Sombras do Passado escrita por ColorwoodGirl


Capítulo 1
Entorpecido




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Entorpecido. Inerte. Sonolento. Inativo. Desligado. Bêbado.

Todas essas eram palavras que poderiam descrever com bastante exatidão Haymitch Abernath, vencedor da 50ª edição dos Jogos Vorazes (vulgarmente conhecida como o 2º Massacre Quaternário) e posteriormente mentor de dezenas de crianças que foram para a morte certa naquelas arenas malditas. Mas não mais.

Oh não, agora havia paz em toda a Panem, dignidade e condição para todos os distritos e novos sonhos para todos que sobreviveram e quiseram recomeçar.

Peeta e Katniss, amantes desafortunados já não mais, agora viviam juntos na casa que primeiramente foi dela, desfrutando da vida a dois da melhor maneira que os pesadelos e cicatrizes permitiam. Malditos bastardos, que ouvissem logo seu conselho e se afogassem no único remédio que podia impedir isso: a bebida.

Mas não, ah não... Os cretinos insistiam que o amor era o único remédio capaz de curar todas as feridas que os Jogos e a Revolução fizeram no íntimo de cada um daqueles pobres “vitoriosos”.

E essa bendita gravidez da Garota Em Chamas (que atualmente estava mais para Garota de Açúcar) só piorava essas ideias nos dois.

“Haymitch, até eu deixei meus demônios para traz e abracei tudo que a vida pode me ofertar. O que te impede de fazer o mesmo?” Questionou a bolota que atualmente era o tordo, sentada ao seu lado enquanto observavam os gansos, à espera de mais um carregamento de bebidas.

“E o que a vida tem a me oferecer, querida bolotinha?” Ele resmungou irônico, a voz pontuada pelo nervosismo e irritação que só a sobriedade lhe trazia.

“Effie.” A pequena palavra, com apenas cinco letras e duas sílabas, foi o suficiente para lhe arrepiar até os últimos fios de cabelo da nuca. Aquele nome era quase um tabu.

Podia ser hipócrita e mentir, dizendo que a presença dela não afetava de maneira alguma; mas qualquer um que possuísse meia vista em um dos olhos e pelo menos dois neurônios jamais acreditaria.

Seu humor ácido se tornava menos insuportável quando ela o rodeava, talvez porque as piadas maldosas viessem pontuadas por algum sentimento além do desprezo e descaso; se tornava mais firme e decidido, mais altivo.

Praticamente outro Haymitch, essa era a verdade.

“E o que a boneca da Capital tem a ver comigo, tenha a gentileza de me explicar.” Ele pediu, arremessando um pedaço de pão que deveria cair em frente ao ganso, mas na verdade o acertou em cheio na cabeça, deixando o pobre animal um pouco desorientado. “Não reclame, Filomena, fiquei com preguiça de ir à padaria buscar pão novo, se contente com o velho.”

“Tem um padeiro morando do outro lado da rua.” Katniss lembrou sutilmente, rindo da reação do antigo mentor à menção do nome de Effie.

“Ótimo, então vá lá e peça que ele encha sua boca de pão de queijo, assim você parar de me torrar. Volte em cinco dias, quando eu já estiver bêbado.” Ele se levantou bruscamente, indo para o interior da sua imunda casa.

O casal alegria até havia tentado limpar o local algumas vezes, mas haviam desistido depressa. Ninguém em sã consciência insistiria em limpar aquele lixo, especialmente com o empenho excepcional do dono do local em sujá-lo de novo o mais depressa possível.

Subiu até seu quarto, se jogando na cama. Raramente subia até lá e jamais havia deixado que Peeta e Katniss passassem da escada. O segundo piso era limpo e organizado, em grande parte pela desutilização. Mas havia outro motivo que não o deixava ir até ali.

Porque era naquelas paredes que o fantasma dela estava. O encarando com os olhos triste e sem vida, como que esperando que ele viesse novamente segurar sua mão enquanto ela morria.

Maysilee Donner. Seu primeiro amor. Sua inimiga. Sua aliada. Novamente sua inimiga. Seu eterno fantasma e pesadelo.

Não sabia contar quantas vezes a havia admirado, enquanto ambos eram crianças. Ela e sua irmã gêmea desfilando pela parte nobre daquele distrito podre e fétido, enquanto ele vivia à margem da pobreza e escuridão.

Nem em seus mais loucos sonhos em havia sonhado em um dia cruzar com aquela garota, falar com ela, se aproximar dela. Se contentava apenas em observá-la de longe e ouvir um ou outro boato na Costura, como era muito comum entre as velhas mais fofoqueiras. Sua mãe dizia que os ricos sempre geravam boatos, por qualquer motivo que fosse, simplesmente porque eles eram ricos.

Até o dia daquela maldita colheita e daquele maldito massacre. Já não era horrível o bastante que duas crianças do distrito fossem encaminhadas para a morte certa, os vagabundos resolviam dobrar o número. E como desgraça pouca é bobagem, ele foi enviado para essa maldição.

E ela também.

Talvez por isso se solidarizasse tanto com Peeta em relação ao seu desejo de proteger Katniss, e tivesse torcido e se esforçado tanto para ajudar os dois. Sabia melhor do que ninguém o que era deixar a pessoa que amava com o corpo aberto e sem vida na arena.

Porém, diferente do jovem padeiro, ele não lutou pela vida da amada. Se manteve distante o quanto pode, para se assegurar que não houvesse culpa em suas mãos quando ela se fosse, nem que houvesse culpa nas dela quando chegasse seu fim. Era forte e esperto, mas não imune aos malditos carreiristas.

Mas a maldita tinha que salvá-lo. Era impressionante o quanto usava a palavra maldita ou maldição, mas era como se sentia em relação à tudo em sua vida. Fora amaldiçoado naquela arena, quando aquele dardo impediu sua morte e sua paz eterna.

Conheceu Maysilee de perto, conversou e a observou dormir, sentiu seu cheiro que mesmo naquelas condições nojentas era maravilhoso. Acreditava que poderia ter se apaixonado ali mesmo, naquelas condições e situação, caso já não fosse apaixonado por ela antes.

E então encontrou o que procurava: o fim. Tudo tem um fim, essa era sua grande certeza. Amizades tem um fim, amores tem um fim, a vida tem um fim, então aquela arena tinha que ter um fim e lá tinha que ter algo. No primeiro momento não descobriu nada, além do fim daquela aliança e da chance de ter estado perto dela.

Cada vez que fechasse os olhos, poderia ouvir claramente os gritos desesperados dela, sendo atacada por aqueles pássaros que só poderiam ser crias de um demônio como o homem que governava Panem. Poderia ver seu corpo estirado e sentir sua mão se tornando mais fria entre as suas.

Não pudera salvá-la. Não tivera a coragem de Peeta e Katniss de salvar um ao outro, ela mesmo quando não sentia algo tão forte pelo garoto, e Maysilee morrera em suas mãos. Tudo o que ele tentara evitar, havia acontecido.

“Me desculpe, Maysilee, eu sinto muito.” Choramingou sentado na cama, encarando o vão da porta. Podia jurar que sempre havia um volto ali, e ele sabia com certeza que era ela. O observando, julgando, culpando. “Eu não fui como o Peeta.”

“Ninguém nunca pediu que fosse.” Se espantou ao finalmente receber uma resposta aos seus pedidos de desculpa, até ver Effie entrando em seu campo de visão, espantando o vulto. “A porta estava aberta e não vi ninguém lá embaixo.”

“Se não estava lá, talvez não quisesse ser incomodado.” Rosnou ele, desviando os olhos, parecendo um adolescente mimado.

“Você é quem sabe, Haymitch. Eu só vim trazer seu carregamento de bebida.” Ele a encarou confuso. “Resolvi visitar Peeta e Katniss, já aproveitei a viagem e resolvi lhe ajudar um pouco, querido.”

“É, hã, muito gentil de sua parte, Effie.” Agradeceu sem jeito, os dois logo caindo no silêncio. “Sobre o que você ouviu...”

“Eu sempre suspeitei, para ser honesta. Eu sempre fui uma fã fervosa dos jogos, você sabe, e o Massacre Quaternário daquele ano foi, aos meus olhos na época, formidável. Foi naquele ano que resolvi que queria trabalhar na organização deles, porque os achava um espetáculo fascinante. Claro que a coisa muda um pouco de figura quando você se envolve com os participantes, mas na minha cabeça de criança não era bem assim.” Ela começou a tagarelar, andando distraidamente pelo cômodo. “Creio que você e Maysilee foram um dos primeiros ‘casais’ a ter torcida nos Jogos. Era apaixonante ver a relação de vocês, leve apesar de tudo; a maneira como se olhavam dormir era adorável. E sua reação quando ela morreu... Bom, eu chorei muito quando você segurou as mãos dela e esperou que ela morresse, sem deixá-la só.”

“Fico felizes que tenhamos lhe dado um ótimo entretenimento e uma profissão futura, isso deixa tudo mais fácil.” Ele replicou seco, irritado por ouvir alguém falando daquele inferno de forma tão apaixonada.

“Ora, Haymitch, largue de ser tão turrão. Fomos criados de formas diferentes e víamos os Jogos de formas diferentes. Você sabe o quanto minha opinião mudou após entrar intimamente nesse mundo, você estava lá quando aconteceu.”

“Você diz quando os primeiros tributos que você acompanhou morreram?” Ela confirmou, ficando de olhos marejados. “Susan, doze anos recém-completos.”

“Jordan, onze anos feitos uma semana antes da Colheita.” Ela completou, suspirando. “A dupla mais jovem que tivemos.”

“Não sobreviveram nem à Cornucópia.” Ele concordou, encarando o nada. “Duas crianças com uma vida de miséria e sofrimento pela frente, morrendo de uma forma tão cruel e desumana.”

“O que naqueles tempo não era cruel e desumano?” Questionou a mulher, o encarando.

“Faça-me o favor, Effie. Você viveu no luxo a sua vida inteira, regada de mordomias e bajulações. Se divertiu por anos vendo crianças sendo mortas e torturadas, sofrendo os piores horrores em uma arena e achando tudo lindo.” Haymitch se levantou gritando. “Uma garota incrível como a Maysilee morreu com um sofrimento horrível, enquanto gente como você brindava com o champanhe e escolhia outro favorito.”

“Então é por isso que você me odeia, Haymitch? Porque gente como eu foi responsável pela morte da sua doce Maysilee? Não me lembro de ter estado na arena.” A, no momento trajando uma peruca lilás, retrucou aos gritos.

“Mas aplaudiu e comemorou, mostrando para babacas com o Snow o quanto gostava daquilo. Se fosse por vocês, até hoje teríamos crianças morrendo nas arenas; enquanto vocês comiam e vomitavam, e os distritos passavam fome.”

“Eu não vou mais discutir com você, Haymitch, eu vou embora.” Effie começou a se encaminhar para a porta, mas ele a segurou pelo braço, nervoso.

“E sabe por que eu te odeio mais do que tudo, Effie? Porque você desperta em mim os sentimento que eu jurei que nunca mais teria após ter visto Maysilee morrer. Porque em meio a toda aquela Rebelião, quando eu deveria me focar em ajudar Katniss e Peeta, eu só conseguia pensar em você e se estava bem.” Ele sibilou pausadamente, observando os olhos marejados dela. “Acho que Peeta e Katniss me infectaram com seu vírus estúpido, porque eu to imbecil.”

“A-acho que essa foi a declaração mais ridícula que já ouvi.” A mulher conseguiu sussurrar após vários minutos, vendo-o rir com escárnio.

“Se queria um buquê de flores e serenata, ficasse com o Peeta. O máximo que posso fazer é te olhar enquanto você dorme e te deixar alimentar os gansos comigo.”

“E enchendo a cara de bebida?”

“Se você prometer ficar ao meu lado e afastar os pesadelos, eu prometo não tocar mais naquelas garrafas.” Ele soltou o braço dela e enlaçou sua cintura.

“Você pareceu o Peeta falando agora.”

“Oh merda, que se dane.” Ele rosnou, acabando com a distância entre seus corpos e selando seus lábios em um beijo que fora excepcionalmente esperado.

E não havia como saber que aquele final seria feliz, mas Haymitch sabia, lá no fundo, que ela poderia lhe proporcionar muita felicidade antes que chegasse o final, dessa vez, o de sua vida.


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Notas finais do capítulo

Heeey peanuts, nunca havia postado fic de THG nesse perfil, só no WaalPomps. Particularmente gostei do resultado dessa história.
Estava relendo Em Chamas quando cheguei a parte que falam sobre a ida do Haymitch à arena e tudo o que havia acontecido lá; e não sei vocês, mas para mim ficou esse climinha entre ele e a Maysilee no ar. Senti um pouco de Everlark no lance deles, por isso existem algumas semelhanças.
E ao longo dos livros e filmes, é possível ver as reações da Effie de horror à tudo o que acontece, indo contra os arquétipos que a cercam desde que nasceu. Quis explorar isso na história.
Enfim, foi isso que saiu. Espero que tenham gostado e fiquem de olho, logo teremos mais fics de THG. Se quiserem, curtam a página das minhas fics no face, estou sempre avisando por lá quando vai ter fic nova.
https://www.facebook.com/fanficswaalpomps
See you peanuts



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