beira dum penhasco, ouviu um zumbido. O baque seco do corpo espatifado ao chão foi escutado alguns segundos depois. Mas de primeiro, não se mexeu. Estava a admirar-se na liberdade que sempre o colocavam.

O vento batia em sua face e o empurrava em direção à morte. Sua maior luta e maior orgulho, fora lutar bravamente, permanecendo firme e de braços abertos. Não caíra e nunca cairá.

Ao resolver finalmente olhar para baixo, viu Karin espatifada e ainda viva. O sangue vermelho se esparramando ao redor, formando um círculo todo torto e os braços estendidos, como que a espera de um abraço final.

E riu, riu e gargalhou. Pela boca, pelo nariz, pelos ouvidos. Ali à sua disposição, seu prêmio: uma garota feita de ouro.

Levou um tempo para conseguir descer e levá-la embora.

Agora, ela era sua. Pronta para por na estante.

(...)

Um dia quisera um Nobel. Seria um troféu áureo pairando sobre sua cabeça – O certificado. Assim provaria que estava certo desde sempre.

Lembrava-se de seu pai, um jovem homem desgastado tal qual o tecido das calças. Muitas vezes, ao repetir o costume diário de chegar ao lar e descalçar as botinas, suspirava pesado e dizia a Marco:

— Estude, meu filho. Para não servir de jumento para os outros. Ninguém da família foi longe, mas você pode ir. Sei que pode.

As palavras não variavam, pois seu pai conhecia poucas. As agrupou assim e tendo conseguido expressar exatamente o que queria, achou melhor não mudá-las de ordem ou tentar sinônimos.

Porém, Marco sentia-se tão satisfeito com isso. Não importava que já fossem palavras repetidas que pouco a pouco ficavam ocas e mais desesperançosas. Seu velho confiava em si.

Claro, a grande questão não era apenas conseguir satisfazer os anseios dele, claro que não. Estava mais do que claro que sua presença algum dia seria indispensável para o mundo.

Ele só precisava... Voar.

Voar bem alto para que pudessem o ver. E então ele contemplaria a todos como pequenas formiguinhas.

(...)

Uma quadrada mesa de ferro estava montada na cozinha. De frente, face a face, encontravam-se Marco e Karin. Uma panela de pressão fechada enfeitava o centro.

Não desejando realmente encará-lo, ela se fixava no verde do jiló e na palidez do macarrão sem molho. Picou e misturou tudo, enrolou no garfo e engoliu a seco.

— O suicídio do matador de criancinhas lembrou-me de coisas... Parece certo, não? — comentou Marco.

O silêncio foi quebrado. Ponto. Mas o ar desconfortável ainda estava ali.

Entretanto, simplesmente acabar com o silêncio nunca foi o intento de Marco. Seu gênio deslavado arquitetava coisas mais e ele construía uma poderosa rede de fio em fio.

— Foi pura pressão. Ainda nem tinham provas concretas. — resmungou de volta.

— Mas isso mesmo. Jogaram os erros em sua face, sua podridão, e ele não aguentou. Percebeu que não era humano e num ato de solidariedade, se matou. S.o.l.i.d.a.r.i.e.d.a.d.e. — soletrou lentamente, dando um sorriso um tanto sarcástico ao final. — E enfim, virou humano. Se a mídia ajudou nisso, melhor ainda... — terminou com um dar de ombros. Como se cada tudo fosse um nada e nadasse ao acaso.

Mas para Marco o mundo inteiro era essa coisa fétida que andava sem rumo certo. E algumas vezes ele conseguia chegar a situações interessantes em seu rodar de coincidências.

Porém, Karin havia parado de comer e a voz de Marco não passava de um som fraco e palavras soltas. Ela estava envolta um transe por memórias, coisa que há muito tempo não lhe acontecia. Algumas palavras-chaves, juntas, talvez fossem as culpadas: humano; solidariedade; mídia...

Três palavrinhas às vezes tão distantes, muitas vezes relacionadas.

(...)

Exatos cinco anos atrás, estava ela em cima de um carro e segurando um alto falante. Uma massa de cabeças abaixo dela, movia-se para frente conforme o ritmo de suas palavras, como se dela fizessem combustível e maestro.

Alguns olhos, antes de preocuparem-se com a correnteza em si, a veneravam. Estava ali a nova representante dos jovens, e quem sabe então, uma próxima líder política que finalmente fizesse valer o povo?

Estavam ali para reivindicações juvenis: mais sonhos para nós.

Só.

Poder sonhar livremente com um futuro. Não ser mais manipulado, não ser mais domesticado, acuado, espancado.

E com o autofalante em mãos ela ditava e declamava sobre um mundo melhor.

E com escudos e porretes em mãos a polícia vinha, tentando preservar o mundo do jeito que alguns achavam melhor.

E alguns foram tantas vezes feridos. Não pela violência das armas, mas pelo riso cínico de quem os assistia.

Pelo olhar reprovador de seus pais ao os retirarem da cadeia.

“O que você quer mudar? O que você quer tanto mudar?!”

“As coisas foram sempre assim, e vão continuar sendo. Siga a maré”.

E ela dizia: “as prisões estão superlotadas!”.

E todos e todos que andavam consigo concordavam que aquilo não era humano. Mas também riam ou ficavam irritados se perguntando o que é que tinham a ver com isso.

E a mídia a adorava como a jovem rebelde de classe média que pensava saber de direitos humanos.

(...)

Marco ainda a olhava, curioso para saber, pois quais lembranças ela andara. Queria poder colher todas. Abrir sua cabeça e assistir suas memórias.

Mas ela não lhe olhou triste ou apática. Parecia um tanto nervosa, como se, pela primeira vez, o encarasse:

— Você sempre ri, não é?

E ele nem concordou ou discordou, porque dessa vez não realmente compreendeu o que ela queria lhe dizer. Ele sempre a entendia, se orgulhava disso. Mas dessa vez, seus olhos foram raivosos demais para ele tentar penetrá-los.

Não sabia se sairia ileso.

(...)

Marco cantarola sozinho, debaixo do chuveiro. Tentava distrair-se de sua raiva. Deveria estar feliz pela excelente matéria que fizera agora a pouco — ele escrevia artigos como poucos jornalistas o faziam. Mas não era somente assim que conheceriam seu trabalho. Que, verdadeiramente, o admirariam!

Deveria terminar seu livro. Que a maldita ao menos o recompensasse por mantê-la viva. Por deixá-la comer e aguentar sua companhia.

Ela já veio destroçada, quase muda. Vivia pelos cantos, deitada no sofá, na cama, no chão. Morrendo a cada respirar. E ele a acolhera mesmo assim! Deixava-a assombrar os cômodos de sua casa sem nunca lhe pedir nada, apenas suas palavras.

Uma gratidão pequena ao seu salvador!

Mas depois de meses de torpor, ela ressuscitava numa aura tempestuosa. Negava-lhe seus relatos. Evitava que ele lhe tocasse.

Parecia ter recuperado um antigo pudor que nunca lhe caíra bem. Um orgulho ralo sobre controlar quem poria as mãos em seu corpo.

Ele não ficaria bravo se não fosse ela lhe negar as malditas palavras!

Pois, veja, ela vivera tanto em tão pouco tempo. Foi uma estrela tão e tão brilhosa! Aquela que movia multidões com ideias bondosas para esse mundo cretino.

E então ela caiu.

Ele queria saber quem a empurrou ou se fora ela mesmo que se jogara.

Ele queria saber os motivos por detrás de tudo. Queria saber o que ela sentiu ao se ver apagar.

Sabe como se ganha um Nobel? Simples, faça algo de uma genialidade incontestável. Mas tem de ser algo seu e semelhante.

Ele escreveria um livro, e por isso, sempre voltou-se a si mesmo, afinal, só se escreve algo realmente bom se lhe parece verdadeiro.

E o que lhe parecia mais verdadeiro que a deteorização das pessoas? A própria deteorização que consumia sua alma?

Mas todos escondem. E ele queria arrancar aqueles olhos e bocas mongas. Que vissem o que ele via! Que compreendessem o que ele, em sua genialidade, já compreendera.

Pois as pessoas são maravilhosas em sua podridão.

Karin deveria aprender isso e deixar Marco a admirar completamente.

(...)

Karin pensava se aquilo tudo deveria estar acontecendo. Ela sabia mais sobre ele do que ele pensava e o estava irritando. Era quase divertida essa espera angustiante.

Quanto tempo ele aguentaria até explodir?

Ela queria vê-lo explodir, lhe bater, lhe estuprar, para então lhe dar seu bem mais sagrado. Sua falsa Bondade, aqueles olhos de inocência perdida e maldade adormecida. Olhos que o decifraria em questão de segundos.

Aqueles olhos que veem tudo e causador de tantos problemas. Dor, loucura, medo e insegurança.

Ou talvez, para simplesmente acordar.

Esperava o embate: quando apenas um dos dois saísse vitorioso, ela lhe daria o que ele queria ou então sairia de seu estado de inércia.

Mas algo aconteceria. Algo deveria acontecer para que aquela situação se findasse.

(...)

Ele a desejava. Frieza de abraços fracos e insetos famintos. A desejava como nunca a desejou antes.

Ali estava o vácuo que tanto consolava seus sonhos de escritor?

Ao acordar e vê-la preparando seu próprio café da manhã, ele sentiu-se um pouco mais fraco que antes. Muito mais fraco do que já fora. E numa risada cínica, comentou baixo, sem saber se ela o ouviria, sem se importar se ela ao menos lhe notaria:

— Eu tive um sonho no qual as mulheres não eram mais tratadas como objeto sexual...

E quando ligou a televisão, num programa de comédia, um pouco menos infeliz, completou:

— Graças a Deus que foi apenas um sonho.

Porque aquele ainda era o mundo em que ele vivia.

(...)

E, então, fora ela quem sonhara.

Via-se num fundo azul e azul e brilhoso. Era tão e tão majestoso que por minutos ela ficara parada. Até notar várias e várias pessoas ao seu redor. Num perfeito círculo ao seu redor.

Ela conhecia todos os rostos. Seus amigos e companheiros de jornadas e passeatas. Todos ainda estavam felizes, ainda brilhavam azulados.

Mas, então, tudo se apagara. O cenário foi perdendo a luz, as pessoas foram ficando cinzas gélidas. Olharam para si, pedindo e implorando desculpas, enquanto avançavam em sua direção.

E então entraram em si! Sufocando-a, tirando seu ar. Atando-a aos poucos, dolorosamente ela sentia-os estourando seus vasos sanguíneos, transmitindo aquela frieza para si.

E depois foram embora. Abandonando-a na escuridão.

Ela escuta vozes esganiçadas, ditando monólogos que ela não quer (nem nunca quis) ouvir:

“Mas não acho que acredita no que você mesma diz. Sei que essa sua ideologia é falsa. Mas entendo sua necessidade de possuir uma. Essa necessidade de fugir do banal.”

“ Talvez a única coisa que precisamos fazer é lhe mostrar que o comum não é ruim. Simples assim. você pode influenciar pessoas sendo boa, não precisa erguer um caos para isso. Por que você entende Karin, por mais que você tente, no caos ninguém brilha. É um caos, e nele, todos os gatos são pardos e estão a procura de um rato.”

Mas quando acordou, percebeu que nada daquilo lhe importava mais. Aquelas palavras não mais lhe causavam efeito porque eram distantes demais. E ela não mais lhe dava valor.

E talvez pela Bondade, ela pudesse perdoá-los por a terem matado. Poderia, claro que poderia. E iria.

(...)

Ela se recuperava!

Cada vez mais e mais e mais! Marco a via sorridente, num olhar cheio de gentilezas para si...

E então ele percebeu que deveria agir. Aquele era o momento em que obteria A Bondade ou então, a perderia de vez. Karin estava imersa e enlameada na Bondade.

Ele fez uma armadilha, pôs as últimas cartas do jogo. E o coração suava cantado inspiração. Ele ganharia, tinha de ganhar!

Deixou-a na rotina apática. E ficou vigiando-a, esperando e esperando...

Ela, tão e tão leve, foi para seu quarto, tomar banho, dormir... Seu quarto.

Aquele quarto, aquela casa, eram dele. Às vezes ela esquecia-se de quão nula estava.

Logo após isso, Marco começa a escrever descontroladamente numa folha de papel toalha, na cozinha. Não tinha propósito que escrevia, apenas preparava a mente para a avalanche de palavras que deveriam estar por vir.

A cada frase escrita, manchando suas mãos de tinta, Marco se via tingindo o mundo. Cada pedacinho de papel se transformaria na nova realidade.

E assim que Karin pôs os pés dentro do quarto, já se sentiu menos morta e num perigo estranho. Será que acontecia a briga final? Tirou a roupa e foi tomar um banho.

E nua, cainhou sobre um tapete de remédios em frascos. Ignorou as giletes sobre a pia, a faca jogada atrás da privada...

Todos os objetos sussurravam e sussurravam “suicídio” de uma maneira tão obscena que só poderia ter sido uma armação dele!

E então ela que gargalhou! Tão e tão alegre num júbilo de sarro. Agora via o quão cômico ele era!

Ela havia ganhado. Estava livre!

Se algumas semanas atrás o cântico das lâminas teria sido fatal, agora nada mais era que uma terrível piada. Ela não ligava para aquele teatro, não desejava a morte, não queria morrer ou ser salva novamente por ele, poucos segundos antes de definitivamente abandonar esse mundo.

Ela estava livre.

Saiu do banheiro, trocou-se e juntou as poucas roupas numa sacola rasgada. Foi embora sem se despedir, voltaria a conquistar o mundo. Não lhe interessaria chutar cachorro morto – ela não era como ele. De tempos em tempos, tinha alguma dignidade.

E de tempos e tempos tinha sua recaída. Mas renascia. Sempre renasceria.

E quando ela saía e saía, com seus pés dançando e a mente leve, Marco via a si mesmo refletido pálido no espelho. Como se toda e toda a sua cor tivesse sido sugada pelo azulejo do banheiro. Aquele mesmo banheiro em que ela gozara de si.

E agora, mais do que nunca, se dava conta de que estava num tímido matadouro.

Que ele mesmo montara, mas se esquecera de nomeá-lo corretamente.

Eram as giletes espalhadas pela pia, uma pequena faca por detrás da privada. Frascos e frascos de comprimidos jogados pelo chão.

Era um vida inteira que ele queria que sumisse apenas para ser melhor revivida em suas folhas brancas.

Porque ela não fazia mais jus ao símbolo de si mesma. Não deveria estar viva e estragando tudo e tudo que já representou!

Deveria morrer para que ele a fizesse renascer ainda mais brilhosa. E sendo mártir, toda e toda a sua tragédia seria mais vívida!

Mas talvez as giletes tivessem feito seu trabalho. Cortaram a anestesia de uma mente entorpecida.

E Marco, ainda se olhando, vendo e sentido as giletes sobre as palmas das mãos apoiadas na pia, sentindo o frasco de remédio próximo ao seu pé, fechou os olhos e buscou aquela força suprema que vive e resiste dentro de si.

E rezou e rezou para um deus que ele mesmo reconhecia como uma auto percepção inflada de si mesmo. Ele chamou sua sanidade para atendê-lo. Para que ele pudesse evitar o cântico suave das laminas.

Ele forçou as palmas sobre a pia, imaginando senti-las cortar sua carne. Mas é pura ilusão.

E ele sabia que o que o impedia de usá-las para esfolar os próprios pulsos era o medo da morte, e não o chamado da racionalidade, a romantizada ideia de resistência.

Ele era apenas um covarde covarde covarde... que fechava os olhos para não ver os frascos – indolor, indolor...

E há apenas um quilômetro dalí, Karin sorria. Cada passo dado com a alegria de uma bailarina em sua dança principal.

Não se lembrava onde estava e nem o caminho da casa de seus pais, mas o que isso importava? Ao longe ela escutava uma voz forte bradar num microfone. Era só segui-la e segui-la. Encontraria o que buscava.


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Notas finais do capítulo

1. Trecho da poesia '1910' de Federico García Lorca.
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Enfim, isso é mais um projeto louco que tive vontade de escrever... gostei da experiência de escrevê-lo, só ainda não sei o que pensar sobre o resultado... Acho que não gostei muito.