Gabriel escrita por Rave Donili


Capítulo 1
Gabriel


Notas iniciais do capítulo

Foi uma escrita experimental. Usei umas técnicas que nunca tinha usado para inserir a narrativa na cabeça de Gabriel, e para que ele coubesse nela...
Burlei algumas normas cultas da Língua Portuguesa em determinados momentos propositalmente, e acho que ficou bem perceptível quais são esses momentos, então se acharem erros, não tenham medo de apontá-los, saberão quais apontar e quais se encaixam na narrativa.
Abraços,
Rave.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/578826/chapter/1

Gabriel odiava o Natal.

Ele odiava muitas coisas.

Seus pensamentos perscrutavam pela noite quente. Nada de Papai Noel para o hemisfério sul. Por isso os países ricos ficavam no Norte... ele ouvira na classe que morava em um país emergente... talvez fosse bom enfiar-se em uma piscina cheia de cacos de vidro... e que havia uma crise que... levar consigo, uma raquete, a faca de açougueiro e...

- Gabriel, sua tia Luma chegou, venha cumprimentá-la já!

- Já estou indo, mamãe! – leve consigo... leve consigo...

(leve-me consigo)

Gabriel desceu as escadas com leveza. Seu andar se confundia à vibração natural da casa. Seus cabelos negros ondulados desciam até a altura do ombro e, como a frieza em seus olhos, eram estáticos. Ah! Seus olhos. Pretos. Quem os olhava percebia que aquelas íris queriam transbordar pela córnea, enegrecer todo o globo. As lâmpadas na parede da casa criavam sombras disformes no rosto de pele marrom do garoto... talvez tivessem forma. Eram outros rostos? Mais olhos transbordando vazio? O que eram?

- Rápido, moleque! É meia-noite e sua tia está cansada. Quer ajuda com as malas.

Gabriel odiava ajudar sua tia com as malas. Odiava sua tia. E odiava as malas.

(leve-as consigo)

-Leve as malas para o quarto de hóspedes, meu querido

A mulher de pele rosada e cabelos castanhos estava em sua frente. Eles estavam no quarto no final do corredor.

- Então me conte, querido. Tem alguma namoradinha? É normal! Eu comecei a namorar seu tio aos quinze anos, apenas um ano a mais do que você tem...

Foram horas? Minutos? Dor?

- Marta, calma... tenho certeza de que ele não é gay.

- Joéfe está enlouquecendo. O menino só fica sozinho. Comenta-se muito.

(horas e minutos e segundos e horas e minutos e segundos e horas e minutos e segundos e horas e minutos e...)

Gabriel escutava. Para ele, tudo aquilo não fazia sentido. Seu órgão sexual não fazia sentido. Talvez não fosse humano: superGabriel. Vazio. Sem vontade de mulheres, sem vontade de homens. Só repulsas a luzes, que como as da parede, projetavam feições e ao tocarem seus olhos causavam náusea...

...afetava os países do centro do sistema, mas não afetava tanto os emergentes...

-Mamãe, faz chocolate quente pra mim?

Marta e Luma se olharam de esguelha. Quanto o garoto havia escutado?

- Deixe que eu mesma faço, meu querido.

- Não! Você está cansada. Eu faço o chocolate para o moleque...

A noite é quente.

- Você não precisa de chocolate, Gabriel.

...como Brasil, Rússia, China e África do sul... um pano! Você precisará de um pano, leve consigo, leve consigo, leve consigo...

(Te odeio!)

O silêncio pairou. Parado. O ar se romperia... mas antes as portas bateram em sequência. A do fim do corredor. A da frente da escada. Em seu quarto, seus passos apressados por dar mais e mais círculos de frequência igual a daquela casa. O vento sacudia as cortinas e elas vinham, as luzes vermelhas... verdes... então amarelas... azuis... ele vomitou e teve um pesadelo.

(leve-me consigo)

Gabriel adoraria estar na escuridão completa, mas a sua volta havia luzes, milhares delas se enrolando como serpentes... seus fios negros e suas várias cores. Havia espelhos, ou era um verdadeiro corredor infinito?

O garoto gritava e sentia-se nauseado.

- Leve consigo! Leve-me consigo. Uma faca, um pano... você poderia aprender a costurar se quisesse! Como faria para encher a piscina?

- Esse sou eu?

- Completamente.

“Sou eu que vou seguir você do primeiro rabisco até o be-a-bá...”

- Pare!

“Em todos os desenhos coloridos vou estar!”

- Pare!

“A casa, a montanha...”

- Por que o som aqui é estranho... Mãe? Pai?

“E o sol a sorrir no papel...”

- Mãe?! Paí?!

- Eu gosto especialmente dos desenhos vermelhos, e você?

- Eu gosto especialmente dos desenhos vermelhos. Mas eu quero estudar geografia. Não posso conversar agora.

- Leve... LEVE! Você não deve esquecer!

- Esses países são os BRICS e juntos fazem uma frente à economia dos países do centro. Alguma pergunta?

Era dez de dezembro, e ainda havia alguma coisa para fazer, e sanidade segurava-se em uma linha tênue aos olhos de Gabriel. No fim, ela sabia que aqueles olhos a iriam engolir.

O garoto gostava de ir à escola. Ela mantinha sua mente ocupada, e assim ele conseguia parar de pensar nO Pecado.

(Amar a Deus sobre todas as coisas; NÃO tomar seu santo nome em vão; guardar domingos e festas de guarda; honrar pai e mãe; NÃO matar; NÃO pecar contra a castidade; NÃO roubar; NÃO levantar falso testemunho; NÃO desejar a mulher do próximo; NÃO cobiçar as coisas alheias!)

Ame! Não tome! Honre! Não mate! Não peque! Não roube! Não levante! Não deseje! Não cobice!

Não mate... não mate... NÃO MATE!

(“sou eu que vou seguir você... em todos os desenhos coloridos vou estar...”)

A sineta tocou, era hora de voltar para o inferno.

A cortinas eram verdes, a parede fora branca. O piso de jaqueira rangia. O teto tinha um bocal no qual deveria haver uma lâmpada saudável, mas havia algo mutilado: quebrada de propósito, como sempre. Aqueles olhos gostavam de se misturar na escuridão. As pichações na parede...

NÃO MATARÁS

NÃO MATARÁS

NÃO SEJA

NÃO DESEJE

MAS AGORA VOCÊ DEVE DESEJAR

TEM QUE COMER MULHER

OU TEM QUE DAR A BUNDA

A TRISTEZA É MELHOR QUE A MONOTOMIA

LEVE-ME CONSIGO

Em toda porra de desenho colorido eu vou estar!

Vou seguir você, seu merda, vou seguir...

- O jantar está pronto, Moleque!

- Já estou descendo, mamãe.

- Sua tia Luma disse que vem para a véspera de natal. Ela chega na madrugada de terça, vinte e três para a quarta, vinte e quatro.

(- Que se fodam tia Luma e suas malas.)

Era a hora do jantar. A hora em que as luzes da cidade se acendiam, a hora em que o pai de Gabriel, Joéfe, chegava cansado do trabalho de gerente.

(Marta! Essa é uma notícia maravilhosa! Prendam suas cabritas que o meu bode está solto)

Seus amigos ficavam em silêncio quando ele chegava. Todos estavam escondendo algum assunto. O garoto. Sempre o garoto.

- Marta! Não aceitarei um filho Gay. Tão pouco um hétero medroso de merda! Na idade desse menino, eu nem era mais virgem.

- Todos tem tempos diferentes, querido... – ela sentia o mesmo.

(qual é o problema desse moleque? Ele sente náuseas com luzes de natal)

A dicotomia se expandia no cérebro do garoto; Obedecer, seja isso, não faça aquilo, coma aquilo, não coma aquilo... ou se opor, fazer tudo ao contrário, resignar-se às avessas. Gabriel queria uma saída.

Ele tinha sete anos e estudava num colégio municipal. As crianças são cruéis na primeira série e era impossível olhar em seus olhos.

- Sua avó morreu, Gabriel?

- Ela foi viajar.

- Você não sabe de nada – o demônio tinha cabelos loiros, e um sorriso simplório. – minha mãe disse que sua vó morreu. Eu é que sei.

- Ela foi viajar! – gritou Gabriel. O demônio tinha olhos negros e então, cachos negros até o ombro.

Uma criança de sete anos pode entender a morte? A morte é algo que o demônio possa compreender? Todas as crianças olham juntas na mesma direção. Seus olhos são vermelhos, mas elas são inocentes. Oh, Deus, elas são... ao menos é o que dizem.

Lágrimas escorriam dos olhos negros de lúcifer, era natal. Era velório. O cheiro de morte era orgânico: rosas vermelhas com formol. Os sons resumiam-se a soluços fingidos, soluços sinceros e silêncio truncado. Não chovia, o que parecia muito errado.

- Por que Deus não chora, mamãe? – dois olhos negros transbordavam.

Mamãe chorava também e por isso não respondeu. O cheiro de formol começou a causar náusea em Gabriel, e ele nunca mais conseguiria olhar para uma rosa vermelha sem sentir-se enjoado, e nem para luzes de Natal. Elas estavam presentes por todos os lados na casa. O velório acontecia na sala... era um dia quente, as poltronas afastadas eram vermelhas, as cortinas marrons, o tapete laranja não estava ali. O chão era negro, como ébano.

- E quem é esse menino bonito? – mamãe apontara o senhor mais cedo, dissera que era um irmão da vovó.

- Ah! Esse é o meu filhão! Será jogador de futebol, orgulho do papai.

O homem grisalho olhava de forma receosa, era uma presságio que papai ignorava; talvez conscientemente.

Os pais criam expectativas para seus filhos, ignorando-lhes a alma, que não é se não o desejo do corpo. (ele se parece com você, mas tem o nariz um pouco mais largo. chuta tanto, com tanta força que mal posso dormir, com certeza será um menino forte como o pai. ah, sua barriga é pontuda? então será um menino, espere um exame para ver. E tudo isso sem que ele ao menos tivesse sentido o oxigênio queimar seus pulmões pela primeira vez). Tantos planos para um ser que não se vê existência. Tantas falácias jogadas no lixo ao soar do primeiro de muitos nãos. O jogador do papai pode querer ser artista, o artista da mamãe pode querer ser lutador. O menino esperado por todos, perfeito, que choraria ao sair das entranhas da mãe, pode ser anencéfalo, transformando-se em lágrimas da própria mãe, ao se tornar aborto. Ou toda essa droga pode invadir o desejo frágil daquele corpo e enlouquecer a mente aparentemente sadia.

Gabriel é ao mesmo tempo todas as idades que achou ter. Ele...

Tinha oito anos quando pisou em cima de um rato de laboratório e chorou. Gabriel gostava do ratinho branco, mas enquanto o sangue escorria pelo pequeno focinho rosado, manchando o pelo alvo, ele escondia um prazer incontestável. Por baixo da represa haviam turbinas girando. As águas alimentavam aquele movimento, escorria algo em suas entranhas enquanto escorriam lágrimas por seu rosto.

- Vó! Eu o matei!

(me ajude, sua velha desgraçada, é a única que resta, os outros três já se foram e não posso contar com aqueles dois, acredite em mim)

- Gabriel! Eu disse que você acabaria pisando nesse rato se brincasse com ele no chão. Ele tem que ficar na gaiola.

(ela acreditou... em cada gota de sangue de rato)

- Eu não queria – as lágrimas escorriam pela face do garoto. Impossível que ele mesmo não acreditasse. Gabriel até mesmo soluçava.

- Eu sei que não, querido. Vem cá, vamos fazer um velório pra ele...

Rosas vermelhas flutuavam em meio a luzes de natal, e senhoras entoavam incessantemente, aos sussurros, algum cântico metafísico e inútil. O cheiro orgânico preenchia todo o cosmos, invadia-o por todos os sentidos... ele o ouvia, o sentia na pele, o cheirava, sentia seu gosto e até mesmo o via pairando à sua frente. A vertigem o derrubou, foi quando sentiu as mãos de sua vó o impedindo de colidir secamente com o chão.

- Você está bem, anjinho?

- Estou – mentiu. Ele sempre mentiria quando alguém fizesse essa pergunta.

Gabriel estava fadado a não se sentir bem enquanto não aceitasse que seus desenhos preferidos eram os vermelhos... enquanto não aceitasse que precisava aprender a costurar, precisava encher a piscina, levar consigo, levar consigo, levar, levar...

Gira. Role para lá, e volte para cá. Esse movimento atrapalhava vovó, mas não creio que Banjo se importava com isso. Ele rolava o novelo de lã, enquanto dona Dira fazia um suéter.

A ideia de dar o gato a Gabriel fora de sua madrinha, Lúcia.

- O que você acha, Luma? Aquele rato dele, não morreu? Acho que ele gostaria de ganhar...

- Pergunte para Marta primeiro... é tão cedo, não podia ter ligado mais tarde?

Era feriado de algum santo padroeiro daquela merda de cidade. Luma era o que se chama de Católica não-praticante, então não estava em alguma celebração sem sentido. Ela tinha ficado em casa para dormir até tarde, mas sua irmã Lúcia achou que era interessantíssimo ligar tão cedo para questioná-la acerca do melhor presente para...

- Gabriel e eu mantemos uma boa relação, Lúcia, mas não melhor do que com qualquer outra pessoa. Ele é cortês... – e eu vejo a loucura em seus olhos, o que é aquilo? O que é Gabriel?

- Aquele garoto é maluco, isso sim! Ele tenta disfarçar com educação... mas eu sou madrinha, é uma obrigação. Coitados... Marta e Joéfe mereciam um filho melhor

E de algum modo, as palavras ditas, mesmo que não sejam ouvidas por quem elas insultam, causam qualquer sensação. Ele sentia o receio dos familiares, a pena com que olhavam para seus pais ao sentirem o desconforto da alma em sua bagunça particular que transbordava por dois olhos negros, apenas por eles.

Mal havia duas semanas que Gabriel tinha ganhado o animal, pássaros começaram a sumir nos arredores. O canário Belga do Sr. Medeiros, do 445. A Cotovia da Carla, moradora do 456. Até mesmo o Hamster de Beatriz.

Todos reclamavam à porta da casa de Marta e Joéfe. Até que o próprio Banjo desapareceu.

Banjo fora condenado à morte injustamente.

Leve consigo, à noite, todos eles... e então poderá mudar de classe, para depois atacar-se. Ataque uma parte de você mesmo.

- Afinal fui eu quem escolheu o nome, não foi?

- Afinal, foi mesmo você. Você... Ele é lindo, não?

E quando há tanta coragem, miscelâneas, desejos, covardia; há suficiente, em demasia, o ato. Foi quando ele se sentiu um pouco melhor. E como um jovem que descobre pela primeira vez a masturbação em um banho gelado de verão, ele repetiria a dose. E pássaros, contudo não apenas, continuariam a sumir, mesmo muito após Banjo ter se tornado carne em decomposição.

Quando é que você sente frio em uma noite quente de verão? Ora, Rapaz! Essa é fácil. Quando você acaba de voltar da sua infância, nas primeiras horas do dia vinte quatro de dezembro, correndo por um corredor de luzes infinitas.

O que você sente ao voltar de lá? Náuseas fortes e vontade de se masturbar.

Você sempre será pressionado, Gabriel. Oh, Anjo que vem anunciar a morte de Deus e de qualquer esperança no dia em que nascia Jesus. Maria cansou de te esperar, saiu com sua prima e então achou Emanuel em um saco qualquer de esperma. E a história se refez, pois ele não mais nascera de uma virgem, não precisou morrer na cruz. E foi mais feliz.

Por que não se entrega, meu anjo? Por que se resigna a valores nos quais não acredita?

- Mas a quem devo anunciar as boas novas? O anticristo que nasce, a quem devo anunciá-lo?

Cante comigo, meu anjo! Cante!

Noite feliz, noite feliz

Oh senhor, Deus de amor

- Pobrezinho morre em minhas mãos... – ele entoava com uma voz doce - Nessa noite sangrenta missão... de do mundo expurgar todos aqueles que me causam... – (rosas orgânicas de luzes inorgânicas com cheiro pútrido que parece vir de lugar algum) - Náuseas! É por isso que existe o natal! O natal existe para que eu pereça. As luzes, eles sabem que eu não gosto, é de propósito... é de propósito...

...leve consigo uma faca de açougueiro, talvez seja bom aprender a costurar, já pensou em como encherá a piscina?

Eles querem te taxar, meu anjo, oh, querido Gabriel. Eles querem tirar toda forma de resistência que existe em você. Seu pai não gosta de quem você é, sua mãe sente o mesmo. Eles odeiam você e se sentem culpados por isso, querem tentar te amar, por isso tentam mudar quem você é. Não é sádico que eles permaneçam culpados por toda a vida enquanto você nega a si mesmo? Que visão medíocre. Beba, Gabriel, as gotas silentes daquele pequeno focinho rosado. Não é melhor que os abrace com sinceridade uma última vez numa eternidade infinitesimal?

Todos têm temor a você, Gabriel! Todos aqueles que atentam contra você com todas essas luzes! Não deveria ser diferente. Você hoje matou um deus. És mais grandioso. Não deveria deixar que eles sofram por temer seus olhos negros.

- Não deveria? Eu os seguirei?

Gabriel, não esqueça. Qual é o seu tipo de desenho favorito?

Quando cortara os pulsos, aos 5 anos, Gabriel desenhara com seu sangue: uma casa, uma montanha, nuvens... o sol. Seus desenhos preferidos eram os vermelhos. Que cor linda tinha seu próprio sangue, e o gosto era visceral, nunca provara de algo tão vivo: não há nada como provar de si. Sentir-se morrer para alimentar a si próprio. Ele morreu por um tempo, e se soubesse da calma que era a morte do anjo mensageiro da morte de cristo, não teria deixado que os médicos fizessem a transfusão urgente. A morte e a tristeza de uma criança são tabus maiores que o sexo. Você não tem o direito de ser triste, pura e doce criança! Essa é a primavera da sua vida: sorria, você está sendo moldado.

- Eu quero morrer! Eu quero morrer!

- Gabriel! Não diga bobagens, moleque!

- Eu quero morrer, eu quero morrer, eu quero...

Gabriel acordou com esse cântico entoado a sete pulmões, e nem os sedativos o fizeram parar, seu silêncio gritava sua vontade de morte.

Por que quereria morrer? Uma criança de 5 anos?

Palmas para nosso querido altruísta, o rapaz que nunca conseguiu ser cristão mas que em um gesto de amor pelo mundo quis apagar dele qualquer resquício de si. O perfeito anticristo e mais um sacrifício por toda a humanidade.

Oh, Gabriel! Nem o diabo poderia ter planos maiores para você do que os que você mesmo alimenta em seu desejo. Isso! Isso! Não reprima o gozo! Você sabe bem o que quer fazer, não sabe? Mas deve esperar o momento certo. A anunciação! Anuncie, meu anjo! Anuncie a todos que te zombam com essas malditas luzes!

Anuncie a morte, anjo Gabriel!

- Gabi? Anjinho? Você pode nos ajudar a preparar a ceia de hoje à noite? Já acordou, querido?

Tia Luma soube então pela gargalhada que desceu as escadas antes do sobrinho que a noite receberia a visita do anjo de olhos insanos. Ele estava descendo as escadas atrás do próprio riso. A coluna de Luma, como que feita de água, solidificou-se em um estado instável de gelo à zero graus célsius.

- Com prazer, tia.

Ela não pôde deixar de notar a mancha escura no calção do sobrinho, sobre a região genital, mas nada disse, temendo adiantar seu futuro.

- “Droga! Estou enlouquecendo” – pensou – “ele é meu sobrinho e isso é paranoia”. – seu pai chega mais cedo hoje, Gabriel. Vocês estão brigados, não é?

- Eu nunca brigo com ele, tia, mas meu pai não entende, não conhece e não aceita minhas... peculiaridades. – então ele entoou mais uma gargalhada, como num ritual.

- Por que ri tanto, anjinho?

- Ah! Vamos lá, tia! É véspera de Natal! Estou feliz. Cristo nascerá! - e mais uma vez.

Anuncie a morte, anjo Gabriel!

Dois olhos negros. Espreitam então você camuflados nas sombras.

Eram duas da tarde quando Joéfe chegou do trabalho. Ele fizera trabalho extra para conseguir a folga e estava estressado e exausto: o clima perfeito para uma ceia de Natal com a família.

- Por que você está deitado aí, moleque? Não devia estar ajudando sua mãe e sua tia?

Gabriel retribuiu a pergunta com um olhar frio, desfocado... e uma pergunta.

- Pai, você se sente triste pela pessoa que eu sou?

- Que história é essa?

- Eu sei o que dizem, eu os ouço aqui – disse apontando para a própria cabeça.

“Anuncie a morte, anjo Gabriel!”

- E é verdade o que dizem, Gabriel? – não se importou com a expressão de agonia fria no rosto do filho, ele queria ouvir. Queria sentir-se livre da culpa que sentia ao odiar o filho.

- Meias-verdades são verdades, pai?

- Meias-verdades?! Meias-verdades?! Você não pode estar falando sério. - a expressão louca tomou conta da face de Joéfe sem que ele pudesse contê-la, e que dane-se o eufemismo, ele não queria contê-la. Oh, Deus! Ele não. – você vai ver o que é ser um homem de verdade agora, seu veado de merda.

Joéfe tirou o sinto de sua calça, e começou a espancar o próprio filho. Gabriel não reagiu, permaneceu parado como um cadáver enquanto as estocadas o atingiam no rosto, na genitália, diretamente nos olhos... a dança era embalada pelos gritos de Luma... – Pare, Joéfe! Pare! Não, ele é seu filho, imbecil! Seu filho! – pelos soluços angustiados de Marta e pelos insultos jogados como pedras em direção ao corpo do garoto. O sangue escorria pela face que inchava.

- Pai, mãe, Tia Luma... posso encher a piscina?

Joéfe olhava atônito o rosto impassível e desfigurado de seu filho. O choro de Marta encheu-se ainda mais de agonia, e apenas Luma enxergou o ímpeto sombrio... mas só poderia ser alucinação, ele era um rapaz cortês.

- Claro, anjinho! Vá para fora. Eu cuido das coisas por aqui.

Se Gabriel tivesse chorado, esperneado, gritado! Seu pai estaria tranquilo, pronto para expulsá-lo, para rechaçá-lo, entretanto...

“- Pai, mãe, Tia Luma... posso encher a piscina?”

O que é Gabriel? Pensava.

Você já aprendeu a costurar, anjo Gabriel? Você precisa, para criar a sua arte de natal, onde pisará, para lembrar que todos que te desprezam estão aos seus pés, o temendo.

- Ah sim, eu já aprendi a costurar! Não vê minhas olheiras? A máquina da mamãe é ótima. Estou enchendo a piscina agora... tem alguma razão para ela.

É tão transparente não? E azul... não te incomoda? Todo esse azul?

- Sim, meus desenhos preferidos são os vermelhos

Meus desenhos preferidos são os vermelhos. Nada de geografia hoje, né?

- Sim, não pretendo mais voltar para a escola no ano que vem.

A água escorria pela tubulação. O som grave que fazia era um prelúdio da grande canção que seria entoada naquela noite. A canção de Gabriel.

Enquanto Luma conversava com um atônito Joéfe e com Marta, que tinha os olhos inchados de tanto chorar, o Garoto preparava seu espetáculo. Sumia pela cidade, dançando com o tempo. Olhando para o céu a perceber cada mudança de tom, ansiando a madrugada. Ele dormia e acordava entre os bairros, subia nas árvores, e observava o mundo aos seus pés. Levava consigo uma bolsa que apanhara em seu quarto discretamente. Suas mãos agora estavam sujas; não era tinta vermelha. O santo padroeiro chorou sangue... ah, caro, Lenine... era deus e beleza. Era sangue bovino. Ele agora carregava uma faca, roubada de um açougue qualquer. Não havia luzes de Natal lá, obrigado.

É a primeira vez que converso com você? Você já escutou os noturnos de Chopin?

- Joéfe! Temos que ligar para a polícia! Ele está desaparecido há horas!

- Ninguém sequer encoste em algum telefone! Deem-nos pra mim, agora! – um pai desequilibrado, que tem nojo do filho foi a escolha perfeita. José? Um fraco! Criou um filho para os coitados.

É meia-noite, amor! Ria! Gargalhe como faço agora.

Luzes vermelhas e luzes verdes e luzes azuis e luzes lilases e luzes amarelas? Eu gosto dos desenhos vermelhos, senhora. Importar-se-ia se eu cortasse sua garganta?

Um grito agudo ecoou na casa dos Reetz. “é só um passarinho sumindo no número 419, querido anjo”. Mírian e Carlos haviam decorado toda a casa com muito esmero. Era sem dúvidas a mais linda da rua.

- Por que zombam tanto de mim? Eles serão as primeiras notas da minha música.

Anuncie a morte, meu anjo!

- Ah, isso é ótimo, Mírian! Nós seremos muito felizes... nós três! Esse Natal é o início da nossa vida.

Ela ficara tão feliz quando o resultado dera positivo... e foi a última coisa em que pensou, quando sentiu a faca suja de sangue ser arrastada com carinho por sua garganta... a dor foi inconcebível.

- Carlos! Por... – foram os últimos sons que conseguiu produzir antes de se calar diante da eternidade do anjo anunciador da morte.

- Não chore, querida Mírian. Seria muito pior sentir-se culpada por me odiar. Todos vocês me temem.

Meu anjo, o doce cantarolar da sua voz é tão esplêndido. Você deve cantar para que eles durmam. Cante.

- Mírian? O que está acontecendo, aqui? Por que você... Mírian! – a palidez no rosto de Carlos o transformou em um fantasma.

- É possível matá-lo? Não hei de atravessá-lo e chegar ao outro lado da vida.

Sangue de fantasma é da mesma cor que sangue de gente viva. Eles sangram e morrem, os fantasmas silentes, existentes... de carne e plenitude. Eles têm o dom de morrer... ao som de Chopin! Toquinho! Lenine! Beto? Toca Gabriel aí pra mim? A estrela da manhã.

Os cachos louros de Mírian serão ótimos... você sabe o que fazer.

- É tão difícil, mas ficará tão bonito!

E a mochila então estava um pouco mais cheia. A piscina também não pode ficar vazia, não é mesmo, meu querido?

Você se lembrou de trazer consigo a serra do açougue? Ossos não se cortam facilmente. Você precisa acaricia-los com um som estridente.

- Ah, mas essa é bastante silenciosa.

Você entendeu, meu anjo.

As festas de Natal da Rua Aurum Saldanha eram conhecidas por incomodarem. Se o som dos vizinhos não estivesse tão alto, e se alguém estivesse minimamente sóbrio, talvez tivessem percebido que o grito de Mírian não fora de prazer. Talvez tivessem ouvido o silencioso som da serra (serra-serra serrador...). Talvez tivessem percebido que o que o garoto de catorze anos carregava no carrinho de jardinagem eram os corpos mutilados dos donos do carrinho. Talvez, não apenas a pequena criança, Lisa, tivesse notado que todas as luzes da casa 419 tinham se apagado.

- Biel? O que você carrega aí?

- Vem brincar comigo, Lisa?

Eles riram juntos durante o caminho.

- É tinta vermelha, Lisa.

Ele a matou silenciosamente. Nos fundos de sua própria casa. Estava muito escuro... e o matagal ajudou a esconder o pecado.

- Nada mal para um primeiro encontro, milady.

A bolsa estava um pouco mais cheia, e a água da piscina um pouco mais vermelha. Três corpos boiavam inertes na água.

Ah! Cria teu inferno particular, que é teu paraíso! Acordava e voltava a dormir!

Matar. Matar. Matar e matar.

Acho que esse é seu sismo. As luzes na casa dos Barbosa eram tão bonitas... que afronta terrível!

- Lisa! Meu bem? – no escuro da rua mais um corpo cai, sem ao menos ver de onde a faca afiada que lhe rasgou as entranhas havia vindo... e que saiu, e de novo, e de novo... havia uma mão em sua boca, segurando um pano com um cheiro forte demais... Caiu ao lado do carrinho. Mãe e filha tão parecidas.

E a cada facada, a bolsa ficava menos vazia.

Quando em uma busca, os elos porcos e bêbados da corrente se separam, são mortos um a um pelas mãos do próprio destino.

Augusto, Gustavo, Marcelo, Letícia...

- Gabi! Está todo mundo louco atrás da Lisa e da Alessandra, você por acaso... isso é sangue...?

Eu não sabia que você arremessava tão bem, meu anjo!

- Menino, você viu o Augusto?

- Não é sangue, é tinta vermelha. Noite feliz, caro amigo. Noite feliz.

O santo padroeiro chora, meu bem. Chora, oh, santo padroeiro. Quebro-te. Quebro-te.

Esses corpos? São apenas arte moderna.

- O que eu mais gosto em mim? Eu consigo andar sem fazer barulho... Ah, e matar também! Você já me viu matando alguém? Pode até ter visto, mas garanto que não ouviu.

- Gabriel? Onde você esteve, moleque?

(Oi, sua velha desgraçada!)

- Mamãe, tem um louco atacando as pessoas na rua! Eu não sei como consegui escapar! Ele está vindo, mãe. Está vindo! - as lágrimas escorriam sobre o rosto machucado e transtornado do garoto.

- Gabriel, isso na sua roupa... é... é... sangue?

Venho contar-lhes uma história interessante, o menino que odiava o natal sabe sussurrar coisas bonitas. Mamãe? Por que o som aqui é estranho? Pai?

- Agora você pode abandonar sua culpa.

Marta, amiga e prima de Maria, a criança agora se meche fora do teu ventre. És tu a gestante principal. Vai morrer pelas mãos de teu filho.

Do ventre de marta escorria o líquido vermelho.

Ela não gritou. Sussurrou apenas:

- Eu te odeio, moleque. Seu veado de merda.

- Papai! Papai! Papai! Olha só o que eu fiz, eu matei mamãe!

- É mesmo, meu filho. Venha me matar também!

Ele gritou. Muito.

Papai estava dormindo. Tia Luma estava dormindo. Gabriel o amarrou na cama; usou os cintos pendurados no guarda-roupa.

- Acorde.

Com uma mordaça na boca, o ódio resumiu-se a urros indistintos.

Cante aquela música legal. Você não vai precisar, disso tudo onde está prestes a morar, por que lá... não há sexo, não há drogas, não há Rock and Roll.

A dor era imensa, e diferente de Gabriel, Joéfe não conseguia manter-se impassível. Seus gritos abafados lembravam alguma melodia triste cantada por Yoko Ono em algum evento de arte contemporânea.

Agora a bolsa estava cheia.

A água da piscina vermelha.

Salvaram-se as seis casas ateias da rua que não comemoravam o Natal, e na noite de anunciação estavam dormindo, de luzes apagadas.

Ele passou o restante da noite costurando par chegar a um bom resultado.

Quando o sol nasceu ele se deitava em seu próprio trabalho: ninguém mais se sente culpado. Como o mundo amanhece mais feliz!

E tia Luma? Ele se esquecera dela... continuou dormindo. E foi ela quem chamou a polícia, pois foi a primeira a acordar. O garoto dormia um sono pesado, e poderia estar morto. Moscas voavam ao seu redor. Ele estava deitado em uma espécie de manto...

- Meu Deus! É feito de cabelo? Joéfe... Marta...

Havia muito sangue... ela queria gritar, mas morreria se o fizesse.

Luma contemplara esse final pelas janelas dos olhos, mas o anjo da morte era tão cortês! Ela vira a insanidade escorrer pelos olhos, e sentia que mesmo sua mente enlouquecia.

- Meu querido Gabriel, terminou sua missão? E se eu o matasse, meu anjo? E se eu o matasse...?

A sua piscina, Gabriel... está cheia de ratos escalpelados.

Luma contemplou a visão horrenda da piscina vermelha. Pedaços.

E a faca, querida Luma? Lembra-se de quando eu conversava com você? Pegue a faca... faça-o dormir.

Oh, meu querido anjo Gabriel.

Dorme, meu bem.

Dorme.

Sou eu que vou seguir você.

Isso! Você mesmo.

Leve-me consigo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado.
Gostou? Comente.
Não gostou? Comente também.
Odiou com todo o seu ser? Comente também.
O importante é comentar. Adoro críticas construtivas, então não tenham medo.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Gabriel" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.