Elephant in the Room escrita por SatineHarmony


Capítulo 1
Capítulo Único




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John Watson franziu o cenho em preocupação ao ouvir as notas musicais melódicas que inundavam o andar térreo do prédio 221B da Baker Street.

Um canto da sua mente decidiu recordá-lo da última vez em que presenciara o violino de Sherlock soar canções tão tristes — naquela época, A Mulher, Irene Adler, tivera sido a causa do transtorno de seu melhor amigo. Quase de forma automática, começou a trabalhar em possíveis razões da mudança repentina de comportamento do detetive — clientes entediantes?, Mycroft?, New Scotland Yard?

Talvez John estivesse apenas pensando demais, como lhe era de praxe — por mais que, de acordo com Sherlock, coisas como "pensar demais" não existissem. Fechou a cara: Sherlock. Ele era o motivo pelo qual John viera a Baker — o filho da mãe ousara ir embora cedo da festa do seu casamento sem nem sequer despedir-se.

Seguiu para as escadas, ajeitando inconscientemente a sua postura, preparando-se para o que quer que estivesse por vir — John passara mais de duas semanas isolado do mundo, aproveitando a presença de sua esposa na lua de mel, e agora ele não sabia o que o esperava do outro lado da porta.

Como se estivesse esperando uma deixa, a melodia que ecoava pelos corredores mudou drasticamente, adotando um tom mais alegre e entusiasmado, no que parecia ser uma tentativa de incentivar John a entrar no apartamento. Anos morando com Sherlock expandiram razoavelmente o seu conhecimento de música clássica, e um pequeno sorriso se formou em seus lábios ao reconhecer a peça — As Quatro Estações, de Vivaldi.

John permitiu que os agudos da primavera adentrassem seu ser, encontrando coragem para girar a maçaneta sob suas mãos.

* * *

Irritação.

Mãos tremendo incontrolavelmente — fechá-las em punhos ajudara miseravelmente em reprimir as palpitações; em breve suas palmas estariam marcadas pelas suas unhas.

Frustração.

Sobrancelhas franzidas em um eterno desgosto do qual desconhecia sua origem. Mesmo após mudar sua expressão facial, a sensação de que algo estava errado persistira.

Confusão.

Seu olhar era incapaz de se fixar em um ponto, vagueando por todos os objetos e cantos do cômodo no qual se encontrava. Ele era incapaz de concluir uma linha de raciocínio sequer.

Tristeza.

Ao ver-se no espelho, seus olhos — oh, sua mãe os elogiava tanto — mostravam um vazio incompreensível. Cá estava ele, deduzindo tudo a sua volta, sua mente a mil tentando encaixar as peças do quebra-cabeça — portanto por que ele aparentava estar tão... Sem vida? Bufou de desprezo deste pensamento idiota que passara por sua mente.

Aproximou-se de seu reflexo a tal ponto que sua respiração embaçara a superfície de vidro — não importava de qual distância ele visse, a imagem à sua frente era imutável. Desistiu de se encarar no espelho — apenas pessoas narcisistas e desocupadas podiam dar-se ao luxo de desperdiçar tempo de forma tão frívola —, e seguiu para a sala de estar. Seus passos foram interrompidos por um móvel em especial: a poltrona de John. Agindo de impulso, sem pensar — algo raro para si —, rumou até a mesma e sentou-se.

Sherlock inspirou fundo, forçando seus olhos a fecharem-se na esperança de que assim a sua dor de cabeça passasse. Péssima ação: uma vez que sua visão não estava mais disponível, seu olfato pareceu prevalecer sobre seus outros sentidos, e o odor de John impregnou-o — cheiro de espuma de barbear e sabonete antibacteriano barato. Seu aperto nos braços da poltrona intensificou-se, e seus dedos dormentes formigaram em resposta ao movimento brusco. Enterrou seu rosto no encosto da poltrona, sendo envolto por aquele perfume doméstico e cotidiano, comum de seu amigo. Amigo. Amigo não, John especificara em seu casamento que eles eram melhores amigos.

Melhores amigos.

Seu cérebro reagiu de forma negativa, e Sherlock pôde notar que ele próprio instintivamente torcera o nariz em reprovação ao status de seu relacionamento com John.

Como? Sherlock parou todas as milhares de linhas de raciocínio que sua cabeça percorria naquele momento, para encontrar concentração suficiente para rever seu pensamento anterior: relacionamento? John? Amizade? Novamente lhe foi mostrado um certo repúdio por parte de sua mente em relação a tal combinação de ideias.

Por quê?

Eu me considero casado com o meu trabalho.

O sorriso que ele dera na primeira vez em que vira a expressão maravilhada de John diante de suas deduções.

Eu estaria perdido sem o meu blogger.

O orgulho que sentia quando John dava-lhe ajuda vital em algum caso.

É você. Sempre foi você. John Watson, você me mantém decente.

O seu discurso emocionado de padrinho durante o casamento de John.

Você aparenta estar triste quando pensa que ele não pode te ver, a voz de Molly ecoou em sua mente. Molly, quem sempre observara Sherlock. Molly, quem o conhecia melhor do que ele mesmo. Molly, quem previra tudo isso e tentara alertá-lo com uma simples frase: Você aparenta estar triste quando pensa que ele não pode te ver — triste por quê? Por sua morte ser iminente, ou pela consequência de nunca mais poder ver John novamente?

— Não, não, não! — Sherlock levantou no ímpeto da poltrona, rezando para que, gritando alto, seu cérebro parasse de jogar na sua cara suas próprias palavras.

Ele sentia-se um idiota ao rodar em círculos a sala, sem saber o que fazer. Quase suspirou de alívio ao avistar o seu violino sobre uma das mesas, pronto para ser tocado — que canção um momento perturbante como esse pedia? Bach, com certeza, Bach.

Porém parecia que música não era suficiente para afastar seus fantasmas: Mary, dizer que você é digna deste homem é maior elogio que eu posso lhe oferecer, sua mente soprou em seu ouvido de forma irritante e intrusiva.

Mary. Ela trouxe felicidade de volta à vida de John quando este acreditava que Sherlock estava morto. Graças a ela, ele conseguira finalmente ter a vida "normal" que tanto desejava secretamente — sim, John era atraído pelo perigo, porém no fundo tudo o que ele sempre quis foi ser igual aos outros. Igual aos outros que não foram à guerra, que não viram as coisas terríveis que ele viu.

E agora Sherlock estava irritado, pois sabia que, ao lado daquela mulher, John nunca exploraria todo o seu potencial.

O arco em sua mão movia-se com agilidade e raiva sobre as cordas do violino, e só então o detetive conseguiu afastar-se de seus pensamentos confusos o suficiente para escutar a melodia que soava de seu instrumento. Ele não reprimiu a careta que apareceu em seu rosto — o que diabos era aquilo que ele estava tocando? Era algo irritado, vingativo, completamente inconsequente. Bach se tornara órfão quando era apenas uma criança, teve sua esposa morta e perdera três filhos; suas músicas eram tristes, e não raivosas — ele se sentiria insultado pela forma como Sherlock ousara tocar uma de suas peças. Baixou seu violino no sofá, resignado.

Ele era praticamente capaz de perceber os sentimentos correndo em suas veias, sendo guiados pela maldita ocitocina, intoxicando o seu sistema — dilatando suas pupilas, aumentando o ritmo de seu pulso.

Sherlock Holmes cometera O Grande Erro Humano.

Apaixonar-se.

* * *

Ele não sabia ao certo quanto tempo se passara desde que tivera a sua realização desconfortável, porém a ausência de Lestrade pedindo-lhe ajuda com casos fora o suficiente para Sherlock isolar-se do mundo externo — claro que talvez o fato de ele estar ignorando os pedidos de seus clientes tenha contribuído para isso. Agora, mais calmo, ele era finalmente capaz de tocar a chacona de Bach com dignidade.

O arco do violino deslizou milímetros em sua mão direita quando seus ouvidos captaram o familiar ranger dos degraus que levavam ao andar onde ele se encontrava. Eram passos hesitantes, porém decididos; o som era mais alto do que o usual, indicando que era uma pessoa mais pesada do que a Sra. Hudson — provavelmente um homem adulto. Em outras palavras: John.

John.

Suspiro.

Sherlock já sabia o que o esperava; John obviamente não estava ali apenas para agradecer-lhe pelo seu incrível discurso como padrinho. Quais eram os mais possíveis tópicos de conversa entre um recém-casado de volta de sua lua de mel com seu melhor amigo? Sua mente começou a enumerar teorias — contar como a viagem com sua esposa fora?, não, John preferia manter informações de cunho sexual confidenciais; falar sobre a recepção do casamento?, não, este era um assunto trivial demais até mesmo para John; comentar sobre como seu melhor amigo sociopata fora embora mais cedo da festa do casamento do qual ele era padrinho?

Talvez — talvez — a última possibilidade fosse a mais provável.

Preparando-se para a lição de moral que viria a seguir, Sherlock decidiu munir-se do que tinha em mãos: seu violino. Parou abruptamente as notas melódicas e sofridas de Bach, substituindo-as pelos animados agudos de Vivaldi que compunham o início da primavera — ele tinha perfeita consciência de que John gostava dessa peça em particular; mais de uma vez o pegara andando pelo apartamento assobiando distraidamente a canção. Virou seu corpo para a janela mais próxima, apreciando a vista com um olhar dissimulado.

A maçaneta cedeu sob o toque de John, e som algum denunciou a sua entrada no cômodo. Ele adotou uma postura rígida, comum de seu tempo no exército, e fechou a porta atrás de si.

— Olá, John. — Sherlock o saudou de costas, sem cessar a música. Ele não gostava de ser o primeiro a falar durante as conversas entre eles dois — exceto quando ele precisava de John para algo, claro —, mas as atuais circunstâncias levantaram-lhe suspeitas de que caso não o fizesse, John iniciaria uma discussão gritando a todo vapor.

— "Olá, John"? — a voz do médico possuía um tom cético. Sherlock não precisava ver seu rosto para saber que ele erguera as sobrancelhas em descrença e irritação — Claro que agora você me cumprimenta, não é? — bufou — Sabe, você poderia ter feito isso antes de ir embora da festa do meu casamento sem mais nem menos. — Sherlock detestou a forma como o pronome possessivo usado pelo seu amigo chamou sua atenção.

O detetive não respondeu de imediato, permitindo que um minuto de "silêncio" se instalasse entre eles — silêncio entre aspas pois a alegria da primavera continuava a emanar do seu violino. Tocar a melodia de fato havia sido uma tática razoavelmente eficaz — John não estava gritando tanto assim, apenas falando com certa rispidez e fervor. Sherlock decidiu recorrer ao plano B:

— Como foi o seu feriado sexual?; quero dizer, lua de mel? — ele se certificou de que estava vestindo sua usual fisionomia neutra quando se virou para John, finalmente permitindo que seu rosto fosse visto.

— Isso não funciona comigo, eu não vou deixar que você mude de assunto. — John cruzou os braços sobre o peito, mostrando resistência. Plano B falhou, notou a mente de Sherlock. — Eu admiro você ter se comportado de forma tão... Adequada durante o casamento...

— Resolver um crime durante um casamento é algo considerado adequado? — Sherlock ergueu uma sobrancelha, e sentiu a tensão esvair minimamente ao ver um pequeno sorriso formar-se no rosto de John.

— Sim, para nós é. Enfim — tornou-se sério novamente —, você pode ter agido feito uma criança bem-comportada durante o casamento — Sherlock resistiu ao impulso de revirar os olhos diante do termo infantil —, porém isso não significa que eu ficaria quieto com o seu desaparecimento durante a festa! — dessa vez a voz de John não estava mais exasperada; ele estava seriamente chateado, quase decepcionado. — Eu te avisei, aquele era o dia mais importante da minha vida — estreitou seus olhos ao falar isso, como se desafiasse Sherlock a declarar o contrário —, e eu queria que todos que eu amo estivessem lá comigo o tempo inteiro. Eu... — trincou os dentes em meio à melodia alegre de Vivaldi, exasperação tomando conta de si — Pare de tocar essa porcaria, eu não consigo pensar!

Dessa vez Sherlock permitiu-se ser imaturo, abrindo um mínimo sorriso irônico enquanto seu arco riscava as cordas do violino com mais ferocidade, aumentando a intensidade das notas musicais no ar.

— Tantas coisas para se preocupar e você se foca nisso. — desprezo era claro no tom de voz de Sherlock. — Não é estranho que o seu amigo sociopata e antissocial foi embora cedo de uma comemoração insignificante que serve apenas para provar a incapacidade das pessoas comuns de conviverem sós? — uma das coisas da qual John não se orgulhava era ter ensinado sarcasmo a Sherlock. Claro que o detetive já usufruía desse recurso da linguística antes de conhecê-lo, porém era de forma inconsciente. Usando-o com todo o poder de seu tom ácido e petulante, ele era capaz de destruir pessoas em segundos.

— Eu pensava que você seria capaz de passar pela tortura da festa por mim. — murmurou, exasperado. Por que Sherlock não conseguia notar a gravidade da situação? Padrinhos não podiam sair do casamento no meio da festa, isso era impróprio. John sentira-se mais insultado por isso do que por todos os xingamentos dos quais Sherlock já o rotulara.

— Eu nunca tinha notado antes essa sua tendência de abusar dos favores oferecidos por terceiros. — observou o detetive num tom pensativo.

— Por favor, olha quem está falando. — John revirou os olhos — É você quem me faz atravessar a cidade inteira apenas para pegar uma caneta para você.

— Você atende aos meus chamados a seu próprio risco, John. Depois de tanto tempo eu achava que você já teria percebido isso. — Sherlock bufou de desprezo ao argumento inválido do outro. Este fingiu não escutá-lo:

— E não aja como se ser meu padrinho fosse um favor! — Sherlock viu John fechar suas mãos em punhos. Então ele está muito bravo, de fato. O que eu disse de errado? — Foi uma honra ter ocupado um cargo de tal responsabilidade, você deveria estar feliz por eu me importar tanto com você! — Mais isso não é suficiente, uma voz irritante sussurrou no fundo da mente de Sherlock.

— Se você veio até aqui buscando discutir apenas sobre isso, então eu recomendo que vá embora, porque eu não desperdiçarei meu tempo com algo tão estúpido. Use seu cérebro e veja como eu agi durante todos esses anos; ter ido embora do seu casamento não é a coisa mais "inadequada" que eu já fiz. E depois daquela recepção cheia de sentimentalismo por causa do discurso e do assassinato, tudo o que eu queria era voltar a ser eu mesmo. — Sherlock estava quase sem fôlego ao terminar de falar.

A última parte em especial afetou John; ele se esquecera completamente do quão inumano Sherlock era. A sua volta depois de sua "morte", o casamento com Mary e o bebê fizeram com que ele se esquecesse de como eles dois eram no início — a forma como Sherlock costumava chamá-lo de idiota com total sinceridade; agora havia um mínimo tom divertido nos seus insultos. John observou a forma como Sherlock estava falando — eram jatos de palavras, pensamentos interrompidos e confusos misturados uns aos outros —, e o jeito como ele parecia andar de forma compulsiva no pequeno espaço disponível à janela. Sherlock não estava agindo como si mesmo, e não seria nada bom pressioná-lo acerca o casamento. Portanto John decidiu fazer algo que ele sabia que o detetive secretamente gostava: surpreendê-lo.

— É, eu suponho que você esteja correto, Sherlock. — cedeu subitamente, sentando sobre a sua poltrona, apoiando o queixo sobre suas mãos enquanto observava a reação do outro. O breve olhar desconfiado de Sherlock não passou despercebido por John, porém o moreno logo tratou de pôr sua máscara e esconder quaisquer outras emoções. Apesar do que todos diziam, John sabia que Sherlock era humano e possuía sentimentos, por isso não se deixou enganar pela inexpressividade alheia: — Afinal de contas, você nunca se sentiu confortável nesses eventos sociais, então o fato de você simplesmente ter ido à cerimônia é suficiente. — agora não havia fingimento, John sentia-se gratificado do fundo do seu coração pelo esforço imensurável que Sherlock deve ter se submetido para comparecer ao seu casamento. — Muito obrigado pelo seu...

— Você já agradeceu pelo discurso durante a recepção. — apontou Sherlock, sua impaciência não combinando em nada com o segundo movimento da primavera, que era incrivelmente doce e lento, em contraste com a pura animação que o concerto exibia no início.

— Eu estou falando sério. Pasmem, mas você falou umas palavras muito bonitas naquele dia, sabia? — seu rosto suavizou-se, e sentiu-se um pouco melhor após ver que Sherlock estava aos poucos abandonando sua postura rígida. Entretanto algo pareceu vir à tona, pois sua fisionomia encheu-se de tensão em menos de um segundo:

— Como qualquer sociopata, eu sei as exatas palavras que devem ser ditas para emocionar pessoas. — soltou um suspiro de desdém. — Aquele discurso não foi nada de mais. — deu de ombros. Sua mão direita apertava o arco de seu violino com tanta força que os nós de seus dedos estavam brancos.

— Sociopata, sei. — John deu um sorriso divertido, com um toque de escárnio. Tal observação desencadeou algo em Sherlock, e, como que se tivesse mudado de ideia, as notas musicais tornaram-se mais atormentadas e secas, nada a ver com o ritmo entusiasmado de antes. Demorou alguns segundos para John notar que Sherlock pulara para o último movimento do verão, intitulado por alguns como "A Tempestade". Erguendo uma sobrancelha diante da drástica mutação da música, John deu-se por vencido, levantando da poltrona: — Se você quer ficar aí amuado, pois bem, Sherlock, a escolha é sua. Não posso me dar ao luxo de tentar ajudá-lo se você insiste em me afastar. — seus passos em direção à porta eram curtos e lentos.

Sherlock virou-se de costas, voltando para a janela. Abaixo, na rua, pessoas andavam despreocupadas pela calçada. Oh, como Sherlock os invejava. Por mais que admitir isso fosse o mesmo que matar seu ego a facadas, agora Sherlock invejava os humanos "normais" com seus encéfalos pouco desenvolvidos, pois eles pareciam ter tanta facilidade em compreender suas emoções!... Como poderia Sherlock falar algo com John se nem ele mesmo entendia o que estava acontecendo consigo? Sherlock Holmes passara anos — décadas — sozinho, e não arriscaria a amizade incomum que possuía com o homem à sua frente pelos pensamentos estranhos que insistiam em aparecer na sua mente.

— Sim, volte para Mary. — assentiu.

— Pois é, agora eu tenho um lar para o qual retornar, uma esposa e uma criança. — concordou John, e suas palavras tiveram o efeito de bofetadas no rosto de Sherlock. Quando ele notou que o detetive não responderia mais, despediu-se de suas costas: — Me mande um SMS quando você parar de agir feito um idiota. — murmurou, amargo, voltando-se para a porta.

Sherlock inspirou fundo, enumerando mentalmente as possibilidades do que aconteceria a seguir — John soara dolorosamente sério com seu tratamento de silêncio, e considerando as atuais circunstâncias, a promessa de um caso interessante não seria suficiente para que o médico voltasse a falar consigo de forma normal.

A adrenalina corria nas suas veias do mesmo jeito frenético que sentira quando se "suicidara" — Sherlock pressentia que esse era o momento do tudo ou nada. Fechou os olhos com força; ele não queria fazer aquilo. Ele realmente não desejava nenhuma dessas complicações sentimentais em sua vida — elas eram apenas isto, complicações. Odiando-se internamente por ter cometido um erro tão estúpido depois de passar anos posando como o senhor da razão, Sherlock fez o que mais detestava: deixou os dados rolarem. Sem planos, sem previsões, sem expectativas; decidiu simplesmente jogar tudo pela janela:

— Aquela deveria ser a nossa música. — sussurrou em uma voz fraca, na esperança de que John não o ouvisse.

Mas é claro que o destino não estava a seu favor:

— Como? — John interrompeu sua caminhada até a porta, virando-se para Sherlock. Este, por sua vez, não permitiu que seu rosto fosse visto, mantendo-se de costas para o médico. Respondeu de forma muda à sua indagação, transformando as notas revoltosas e sofridas da tempestade de verão em sons doces e melodiosos. Estes John reconheceu imediatamente: a canção tocada por Sherlock no seu violino durante o casamento.

— Oh. — foi a única que conseguira vocalizar diante de tal realização. Não, não, não. Por favor, Deus, que ele tenha entendido Sherlock errado. Não era possível que o detetive estivesse falando sobre aquilo.

Notando que teria de se contentar com esta resposta quase escassa, Sherlock cessou a sua composição, passando a inundar a sala de estar com espirais de alegria do início do outono de Vivaldi — elas não eram tão animadas como a primavera, porém também não eram deprimidas como o inverno.

— Isso dito, eu acredito que você pode retirar-se agora, John. — murmurou o moreno, sentindo-se desconfortável como nunca antes. Ele adoraria isolar-se em seu quarto até o fim dos tempos, porém odiava como isso o fazia parecer uma adolescente de quinze anos sofrendo de paixonite.

John fechou as mãos em punhos, concentrando-se no rumo perturbador que seu raciocínio seguia. A mensagem estava clara diante de seus olhos, porém ele era incapaz de aceitá-la. Não, aquilo não fazia sentido algum. Lembrou-se que o homem à sua frente era o adulto mais infantil que já conhecera em toda sua vida — se ele, John Watson, com toda sua maturidade e bom senso, estava tendo problemas para processar tal informação, como estaria a mente de Sherlock? Sem dúvidas um completo caos deve ter se instalado lá. Sentindo pena do seu amigo, e culpa de si mesmo por ser a causa da confusão que o outro sentia, determinou que o melhor a se fazer era conversar sobre o assunto — por mais que isso fosse extremamente desconfortável:

— Quando? — perguntou, agradecendo por sua voz não ter soado rouca.

— Especifique. — Sherlock revirou os olhos, impaciente. John não se deixou abalar com isso, ele sabia muito bem que o detetive tinha a tendência de agir mais mal-educado do que o usual quando se sentia nervoso ou pressionado. — Quando o quê? Você está se referindo a quando eu tomei consciência do que estava acontecendo ou quando eu...? — reticências eram tangíveis no tom sugestivo de Sherlock.

— Quando você se apaixonou por mim? — o médico indagou na lata, fazendo com que Sherlock se virasse abruptamente para ver seu rosto, exibindo surpresa nos seus olhos claros ao ouvir as palavras de forma tão crua. Ele chegou a se desconcertar, errando algumas notas no violino.

— Eu não sei. — admitiu, de olhos fechados; assim era mais fácil falar sobre tais coisas constrangedoras. — Talvez tudo tenha começado depois que perseguimos aquele taxista.

— Logo no primeiro dia? — John tentou esconder a sua descrença. Aquilo havia sido anos atrás; há anos que Sherlock gostava secretamente dele. Não, aquilo era impossível.

— Argh, John, eu... — soltou um ruído desgostoso, parando enfim de tocar o violino. Não, ele não queria contaminar seu instrumento musical com aqueles sentimentos venenosos dentro de si. — Minha cabeça está uma bagunça, eu não estou conseguindo nem entrar no meu palácio da memória. Minha mente insiste em jogar na minha cara vários momentos e... E é feito um quebra-cabeça sendo resolvido: as peças estão sendo pouco a pouco colocadas em seus respectivos lugares. — passou as mãos pelo cabelo castanho, bagunçando seus cachos em frustração.

— Então só agora que você notou que gosta de mim?

Sem mais a música para abafar a conversa entre eles, Sherlock fez uma careta enquanto afundava-se na poltrona mais próxima:

— Será que dá para você parar de usar esses termos idiotas? — sua retórica pingava exasperação. — E sim, apenas agora a minha mente decidiu ter essa epifania conveniente. — e mais uma vez o sarcasmo tingiu sua voz.

Os ombros de John caíram em decepção, e ele baixou sua cabeça para fugir do olhar de Sherlock, não sabendo o que dizer em troca. O detetive ergueu uma sobrancelha em leve surpresa, uma vez que o médico parecia estar lidando razoavelmente bem com a conversa até então. Sua mente deu um estalo, e ele percebeu algo na fala de John:

— Você acabou de dizer "só agora": "Só agora que você notou que gosta de mim?" Por que só agora? Isso indica antecipação, ansiedade. Pesar. Arrependimento por algo não ter sido mais cedo. Mas por que você estaria arrependido pela minha demora? — enquanto enunciava seus questionamentos, Sherlock percorreu a extensão completa da sala de estar, as palmas de suas mãos juntas em sua posição habitual. Interrompeu seus passos ao chegar à conclusão, virando-se para John com um olhar de expectativa.

— Se você tivesse descoberto tudo isso mais cedo, nossa... — o médico finalmente deixou Sherlock ver seu rosto; seus olhos mostravam certa diversão sofrida — Hoje em dia as coisas definitivamente seriam diferentes, porque eu passei anos tentando definir o que eu sentia por você. — comentou, com um mínimo toque de desapontamento em suas palavras.

— Então minhas deduções estavam corretas. — concluiu Sherlock, com um pequeno sorriso orgulhoso nos lábios. Era bom saber que, mesmo após atingir o fundo do poço, ele ainda podia confiar em suas observações. — Inicialmente eu apenas pensava que você tinha problemas com sua sexualidade por causa de sua irmã, e os olhares de admiração confusa que você lançava para mim eram pura estranheza em decorrência da excentricidade da minha personalidade. Porém parece que você de fato gostava de mim... — John corou levemente com isto — Que pena, nós poderíamos ter tido uma agradável experiência se eu não tivesse sido lento. — ele falou a palavra como se fosse um insulto.

— Sherlock, eu quero que você entenda que nunca foi minha intenção te causar esse tipo de problema. Eu...

— Eu sei disso, John — revirou os olhos para a declaração óbvia. — E eu sei que agora você tem Mary e o seu filho, e posso garanti-lhes que não os atrapalharei com nada. Isso tudo é exatamente o que você disse: um mero problema. — John abriu a boca para falar algo, porém Sherlock continuou: — Tudo o que eu tenho de fazer é apagar da minha mente essa realização estúpida. Eu irei deletá-la, da mesma forma que fiz com o sistema solar, e com aquele filme estúpido do 007 que você me obrigou a assistir. — os cantos de sua boca curvaram-se em um sorriso assegurador. — Ouso dizer que você está pensando demais, John, vendo tragédias onde não há.

— Você é tão lógico que me dá dor de cabeça. — John suspirou com pesar, balançando a cabeça em um movimento negativo. — Você é quem sabe. — enfim cedeu — A vida é sua, faça o que quiser.

— Não fale assim porque isso é ridículo. — Sherlock revirou os olhos novamente — Você fala como se houvesse outra opção para mim. Você fala como se eu fosse sofrer pelo resto da minha vida. Você quer que eu lhe apresente todos os fatos para que você finalmente entenda? — não esperou pela resposta de John: — Pois bem, siga meu raciocínio: você finalmente está levando a vida que sempre desejou. Você tem uma esposa que o ama, e em breve terá um filho. Você gostava — desenhou aspas no ar — de mim, e você agora gosta de Mary. Você possui uma moral inabalável, e aposto que a hipótese de trair sua mulher comigo nem sequer passou pela sua cabeça — ao notar o olhar machucado de John, tratou de explicar-se: — Fique calmo, nem mesmo eu seria egoísta a ponto de pedir tal coisa doentia de você. O que eu quero dizer é: estamos num beco sem saída e essa opção é a mais razoável, e eu pretendo segui-la com ou sem a sua aceitação.

— Você parece até mesmo um robô. — John soou amargurado — Por acaso você tem um botão de liga/desliga para emoções, é isso?

— Pare, eu sei o que você está fazendo. — a voz de Sherlock era ríspida — Você está sentindo pena de mim; não sinta. Eu detesto isso.

— Eu não estou, posso te garantir isso. Você é forte, Sherlock. — o detetive olhou-o com surpresa — Você faz coisas que pessoas normais nunca sequer pensariam. Acredito que você consegue lidar com tudo isso. Mas eu sinto pena do que nós poderíamos ter sido. Como o destino é irônico, não? Mas se é para ser assim, então seja. — deu um sorriso desanimado.

— Amigos? — Sherlock hesitou ao estender seu braço, oferecendo um cumprimento.

Melhores amigos. — corrigiu John, envolvendo a mão alheia com a sua.

* * *

Ao finalmente ver-se sozinho no apartamento, Sherlock deitou-se no sofá da sala de estar. Levou cada uma de suas mãos a ambos os lados da cabeça, apertando-os em uma massagem quase dolorosa.

Deletar, deletar, deletar — ele precisava deletar.

Momentos ambíguos — A Mulher chamando John de gay, Sra. Hudson sugerindo que John e Sherlock dormissem no mesmo quarto, Angelo achando que John e Sherlock estavam em um encontro — foram-se embora com grande facilidade. Em seguida Sherlock selecionou as raras vezes em que ele agira de uma forma que pudesse ser entendida como uma "cantada" — a piscadela que dera para John quando se conheceram, a proposta de saírem juntos para ir ao circo, os olhares que ele lançava para John quando este deduzia algo corretamente durante os casos. Varreu de sua mente quaisquer palavras e ações que pudessem desencadear outra epifania em si.

Quando terminou, manteve-se deitado no sofá, contentando-se em escutar o som ritmado de sua própria respiração. Sempre após deletar memórias, Sherlock sentia-se um pouco zonzo, sem saber ao certo o que acontecera. Levantou seu tronco do móvel com cuidado, sentindo uma súbita vontade de ouvir seu violino. Pegou o instrumento, que estava largado sobre sua poltrona, e inspirou fundo ao posicionar seu arco sobre as cordas. Ele não sabia qual música desejava tocar, portanto deixou que seu inconsciente escolhesse.

E foi assim que as notas secas e sofridas do início do inverno de Vivaldi invadiram o 221B da Baker Street.

Sherlock não sabia o porquê, porém seu inverno estava simplesmente congelante. Cheio de melancolia e uma dor desconhecida. Uma sensação estranha de atar as pontas soltas.

Mas exatamente o que Sherlock estava concluindo? Ele não sabia. Ele não fazia mínima ideia.

Porém, para Sherlock, o homem que armazenava qualquer informação que lhe era apresentada, se ele não se lembrava de algo, era porque simplesmente não valia a pena.

Portanto Sherlock não hesitou em afogar-se na sua contente ignorância.

Para sempre.


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