Por que tão sem dinheiro? escrita por Vultor


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Conto para o desafio do Nyah "Escolha seu lado".
Divirtam-se.
:)



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– Imagine que você esteja faminta. Passando pelo centro de Gothan o aroma de pudim a invade. Você sente a boca salivar, seu corpo pedindo o alimento. Você compra o pudim.

A psiquiatra iniciou um gesto de interrupção mas desistiu.

– Comer o pudim te traz uma alegria profunda, aquilo te satisfaz, você se sente viva.

A médica se remexeu na cadeira e ajeitou o vestido apertado.

– O erro está em pensar: “Esse pudim me alegrou. Pudins me alegram. Eu sou uma comedora de pudins”. Pois isso te leva a comer mais um. O segundo também alegra, mas alegra menos. A médica que comeu o segundo pudim não é a mesma que comeu o primeiro, ela foi transformada pelo primeiro, agora ela tem mais açúcar no sangue, menos fome, resultando em menos satisfação. O encontro com o segundo pudim é outro evento, um de menor alegria. Mas você, fiel ao sentimento que o pudim te proporcionou na primeira vez, pede um terceiro.

A psiquiatra tomou um copo de água, era seu primeiro dia no Arkhan. Eu via nervosismo, via insegurança, continuei.

– Quando você chega no décimo pudim ele começa a desorganizar suas funções vitais, se você não parar ele vai te matar, vai te entristecer profundamente. Então perceba, o pudim em si não é um ícone, não é alegria. A regra: “Comer pudim me deixa feliz”, não existe!

Comecei a andar na direção da psiquiatra.

– O que vale para o pudim, vale para TUDO! Essas regrinhas que criamos na expectativa de controlar nosso mundinho: “comer pudim, ganhar felicidade”. É a fonte de muitos dos nossos problemas.

Os guardas correram para me impedir, precisei de um ano de bom comportamento para trocarem a camisa de força por algemas, naquele momento eu perdia esse privilégio.

– Encare o mundo de peito aberto, como ele realmente é, inédito, irrepetitível… caótico.

Ela estava assustada demais para se mover, agarrei sua cabeça gorda com as duas mãos e torci levemente para a esquerda. Já havia quebrado muitos pescoços daquele jeito, os guardas hesitaram, eu tinha uma refém.

Aproximei meu rosto da psiquiatra, seus olhos revelavam uma pessoa que obedece, praticou os bons costumes da sociedade, fez medicina porque os pais ordenaram, estudou só o que os professores pediram, e hoje, sofre tentando se adequar a um padrão de beleza ridículo.

– Você não vive sua própria vida. – Falei enquanto apertava a cabeça dela. - Te matar não configura em mudança para o mundo.

Um comando para que eu a soltasse brotou no ar, acho que repliquei: “Se alguém se aproximar a doutora morre”, não me lembro. Estava entretido lendo os olhos da médica. Ela pensava: “Por que eu? Eu sou uma pessoa boa, nunca fiz mal a ninguém, não usei drogas, obedeci meus pais. Minha vida vai acabar assim? Não é justo!”

– Hahahaha. Mais regras.

Quando as primeiras lágrimas surgiram fiz o movimento. Puxei a cabeça dela contra a minha e forcei um beijo. Ela não revidou, estava apavorada. Durou pouco, os guardas me neutralizaram antes que eu levasse as mãos nos seios da mulher. Acordei só no outro dia, cheio de hematomas, mas valeu a pena.

Depois do incidente com a médica voltei à camisa de força. Ela sumiu, acho que tirou licença.

Eu estava entediado com o asilo Arkhan, mas escapar não era fácil, principalmente pela quantidade de antidepressivos que injetavam no meu corpo. Aquelas drogas me deixavam com sono, com a mente lenta. Meu primeiro passo seria contornar esse problema, eu já havia feito um trato com um guarda da solitária, ele prometeu me vender café. Li em um jornal que cafeína em excesso não é recomendada para quem toma antidepressivos, pode inibir o remédio bem como causar delírios ou síndrome do pânico. Haha, eu estava ansioso para fazer o teste. O problema é que eu não tinha dinheiro, precisava de pelo menos duzentos dólares para essa operação.

Depois de semanas na solitária voltei a participar das terapias de grupo.

– Coringa. – Disse o psiquiatra.

Me levantei.

– Preciso de duzentos dólares, pretendo usar o dinheiro para fugir do Arkhan, assim que sair, vou realizar um assalto e pagar com cem por cento de juros. Alguém poderia me financiar?

O médico não gostou, haha, tinha sido sincero pela primeira vez naquela terapia. Ele me mandou sentar e passou a fala para o próximo detento.

– Charlie, por favor, conte-nos por que você foi preso.

– Tava dando um rolê com dois falso parceiro, aí nós encontramos uma mulher. Já enquadramo a mocinha, eu mandei passar a bolsa, mas o Bryan tinha começado a arrancar a roupa dela. Fiquei puto, puxei meu três oitão e falei: “Larga a moça”. Eles responderam: “Colé Charlie, vamo zuar”. Então eu disse: “Não! Minha mãe fazia parte duns movimento aí e ela me ensinou que a mulher tem direito de vestir a roupa que quiser, e não pode ser estuprada”. Dizendo isso apontei a arma pra a moça e dei quatro tiros. “Pronto, matei pra acabar a confusão, peguem as coisas dela e vamo embora”.

A senhora Poirot colocou a mão na boca horrorizada, eu gargalhei com gosto.

– Shh, silêncio! – Ordenou o doutor Hugo Strange.

– Obrigado doutor. – Disse Charlie. – Continuando, meus falso parceiro endoidaram: “Não era pra matar a mina não mano”! E vieram pra cima de mim, consegui acertar o braço de um, mas levei uma facada na costela. Escutamos uma sirene, eles fugiram, eu não consegui, fui preso. Quando contei o que tinha acontecido, os tiras me mandaram pra cá.

Charlie seria útil caso eu precisasse de um gorila, não era o caso.

– Obrigado por compartilhar sua história conosco Charlie. – Disseram em coro os idiotas daquela terapia.

– Jimmy, sua vez, conte-nos por que veio ao Arkhan.

– Eles me internaram aqui depois que eu salvei meu irmão de um afogamento. – Disse o rapaz.

As pessoas se entreolharam. O psiquiatra fez um gesto para o garoto continuar.

– No outro dia, minha mãe veio a mim chorando, dizendo que Tommy, o irmão que eu havia salvo, se enforcou. Tive que corrigir a mamãe, falei que ele não se enforcou. O que aconteceu é que ele estava muito molhado, então o pendurei para secar.

Me interessei no Jimmy, talvez seus pais ainda gostassem dele, poderia ser minha chance de conseguir alguns dólares. Minutos depois de sua fala ele foi ao banheiro, decidi segui-lo.

– Jimmy meu caro! Estou com uma ótima ideia para fugirmos daqui.

Ele parou de lavar as mãos e me olhou com inocência.

– Mas precisa ser agora, durante a noite. Está vendo aquela pequena janela no alto, você é magro, consegue passar por ela.

– Ma... mas, estamos no quinto andar. – Ele disse.

– Então, por isso falei que precisava ser a noite. Está vendo esse raio de luz? Ele vai até o pátio, você pode descer segurando nele.

Ele passou um tempo observando e disse.

– Não sei, se alguém desligar a luz eu vou cair.

– Confie em mim, não vou deixar desligarem a luz.

Ele concordou com a cabeça.

– Então vamos, você foge agora depois me busca.

Me posicionei próximo a janela e abaixei para que ele subisse em minhas costas. A camisa de força atrapalhava meu equilíbrio mas consegui uma posição firme. Jimmy olhava para todos os lados, ele tremia quando alçou a janela.

– Não deixa apagar a luz tá?

No último instante ele hesitou, quis voltar, mas nada que um empurrãozinho meu não resolvesse. O garoto seria inútil. Muitas vezes há uma linha tênue entre loucura e genialidade. Muitas vezes, não todas as vezes.

Fui acusado de assassinato, mas como ninguém liga para indigentes, minha sentença foi apenas um ano de solitária. Eles deviam me agradecer, fiz um favor aos cofres públicos. A solitária era onde eu queria estar, próximo ao guarda do café, o problema é que faltava dinheiro para a negociação.

Nesse meio tempo, a psiquiatra gorda havia voltado ao trabalho. Ela resolveu continuar com meu caso e me chamou para uma consulta:

– Podem se retirar, ele está na camisa de força, não há perigo.

– Mas doutora...

Ela os interrompeu.

– Vocês sabem a influência de Max Wertheimer no gestaltismo?

Os dois guardas ficaram em silencio.

– Eu fiz uma pergunta!

– Não senhora.

– Vocês conseguem descrever o modelo de estímulo e resposta descrito por Pavlov?

– Não senhora.

– Então não queiram me ensinar a fazer o meu trabalho, se eu falei que é para sair, é para sair, entenderam?

– Sim senhora.

– Demonstrar força na frente do paciente, muito bem doutora, você evoluiu. – Eu disse.

– Não é bem isso que tenho em mente. – Ela disse enquanto fechava a porta. - Você quer alguma coisa querido?

– Não vou mentir, preciso de duzentos dólares. – Disse com meu melhor sorriso.

Ela retirou as notas da bolsa e colocou sobre a mesa. Depois se aproximou de mim e começou a desamarrar a camisa de força.

– Você é louca doutora Quinzel? Eu posso te matar!

– Eu sei pudinzinho, mas resolvi parar de deixar os outros controlarem a minha vida, agora eu tomo as decisões e lido com as consequências sejam elas quais forem.

Comecei a rir. Mais um investimento que dava frutos. É como sempre digo: "A loucura é como a gravidade, basta um empurrãozinho..."


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