Diluída escrita por Caderno Azul


Capítulo 1
Capítulo Único




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Hora: 3:11

Três da manhã e estávamos acordados. Como já era comum em todo sábado às três da manhã.

Você escondia sua cabeça em meus ombros como se já soubesse. Como se não quisesse ver o que estava por vir.

Seu corpo relaxou, o que sempre acontecia depois do sexo. Eu encarei o teto. Então ocupávamos nossos papéis. Somos bons em desempenhar nossas funções.

Costumávamos ser, pelo menos.

Minha cabeça zunia como se ouvisse várias vozes ao mesmo tempo numa praça cheia de palavras inúteis. Às vezes o vazio pode nos embebedar com a sua tragédia de tal modo que quando ele acaba seu serviço, estamos ensopados por seu buraco negro. O vazio sobe por minha espinha, preenche meus ossos, transita por meus poros, entope minhas artérias e contamina meu sangue.

Pergunto-me se estou próxima do momento da explosão. Do momento que vou me desfazer em ar, como um balão, matando todos os passageiros aqui dentro.

Como um balão tão frágil carregava tantos passageiros? Será que eles não sabiam o quão perigoso era aquele meio de transporte quando embarcaram?

Talvez eles soubessem. Talvez gostassem da adrenalina.

Eles sempre gostam. Até que, um dia, não gostam mais.

Será que esse é o seu dia?

Hora: 04:07

Estou pegando minhas roupas e enfiando na mochila. A calcinha vermelha não, ela é um souvenir. Pode ficar.

–Onde você vai?

Eu te ignoro, mas você me sacode. A mochila cai no chão. As lágrimas me traíram há algum tempo.

Balançando o rabo alegremente, Mel nos absorve com chocolate nos olhos. Ela guardou toda a inocência do mundo neles.

–Você não pode me deixar – sua voz parece mais urgente. Eu já ameacei partir outras vezes, mas o ar da madrugada parece um pouco mais sombrio hoje e acho que isso te assusta.

Assusta a mim também.

–Por quê? – eu te desafio, numa súplica implícita. Estou implorando por um motivo.

Dê-me uma razão forte o bastante para eu ficar.

–Eu achei que você fosse a certa.

Mais uma onda de dor me acerta, essa foi mais poderosa. Demoro alguns segundos para voltar à superfície.

Você só me deu outro motivo para partir.

–Se você achou, então eu jamais fui – a sentença de morte, a nossa morte, escapa por meus lábios secos.

–Você achou? – Há algo tão quebrado, tão pesado em sua pergunta que não posso me controlar.

Abaixo olho para a mochila e não miro em seus olhos. Perdi a coragem.

E pelo visto, até o dia clarear, perderei bem mais que isso. Penso em meu orgulho mutilado.

–Não, eu tive certeza – falo e minha voz sai árida. Pigarreio, tentando me manter a lucidez, mas a loucura me atrai como um mar em sua correnteza. - Essa era a diferença entre nós.

–Era? – você me pergunta e há insegurança em sua voz. Quanto aos seus olhos, não sei o que eles guardam. Agora percebo que jamais soube.

–Eu tinha certeza, até você não ter.

Tento recolher minha mochila e sair de cena, antes que a ficha caia. Antes que a explosão iminente me arranque da dormência. Antes que eu sinta o peso de nosso decrépito final.

Seus braços me envolvem novamente, me fazendo acreditar que você quer que eu fique. Fazendo com que eu acredite numa mentira.

Sufoco-me em palavras amargas:

–Você era minha alma gêmea, mas eu nunca fui a sua.

Seu pedido tenta me trazer de volta.

–Não vá.

Como eu queria poder dizer que você está fazendo tudo errado.

Não me peça, me exija.

Sacudo a cabeça, tentando transmitir os últimos meses em palavras, tentando elaborar um resumo coerente, imparcial, razoável. Tentando dar sentindo a nós.

–Toda vez que a gente termina, é como um band-aid que se arranca da pele. Você pode tentar colocá-lo de volta, pressionar ate que continue preso. Mas cada vez que o band-aid sai, um pouco da sua cola parte com a separação. Eu não sei quanto ainda temos de cola. - Suspiro, e sinto que a dor faz pressão no peito, tentando me sufocar outra vez – E às vezes acho que não quero saber a resposta.

Agora sou obrigada a voltar para seu olhar. Dolorido e doloroso. Castanho. Confiável. O olhar que eu aprendi a amar.

–Nunca ninguém me feriu como você.

Havia dor em sua voz, mas em seu olhar ele parecia transmitir outro um tipo de emoção peculiar. Uma mescla de fascinação e asco.

Eu respondo, me perguntando se um dia serei capaz me lembrar disso e sorrir:

–Existe a primeira vez para tudo e a última também.

Volto a dizer. Isso não é um romance.

Por mais que eu quisesse.

Não conta uma história de amor.

Não se alonga em esperançosos capítulos. Não há beijos açucarados. Sonhos de algodão. Sonhos no geral.

É um cuspe.

Quente. Duro. Ofensivo.

Inútil.

–Talvez eu não possa te deixar partir. Talvez eu só não consiga lidar com uma dose tão alta de você – ele parou por um momento, finalmente compreendendo. – Talvez eu não possa te ter por inteiro.

Esboço uma explicação para me ancorar. Não sei se o faço para que você se sinta melhor. Ou se é para te contagiar com meu luto agridoce.

–Talvez ninguém possa.

Você não se satisfaz.

–E você pode?

A ideia me toma de assalto e num breve instante de lucidez descuidada, arrisco:

–Sou uma overdose ambulante.

Detenho-me em seu rosto. Mais uma pessoa fraturada. Dentro de mim, em algum lugar escondido, eu devo sentir algum tipo de doentio orgulho.

–Esse é o problema da garota perdida. Todos acham que precisam dela, até conhecer uma. Em doses homeopáticas, pode te dar aventura, ela pode te dar tempero. Mas ela toma tudo de volta.

–Isso é um adeus?

Eu não respondo o que nós dois já sabemos.

– Talvez a minha dose diluída você possa suportar.

–Mas a versão diluída de você não tem seus excessos, não tem sua destruição. A sua versão diluída não tem você.

–E é por isso que você vai amá-la.

Anos depois

Forçarei um sorriso. Eu vou me esforçar. Está tudo bem. Dessa vez as coisas estão diferentes. Tudo muda. O tempo passa. E isso é bom. Estou me esforçando. Isso é muito bom.

Talvez minha versão diluída seja pouco. Espero que ela não seja suficiente para te consumir, como eu consumi os outros. Como eu consumi a mim mesma. Eu não quero que seja. Eu acredito. Isso é bom. Muito bom.

Nós estamos nos esforçando. Eu continuo sorrindo. Espero ter te convencido.

Qual era a sua pergunta mesmo? Sim, está tudo bem. É, isso é bom. Muito bom.


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Notas finais do capítulo

Créditos a Lu, a Jornalista de Boteco pela capa maravilhosa. Talvez a história não faça sentido. Talvez essa não seja a função dela. Nem sei. Quem quiser comentar eu respondo todos. Até a próxima!