CAPÍTULO XVIII

Estou no sofá mais uma vez. Portia nos disse que não iria aguentar passar a noite aqui depois de tudo que aconteceu e foi para casa. Por sorte ela também mora perto daqui, então ela ficou de voltar amanhã pela manhã.

A TV ainda está ligada, mas não faço ideia do que está passando, assim como também não faço ideia de que horas sejam agora. Meu olhar está preso no colete de Cinna, deixado em cima do centro bem na minha frente. Quando volto a mim, procuro rapidamente por Haymitch e o encontro na varanda, com um copo na mão. Suspiro desapontada ao ver que ele está bebendo de novo, mas acabo deixando isso de lado. Essa é a forma dele de fugir da realidade. É o que o mantem distante da insanidade até hoje. É a única coisa que proporciona seus breves momentos de "tranquilidade". Não deveria tirá-lo dele agora.

Não sei por quanto tempo estou olhando para ele, mas quando percebo, Haymitch também está olhando para mim. Desvio o olhar enquanto ele volta para a sala, para, o que acredito, encher seu copo com mais uma dose. E é isso o que ele faz. Mas ao invés de voltar para a varanda, como eu esperava, Haymitch se senta no outro extremo do sofá. Ele toma um gole e pousa seu copo no centro, voltando a se encostar no sofá. O sono está me consumindo. Meus olhos ainda estão inchados de tanto que já chorei. Me encosto, também, no sofá e dou de ombros, olhando para Haymitch, até ele virar a cabeça e também olhar para mim. Assim permanecemos por alguns instantes, em silêncio, apenas nos observando, até que ele estende uma mão na minha direção. Sem hesitar, estendo a minha e a seguro, então ele me puxa de leve, até que eu me sente ao seu lado. Ele passa um braço ao meu redor, passando os dedos levemente pelo meu braço. Fecho os olhos e aproveito a sensação de tranquilidade que ele me passa.

– Está assustada, não está?

Assinto com a cabeça, ainda com o olhar distante.

– Quer saber de uma coisa? - ele indaga. - Eu também estou.

Fico surpresa com o que ele acabara de dizer. Até então Haymitch não tinha apresentado um sinal sequer de medo ou algo parecido e agora ele simplesmente está confessando isso.

Levanto a cabeça lentamente e encontro os seus olhos. Nos encaramos por alguns instantes e então ele encosta sua mão livre no meu rosto, aproximando-se cada vez mais. Quando sinto seus lábios tocarem os meus, parece desesperador. Ele leva a mão até a minha nuca e me segura enquanto o beijo se intensifica. Começo a ser tomada pelo medo. Imagino o maior número de possibilidades do que possa acontecer daqui para frente e então sinto uma lágrima se formar, caindo pelo meu rosto.

Haymitch se afasta um pouco e olha para mim. Ele enxuga a lágrima com seu polegar.

– O que foi?

– Eu só... estou com medo do que pode acontecer agora.

– Calma, Effie - ele diz. - Não vou deixar nada de ruim acontecer a vocês.

– E a você também - corrijo-o.

Haymitch prende o riso rapidamente e olha para baixo.

– Não, não. Ninguém precisa de mim.

Ponho a mão no seu queixo e ergo seu rosto, fazendo-o me olhar novamente.

– Eu preciso.

Há um breve momento em que apenas nos olhamos, em silêncio, até que nossos lábios se tocam levemente. Ele me envolve em um abraço e assim permanecemos.

– Eu não posso perder você - sussurro.

– Você não vai.

Sinto uma necessidade inexplicável de tê-lo por perto, agora mais do que em qualquer outro momento.

Consigo convencer Haymitch a não dormirmos mais separados, então nos direcionamos ao meu quarto. E quando finalmente me deito ao lado dele, sinto meu sono ir embora.

– Vai ficar acordada a noite inteira?

– Acho que perdi o sono.

– Eu acho que é melhor você tentar dormir - ele diz. - Como você sempre diz: amanhã será um grande, grande, grande dia.

Acabo deixando escapar uma breve risada com sua tentativa de me imitar.

– Temos que falar com patrocinadores.

– Na verdade, não - Haymitch diz e isso desperta minha curiosidade. O que mais seria, então? - Não vamos precisar disso.

– Mas Haymitch - protesto - isso é o que fazemos para manter os garotos vivos!

– Eu sei, Effie, mas não precisaremos nos preocupar com isso dessa vez... - ele parece estar tentando escolher as palavras certas para usar. - Amanhã irei explicar tudo para você, mas agora é melhor dormir.

– Haymitch, eu não estou entendendo nada.

– Eu sei - ele diz. - Amanhã você vai saber.

– Você acha mesmo que eu vou conseguir dormir agora? - indago, sentando-me na cama. Meu sono se foi completamente e minha curiosidade, no momento, é a minha cafeína. - Vamos, Haymitch. O que está escondendo?

Há um breve momento em que ele parece estar decidindo se deve ou não contar, mas então ele se senta ao meu lado e percebe que não vou deixá-lo dormir até dizer o que está acontecendo.

Haymitch respira fundo e percebo que está cansado. Aliás, todos estamos, mas eu me conheço o bastante para saber que não conseguirei dormir com essa pergunta martelando na minha cabeça. Me sinto um pouco egoísta nessa hora, mas estou inquieta demais.

– Isso tem a ver com os levantes, não tem? - indago e ele levanta o olhar, encarando-me.

– Totalmente - responde. - Porque... - ele hesita - vai haver uma guerra.

Meu coração parece ter errado uma batida e estremeço rapidamente. Uma guerra. Confesso que esta possibilidade havia passado pela minha cabeça desde que conversei com Miri sobre o que está acontecendo em alguns Distritos de um tempo para cá.

– Como a que levou aos "Dias Escuros"?

Haymitch confirma com um menear de cabeça. Ponho uma mão na boca e várias imagens tomam conta da minha mente. Bombas e mais bombas. Correria sem fim, sem destino, apenas por salvação. Me vejo no meio das pessoas que correm. Mais uma vez o medo começa a me consumir.

– Há um plano de fuga - ele continua. - Quando chegar a hora, teremos que ir embora daqui. Por isso - ele se curva em minha direção e segura as minhas mãos nas suas - eu peço que fique perto de mim e não se afaste em momento algum, entendeu?

– E para onde vamos?

Mais uma vez ele demora um pouco para responder.

– Distrito Treze - ele responde e mais uma vez estremeço.

– Mas Haymitch... o Distrito Treze não...

– Não existe, eu sei, todos dizem isso - ele me interrompe. - Mas eles se reergueram e estavam apenas esperando a faísca que precisavam para se rebelarem novamente. E agora que outros Distritos também estão se rebelando, temos uma força maior dessa vez.

Dessa vez sou eu que demoro a dizer algo. Tento processar a informação, cada palavra que ele disse, mas tudo parece confuso agora. Até então eu só queria que Katniss e Peeta saíssem vivos da arena. Agora é muito mais do que isso.

– Quem está envolvido nisso?

– Plutarch, alguns tributos, alguns voluntários também - ele diz calmamente.

– Plutarch? Plutarch Heavensbee? - indago para confirmar. Ele seria a última pessoa que eu cogitaria no meio de uma rebelião. - Tem certeza?

– Absoluta - Haymitch confirma com um sorriso de trinfo nos lábios. - Foi por esta razão que ele se voluntariou para ser idealizador dos jogos esse ano.

Levo mais alguns segundos para digerir o que ele disse. Tudo está confuso. Plutarch está do nosso lado. Mas de que lado estou, finalmente?

Estou certa de que irei com Haymitch, seja lá para onde formos, sem pensar duas vezes. Mas talvez não seja esse o meu desejo. Abrir mão da Capital seria abrir mão de quem eu sou, do que uso, do que visto, tudo. Mas se eu quiser me manter viva, precisarei fazer esse esforço.

– Effie - ele me chama, tirando-me dos meus devaneios. - Você vai conosco, não vai?

Olho no fundo dos olhos de Haymitch e percebo o quão preocupado ele está. Depois de tudo que passamos hoje, não posso ter dúvidas sobre como deveremos agir daqui para frente. Seria arriscado demais.

– Eu vou.

~*~

Ao contrário do que eu pensava, minha noite não foi turbulenta e não tive problemas para dormir, apesar da minha imensa curiosidade em saber de tudo que estava acontecendo. Haymitch me prometera contar tudo no dia seguinte e essa é a primeira coisa que me vem à cabeça assim que abro os olhos.

Estranho a ausência do braço de Haymitch sobre mim, ou o seu corpo próximo ao meu. Quando me viro na cama para procurá-lo, encontro-o sentado na beirada dela, de costas para mim.

– Haymitch? - chamo com a voz fraca por ter acabo de acordar.

Ele se vira imediatamente com um celular na mão.

– Ah, ótimo, que bom que acordou. Temos muito o que fazer hoje.

– O que você estava fazendo? - indago enquanto me apoio nos meus cotovelos. - Por que não me acordou?

– Estava falando com Plutarch - ele explica. - Ele só pode ligar quando não está perto de Snow para que não deixe nada escapar. Perguntei se teria como liberar o subsolo do centro de treinamento agora de manhã.

– Mas... é onde os tributos treinam, não é? - pergunto e ele assente com a cabeça. - Para que você pediu isso? Nós vamos para lá?

– Vamos assim que você se trocar e comer alguma coisa. Mas acho melhor você não exagerar, Effie. Coloque alguma coisa leve. Lá embaixo vou explicar tudo.

– Qual a necessidade de tanto mistério?

Haymitch se aproveita da minha curiosidade e apenas sorri.

– Vai se trocar.

Reviro os olhos, mas obedeço sem relutar. Quando tento decidir que roupa usarei, lembro dele dizendo para escolher algo leve. Leve. Leve como? Sem saltos com certeza, digo para mim mesma. Escolho uma peruca laranja longa e um vestido azul. Por baixo acabo colocando uma camiseta branca e um short da mesma cor do vestido. Não me lembrava de onde tinha tirado essas roupas que estou usando embaixo, mas deixo isso de lado. Com certeza estavam guardadas há muito tempo, já que não lembro de tê-las usado.

Encontro Haymitch na sala de jantar. Quando olha para mim, ele não parece satisfeito com o que vê.

– Disse para colocar algo leve - ele reclama. - Sabe o que é leve?

– Quando chegarmos lá, colocarei outra - respondo rispidamente. - Não quero que me vejam... você sabe.

– Claro, claro - ele responde, impaciente, ingerindo o restante de café da sua xícara. - Agora come alguma coisa.

– Está tomando café? - indago, desacreditando. Franzo o cenho. - Onde está sua garrafa?

– Terei que fazer um esforço hoje - ele diz e vejo um pequeno sorriso se formar em seus lábios. - A ocasião exige que eu esteja o mais próximo de sóbrio.

– Ótimo - digo e me apresso em comer. Haymitch me aconselha comer até me sentir totalmente satisfeita e, mesmo assim, após terminarmos nosso café da manhã, Haymitch separa o que me parece uma bolsa térmica e coloca alguns alimentos dentro dela.

Nos direcionamos ao elevador e Haymitch aperta o botão do subsolo. Descemos em silêncio enquanto eu torço para que ninguém entre e me veja sem maquiagem. A cada andar que passamos minha ansiedade apenas aumenta. Mas só me sinto completamente aliviada quando finalmente chegamos ao subsolo e as portas se abrem. Caminhamos por um corredor e mais a frente há outra porta. Haymitch se adianta e a abre, colocando um pouco de força. Quando passamos por ela, me vejo num grande salão com vários objetos espalhados em cada canto. Haymitch coloca a bolsa térmica em cima de uma mesa e se vira para mim.

– Vai me dizer agora o que viemos fazer aqui? - pergunto.

– Hoje você tem uma tarefa, Effie - ele começa a dizer, caminhando para o centro do salão. - Vou ensiná-la tudo que eu sei. Tudo que aprendi para vencer os Jogos - enquanto fala ele vem se aproximando de mim, aos poucos. - Vou ensiná-la a ser uma vitoriosa.