Reflexofobia escrita por Pedro_Almada


Capítulo 1
REFLEXOFOBIA - o início




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REFLEXOFOBIA - o início

 

 

            A noite veio arrebatadora, afastando a luz da pequena cidade de Verdanna, em algum lugar no mapa que não faria diferença ser contado.

            Mas não era uma noite qualquer. Parecia mais negra do que todo o resto, como se nenhuma outra expectativa existisse abaixo do firmamento. As constelações se recusaram a iluminar os passos dos andarilhos da noite. Todos estavam à mercê da grande treva que engolia a cidade.

            Mas, entre tantos lugares para se viver naquela cidade, todos eram seguros. Exceto um.

            A escola de Verdanna era uma bela construção de época vitoriana, com duas torres nas extremidades, corredores, salas espalhadas. Uma construção de tijolos avermelhados erguido no fim de uma estrada de terra, onde todos os jovens da cidade freqüentavam. Os corredores eram largos, com janelas espaçosas e portas de madeira de se abriam com um rangido curioso. A entrada era um muro de concreto bem seguro, um portão de barras de ferro escuras e grossas, com adornos de querubins feitos de metal. Havia um pátio a céu aberto, com mesas de madeira uma fonte no centro, uma garotinha de pedra com um guarda-chuva.

            Mas o colégio de Verdanna não se resumia apenas a construções.

            As paredes respiravam.

            De dia, um lugar tranquilo e ideal para se estudar. À noite, o domínio de presenças desconhecidas, donos misteriosos de passos noturnos que vagavam pelas escadas e abriam portas sem nenhuma explicação. As janelas viviam fechadas. Diziam que, quem quer que perambule por lá a noite, não gosta da brisa noturna.

            Como toda lenda urbana, existem os céticos. Mentes que não confiam em nada que não vejam, mentes ignorantes ao medo.

            Do lado de fora, quatro garotos, cerca de dezesseis anos cada um, esperavam, apreensivos, do lado de fora. Esperando por alguém.

            - Ele já entrou faz algum tempo – murmurou o mais alto do grupo.

            - Aposta é aposta, pessoal – falou um deles em defesa própria.

            - É loucura...

            Um dos garotos não parecia disposto a falar. Estava distraído, seus olhos fixos na construção imponente. Havia uma leve camada de névoa cobrindo o pátio, rodopiando e subindo vagarosamente, cobrindo o segundo andar.

            - Ela sabe que o Victor entrou – murmurou o garoto.

            Os olhos dos outros três acompanharam o amigo, assistindo a névoa crescente.

            - Isso é névoa? – perguntou um deles.

            - Não – o outro disse com voz trêmula – a casa está com frio. Victor deixou uma janela aberta.

           

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            O corredor principal que dava direto à entrada se dividia logo mais a frente, para a esquerda e direita. As primeiras portas eram a diretoria, secretaria, tesouraria e outras “ias” que faziam da escola um instituto de ensino. Mas, naquele momento, Victor não se importava com toda o procedimento. Estava mais preocupado em encontrar o espelho, tirar uma foto e dar o fora.

            Sua testa estava úmida. Um suor frio começou a atravessar os poros de sua pele. Os cabelos, úmidos de suor, começaram a gotejar. Victor levou a manga da camisa à testa, enxugando o suor. Estranhamente, sentia um calor sem nenhuma origem.

            Seus passos se demoraram no corredor principal, atento aos movimentos. No instante em que colocara os pés ali, sabia que não era bem-vindo. Alguém ali o queria longe. Mas precisava pagar a aposta. Seria rápido, sem demora.

            - Com licença... – Victor valou num sussurro – sinto muito incomodar... Eu só quero tirar uma foto do espelho.

            Ele esperou por uma resposta. Suspirou, sentindo-se um idiota. Conversar sozinho era o início da beira à loucura. Continuou caminhando, sentindo a tensão passar por todo o seu corpo.

            Seu tênis fazia um leve “inhec” a cada passo, seus olhos atentos fitavam todas as portas. Sentiu o medo dominando-o, tornando-o submisso aos sentimentos de pavor. Mas já estava ali, não podia voltar, ou seria motivo de chacota. Como se isso fosse mais importante do que continuar vivendo.

            Chegou ao fim do corredor principal. A cada passo suas opções diminuíam, e sua única alternativa era continuar.

            Victor lançou um último olhar à porta de entrada. Seus olhos ficaram vidrados por um momento.

            Havia alguém do outro lado. Um vulto era claramente visível pelo vidro opaco. As luzes fracas do poste do pátio mostravam que alguém, provavelmente uma criança, esperava do lado de fora. Esperava. Ou vigiava. Era difícil entender.

            Victor chacoalhou a cabeça. Era fruto de sua imaginação. Seus olhos pousaram novamente na porta.

            Não era imaginação. A figura ainda estava lá. Então ela se moveu. Sua mão tocou o vidro. Victor podia ver claramente a palma da mão rosada.

            Se não era imaginação, iria fingir que não estava vendo nada.

            Virou as costas, ignorando a porta de entrada e a estranha figura. Tomou o corredor da esquerda, caminhando silenciosamente, engolindo em seco. Havia alguém respirando. Não era ele. Correu até o corredor principal e lançou um rápido olhar novamente à porta de entrada. Ela ainda estava lá.

            Então havia mais de um dentro da escola.

            Andar não era a coisa mais inteligente a se fazer, já estava óbvio. Começou a correr. O medo era tão real quanto ele próprio, suas mãos apertaram a câmera digital que tinha e a lanterna, suas únicas armas. Correu pelo corredor da esquerda, enquanto fitava, alarmado, as janelas imensas. Vários vultos refletidos pelas vidraças. Não apenas um. Crianças. Todos eram crianças. Mas estavam lá. Victor, definitivamente, não estava sozinho. A solidão era bem tentadora naquele momento.

            Empurrou a porta da escada, sem olhar para trás. Na pressa acabou deixando sua lanterna cair, espatifando-se em vários pedaços. Victor não se deu ao trabalho de conferir o estrago, seus pés se lançaram nos degraus e se moveu rapidamente até o segundo andar. Apertou os dedos em volta da máquina digital, desejando sair de lá o mais rápido possível. “Uma foto”, murmurou, “Apenas uma”.

            Finalmente alcançou o patamar superior. Trêmulo, seu suor escorria por todo o corpo. Sentiu sua camisa encharcada, sua meia dentro do tênis estava úmida. Todo o seu corpo gemia de medo. Estava perto.

            Havia um outro corredor longo, que se dividia na metade do caminho para a esquerda. Ele respirou fundo. Começou a caminhar apressadamente. Ouvira passos. Não eram os dele. Ignorou completamente. O medo o havia sedado, mutilado sua capacidade de raciocinar. Tudo o que tinha em mente era chegar ao espelho, tirar uma foto, e partir. Para qualquer lugar.

            Chegou ao fim do corredor. Havia mais um. Ele não se lembrava de outro corredor. Continuou a caminhada. Virou a direita, e depois à esquerda. Por um momento achou que estivesse perdido, mas logo se localizou. Estava bem perto agora.

            No fim do corredor havia uma porta de madeira pintada de cinza, com uma dobradiça grande, obsoleta para a época.

            Victor aproximou-se vagarosamente. Toda a história da lenda urbana se passara em sua mente. A criança que morrera de frente ao espelho, amargurada, chorando até a desidratação do corpo. Dizem que, se olhar bem, é possível ver uma cortina espelhada no banheiro, formada pelas lágrimas da jovem.

            Victor nunca acreditara em nada do tipo. Mas, naquela noite, havia percebido que estivera redondamente errado, seu ceticismo o deixara vulnerável a uma situação como essa.

            A mente que tem medo pode prever o próximo passo. Mas a mente desprovida do medo, ao se deparar com uma situação de pânico, perde a noção da sua realidade, e é devorada pelo pavor, sem nenhuma misericórdia.

            O garoto avançou mais alguns passos. Estava de frente à porta. Havia uma placa amarela escrito “interditado”. Aquele banheiro não era usado há mais de vinte anos, quando a garota morrera. Muitos estiveram ali durante o dia, provando sua coragem. Mas a noite, não. Victor era o primeiro. Estava com calor. O suor não parava de ser despejado em seu corpo. Ele caminhou até uma das janelas e abriu-a. Uma leve brisa invadiu o corredor. Mas não havia luz alguma para entrar no recinto. Era apenas escuro. Apenas isso.

            Com a mão trêmula, forçou a porta. Ela se abriu com um rangido perturbador. Parecia o choro de uma criança. Victor sentiu os cabelos de sua nuca se eriçarem. Mas não parou. Com a porta aberta, fitou o banheiro abandonado.

            Vasos sanitários amarelados, uma porta de box quebrada, os azulejos, antes brancos, agora manchados de amarelo. Um cheiro forte de urina e fezes rodopiava no ar, dando ao ambiente a pior sensação que Victor já experimentara. Na parede do canto, tudo o que precisava.

            Um espelho oval, uma moldura de madeira, rachaduras leves. Victor engoliu em seco, encarando o próprio reflexo. Seu maxilar simplesmente não conseguia parar de tremer, seus dentes batiam um no outro, sentindo um frio súbito e arrebatador consumir cada centímetro do seu corpo, paralisar os seus músculos acovardados.

            Ligou a máquina digital, ativou o flash e, apontando para o espelho, disparou. A luz ricocheteou as paredes, iluminando o banheiro como um relâmpago. Victor não notara um rosto estranho ser iluminado, logo atrás dele.

            Tirou uma foto, depois outra. Estava começando a esquecer o medo, quando sentiu uma gota acertar o seu nariz.

            Ele estremeceu, passou a manga da camisa no nariz e olhou para cima. Uma outra gota começara a se formar. E depois outra.

            As gotas começaram a brotar do teto, como... Lágrimas.

            Uma caiu em seu olho. Victor esfregou fervorosamente com a mão, sentindo o pânico dominá-lo outra vez.

            Fitou o espelho. Havia uma mão. Do “lado de dentro”. O vidro estaav embaçado por uma névoa que não notara chegar. A palma de uma pequena mãozinha pálida estava apoiada no lado de dentro do espelho. Victor se virou. Não havia ninguém, apenas o reflexo.

            Mais gotas caíram.

            Victor sentiu medo, mas naquele momento ele sabia. Não adiantava correr. Estavam vigiando as portas, certificando-se de que ele não sairia dali. Nunca mais.

            Ele fitou o próprio reflexo. Mas o que via não coincidia com a realidade.

            Seu rosto estava pálido, como um cadáver, uma linha de sangue escuro escorria de seus olhos. Sua boca aberta dava espaço para moscas escaparem.

            A porta rangeu, fechando-se, fazendo o ruído do choro.

            Victor deixou a máquina cair. Fechou os olhos e esperou. Estaria morto em questão de segundos

 

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            Do lado de fora, os amigos ouviram o grito do amigo, um grito de pavor e pânico. Victor não voltaria com a prova de sua coragem.  


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Notas finais do capítulo

reviews, xD