Crônicas da Alabarda - A Primeira Ceia escrita por Gabriel Galvão


Capítulo 1
A Morte como uma decoração


Notas iniciais do capítulo

Aqui dou início às desventuras e vivências de Ava Turner. Por favor, acompanhem e comentem se possível, para tornarmos essa experiência criativa uma ótima interação!



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Canários são aves provenientes das ilhas canárias cingidas pelo território espanhol. Não obstante, sua presença não se restringe a ela. Talvez nem sua origem. O primeiro momento em que foram vistas possivelmente fora ali, e assumiu-se arbitrariamente que era sua terra natal, mas esse hábito de localização é um equívoco. Não temos uma terra de origem ou uma terra última. Os seres humanos são transições ambulantes, se traduzem e mudam cotidianamente num processo remoto.

Quando queremos falar sobre qualquer elemento das nossas vivências como um fator determinante para ser quem somos, estamos apenas nos trancafiando em regras estabelecidas por um sistema muito mais imponente do que podemos enxergar. Já os canários, eles não são imponentes. Eles não se determinam, apenas voejam.

Às onze da manhã.

Ava estava sentada no meio-fio da esquina de sua casa numa pequena vila incrustada entre dois prédios de vidro nas proximidades de Croydon, Inglaterra, manejando os pinos da bicicleta para tentar concertar suas rodas.

O Sol invadia incisivo naquele dia, como se muitas oportunidades estivessem aproveitando a emissão de raios de luz para surgirem agora. Era uma atmosfera cálida, mas cheia de desejo e vibração. Ava tremia um pouco de excitação pensando no orgulho pessoal que lhe infundia a forma que sua dissertação sobre o caráter do homicídio passional nos dias de hoje estava amadurecendo.

Da janela cheia de margaridas do seu quarto, uma voz chamou:

- Ava! Você viu onde está meu anel? Eu preciso ir agora!

Ava acenou com a cabeça, mas sem responder diretamente e abriu o portão adentrando na casa verde.

Lizbeth agradeceu relaxada quando Ava, em mais uma demonstração de seus gestos solenes e feéricos, encontrou o anel na cabeceira da cama e lhe pôs no dedo. Com a mesma sutileza de ser, se aproximou e imprimiu um beijo nos lábios grossos de Lizbeth. Extasiada por aquela presença, só restou à mulher sorrir timidamente e agradecer mais uma vez pela noite, marcando um encontro para a mesma noite num bar alternativo que estava abrindo.

Ava escovou os dentes, brincou com o embaçado do espelho após o banho quente e, quando na sala de sua casa de três andares, ficou observando as janelas altíssimas completadas por um sofá embaixo. Sentou-se e apertou o botão da cafeteira quando a campainha tocou.

Antes nua, Ava pôs um roupão de banho curto e lilás, descendo.

- Oi, Ava! – Antoness falou exasperado, sempre despreparado para a emanação que a imagem da jovem pálida e loira trazia. Ao mesmo tempo em que projetava um novo patamar de fragilidade, também transmitia um sentimento de segurança muito bem definido e confiante.

- Tudo bem, Antoness? Como está sendo seu dia? – Ava não tardou em estirar um sorriso habitual. Foi pegando moedas numa mesinha próxima da porta para pagar pelo jornal que o rapaz trazia.

- Você não tem ideia! Minha mãe me acordou cedo para levar o cachorro para passear, daí aproveitou para apresentar seu discurso rotineiro sobre como estou desperdiçando minha vida correndo atrás de uma carreira cinematográfica ao invés de fazer engenharia que é o que o país está precisando. Meu pai acordou e na mesma hora reclamou por eu não ter comprado os frios no dia anterior para o café da manhã. Eu tive que explicar pela enésima vez que ainda estou acostumado com os novos padrões alimentares que ele deu de incorporar após sua viagem para a América Latina! Sendo que...

O rapaz teve de aguardar um momento precioso no qual reestruturou sua fala e o tópico de forma a recapturar a atenção de Ava, agora flutuando diante da primeira matéria que o jornal trazia, sobre a nova vítima de um suposto psicopata que deixa uma linha horizontal vermelha misteriosa no pescoço de suas vítimas.

- Que curioso esse caso, não? Estava falando com meu amigo esses dias sobre como parece o roteiro de um filme de terror bem americano! Após essa nova evidência estão chamando o suposto assassino de “Decorador”. Não é tão romântico quanto “O assassino da linha do horizonte” que outro jornaleco propôs, mas não colou...

Ava interrompeu-o com uma candura que não expôs de forma alguma o conflito que sentia com aquela notícia.

- Estou me esforçando para traçar comigo mesma uma linha de raciocínio para esses eventos, mas ignorando a linha vermelha, nenhum ocorrido tem nada a ver com o outro. Uma das primeiras pessoas na verdade foi declarada como vítima do marido, logo a situação foi arquivada como violência doméstica com culminância de homicídio passional. Não consigo ligar muita para essas especulações da mídia também.

- Ah, entendo... – Antoness se resignou ao silêncio se deparando novamente com o intelecto desconcertando de Ava – Tem recebido alguma notícia do seu pai no Japão?

O sorriso de Ava se espreguiçou diante de todo o Sol que inundava aquele dia, mascarando o que quer que podia estar sentido. Sempre parecia não estar sentindo nada além do simples, o que na verdade causava em alguns como Antoness a ideia de que sentia mais que a maioria das pessoas, atormentada por uma sensibilidade e compreensão inquietas.

Ava andou pelas ruas da cidade, bordejando uma praça gradeada enquanto comia banana. Pensava no seu pai sempre o que o silêncio lhe acometia. A imagem daquela casa vazia a sufocava, mas já estava mais acostumada com aquela impressão do que com a soma de alguma figura familiar no ambiente em que residia. Sufocada pela água da própria ansiedade, olhou para o céu de relance.

O que restava da banana caiu no chão.

Uma grande sombra, cujos traços eram anuviados e desbotados como um mero amontoado gasoso se rastejava acima dos prédios. Tinha uma máscara apavorante no topo, algo caricato e teatral que não reconheceu. Ava olhou desesperada para os lados, procurando algum amparo para a realidade ao perceber outras pessoas apavoradas com a súbita imagem, mas só havia ao seu redor uma senhora levando uma criancinha com uma mochila de rodinhas no sentido inverso.

Ninguém poderia confirmar que aquilo não era uma alucinação, então quando ao tentar se concentrar na figura, entre uma piscadela e outra ela se desfez, só restou a Ava abandonar com muito desprazer aquela divagação.

- Eu não estou dormindo nada bem... – Concluiu sem muita confiança, mas também sem muita sobriedade.

Em algum outro lugar da cidade, uma mulher de cabelos extensos com uma pigmentação vermelha tão artificial quanto o de uma boneca abotoava uma espécie de gola metálica na roupa que vestia. Prendeu num rabo de cavalo ainda colossal seus fios e olhou para a cidade inglesa a qual acabava de chegar pela janela. No seu quarto havia apenas uma aglomeração cardinal de malas. Fez algumas considerações encarando o mapa local emoldurado na parede do motel e admirou as botas negras que iam até seu joelho.

Sentou-se na beira da cama.

- Aqui faz muito calor, que lugar desconfortável – Criticou em voz alta enquanto dava uns puxões na gola que acabara de instalar em sua indumentária. A gola ocultava uma linha de vermelho vivo que circundava seu pescoço, desenhada por um material que nenhuma perícia soube identificar. De fato, nenhum ser vivo seria capaz sequer de compreender a composição daquele resíduo. Nenhum ser vivo, não...


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