Braços Cruzados escrita por Gabriel Galvão


Capítulo 1
Braços Cruzados Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Os eventos aqui relatados estão situados num período entre o capítulo 291 e 292 do mangá, havendo apenas um dia para a Cerimônia de Herança ocorrer.



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A noite se impunha como um oceano de angústias que não eram percebidas pelas crianças que percorriam descontroladamente a casa preenchendo-a de pilhérias e bagunça.

– Lambo vai dormir! – Tsuna berrou exasperado – Eu tive um péssimo dia hoje!

O que não saía da cabeça de Tsuna era seu encontro recente com o Nono chefe da família Vongola. Ainda que usasse de um vocabulário doce e expressões compreensivas, era claro que sua expectativa era de que o jovem japonês não recusasse a cerimônia de herança como pretendia.

Após a mãe de Tsuna levar as crianças para se banharem antes de dormir, ele pôde ficar sozinho com Enma Kozato, um amigo muito recente, mas particularmente fácil de se identificar. Com uma cor rubra berrante e meio lamentosa nos olhos, Enma sempre parecia melancólico, coberto de tanta aflição quanto Tsuna estava naquele momento, sendo possível alvo de ataques inimigos que não lhe interessavam e tendo de degustar a pressão de uma enorme responsabilidade sobre ele.

– Como consegue, Enma? – Tsuna perguntou sem preâmbulos enquanto ajeitava no chão o fuuton destinado ao amigo. O jovem líder da misteriosa e tida como irrelevante família Shimon fez um olhar de indagação que levou Tsuna a complementar – Digo, ser o chefe de uma família mafiosa.

– Como eu disse antes, isso nunca foi do meu interesse. Claro que a Shimon é um grupo de ralé e a Vongola é o topo da pirâmide então comparações são impróprias.

– Para de dizer isso! – Tsuna se agachou para poder encarar Enma – De verdade, eu disse antes e repito, todas essas coisas não importam! Eu não dou a mínima para o poder que a Vongola tem, nem para a reputação da Shimon. Nada disso determina como deveríamos ser amigos ou não. Você foi a primeira pessoa que me permitiu dizer que eu não aceito nada disso! O Reborn só fica insistindo cegamente com suas próprias convicções.

Nos poucos dias em que conheceu Tsuna, Enma pode constatar que eram recorrentes as vezes em que ficava atordoado pela honestidade irrestrita e cândida das suas palavras. Ele não tinha medo do julgamento que suas afirmações poderiam acarretar, confiando absolutamente na ideia que fez de alguém que acabou de conhecer. Era um carisma digno de um líder mafioso.

– O chefe atual dos Vongola não disse que somente com você se tornando chefe é que as lutas iam parar? – Enma redarguiu, causando comoção em Tsuna. Para um garoto tão gentil e desapego de elementos como honra ou poder, a considerável quantidade de lutas com as quais já teve de se deparar e que envolveram mortalmente seus entes queridos era um assunto apavorante de ruminar na mente.

– Argh, não me fala disso! Todos esperam que eu de alguma forma seja a solução para a corrupção e cobiça da máfia, sendo que eu sou só um estudante ginasial incomparavelmente incompetente em tudo!

Enma se rendeu a um riso com essa declaração enquanto Tsuna lhe dava o travesseiro e apagava a luz.

– Sabe, eu nem acho tão ruim ser um incompetente – Tsuna falou enquanto sentava beira da cama – Quer dizer, eu tenho muitos amigos por mais que todos sejam insanos, posso sempre estar perto da Kyoko-chan – Tsuna avermelhou-se frente à simples citação de seu alvo amoroso – E me divirto muito. Tudo que fosse além do que já tenho só fortaleceria meu ego ou algum status inútil. Vê como não sirvo para chefe da máfia? Eu não tenho um pingo de obstinação ou força de vontade!

– Não é isso que falam de você. Os comentários que os membros da minha família compartilham comigo e que foram feitos pelos seus amigos são dos mais ostentosos. E realmente, quando vi você no seu modo de batalha não pude evitar se não achar imponente!

O rubor de Tsuna só cresceu enquanto Enma tirava a blusa e colocava uma emprestada pelo corpo. No relance, Tsuna pode reconhecer algumas cicatrizes alarmantes pelo corpo do mafioso, que reluziam de carne mesmo no escuro. Quando Enma falou sobre as dificuldades de uma família medíocre como a Shimon, não estava brincando. Não tardou até o menino se dispor na posição que lhe trazia mais conforto no fuuton, cruzando os braços com apego ao redor do corpo.

– Enma – Tsuna chamou enquanto se deitava atrás do amigo. O Shimon se virou e um ficou de frente para o outro, sem Enma desfazer sua posição – Esses braços...

– Algum problema? – Enma falou, mas um não conseguia reparar a boca do outro se mexendo, tamanha a penetração de um no olhar do outro.

– É uma posição tão defensiva... – Havia muito receio na fala de Tsuna, uma voz carregada de uma bagagem de lembranças que o levavam a discorrer sobre aquilo – Como se estivesse sempre com em guarda, esperando algo, sem confiança de que as coisas vão dar certo. Meio apavorada.

Enma tentou rir de nervoso para aliviar o clima, mas isso não fez o olhar de Tsuna ceder.

– Obrigado – Tsuna encostou uma de suas mãos na mão do companheiro com o qual dividia os mesmos temores e os mesmos assombros – Por me entender. Caramba, por que você não apareceu antes? Teria me relaxado tanto em outras ocasiões, saber que eu não preciso carregar todo o peso do universo, ou mesmo acreditar que se quiser eu posso fugir.

– Você pode fugir – Enma corrigiu, mas o Vongola fez que não com a cabeça.

– No fundo eu sei que não. Eu não quero nada disso, acho que vou negar a cerimônia para o nono, mas de alguma maneira sei que isso vai me perseguir. E também, o Reborn me trucidava – Se permitiu um riso verdadeiro relacionado a amizade conflituosa e ao mesmo tempo despretensiosa que tinha com seu professor bebê.

– O Reborn-san parece ser de grande auxílio para você – Enma não desmontou os braços cruzados em momento algum, mas deixou a mão ali, sempre movendo-a de forma a não perder o contato com o toque da mão do amigo.

– Todos são. Você também. Eu não posso me orgulhar dos esportes, ou das minhas notas, ou dos meus amores, mas não hesitaria em dizer que me orgulho dos meus amigos. Sério, muito obrigado!

Tsuna atravessou o Shimon com seu sorriso, com sua compreensão irremediável, com seu caloroso carinho, mais quente que a mais poderosa chama do desejo de morte do Céu.

Enma, travado por uma sequência de pesares, de tormentos e oscilações, não foi capaz de dizer obrigado ao amigo por mais sincero que isso teria sido. Como já havia sido combinado, a Shimon estava planejando se vingar da Vongola por uma traição secular que remete a primeira geração de ambas. Enma ligou para sua imediata na família e confessou seu sentimento de que Tsuna poderia ser uma boa pessoa, a Vongola poderia ser diferente, a todo o sistema uma nova opção poderia ser apresentada.

Enma saiu na madrugada, deixando apenas uma carta dizendo que se colocaria numa situação de perigo e que esperava a ajuda do garoto, confirmando com sua presença a índole boa do Vongola. Porém, a carta com os dizeres se perdeu na algazarra cotidiana da casa e Tsuna nunca teve a oportunidade ler a carta, deixando Enma esperando com seus sentimentos de conflito, de arrependimento e de traição se misturarem e infundirem-se em seus ossos, que tremiam de raiva e tristeza cada perna.

Esse equívoco entre ambos levaria-os a um embate sangrento que revelaria o passado de suas famílias, o sentido da palavra “orgulho” e o que, honestamente, um sentia pelo outro na forma menos lapidada e mais inominável possível. Uma amizade que transcendia a forma e as gerações.

Naquela noite, envolvido e silenciado por uma cortina de medo, ao se levantar na madrugada, Enma espiou Tsuna dormindo. Estava de braços esparramados para cima, mas Enma sabia. Sabia que ele também já havia se posto muitas vezes com os braços ao redor do corpo, se protegendo de tudo, até do pavor da própria sombra, do pavor do mundo. Se protegendo mesmo que não houvesse perigo real. Se protegendo porque não queria estar mais triste do que já estava. Quando Tsuna falou sobre aquela posição, estava pedindo para Enma se abrir, seja lá para o que fosse, mas que não sentisse medo mais, que pudesse encontrar amparo no amigo para lidar com a sordidez da sociedade.

Mas mesmo esse pavor coibiu as ações do Shimon. Ele só pode ficar de braços cruzados assistindo o quão luminoso e ensolarado Tsuna era. A aproximação entre eles era como o céu e a terra, havendo algo que os conectava mais forte que o tempo, mais forte que as cores.


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