Não consegui dormir direito naquela noite. Sonhos esquisitos e pesadelos me atormentaram até de manhã. Eu via um tipo de mansão vitoriana, em um vale escuro. Não queria entrar ali e só de olhar me dava arrepios. Mas ela era tão... familiar.

Quando percebi, eu já estava dentro da mansão, os corredores com luzes fracas, e as paredes desgastadas em alguns pontos. Um verdadeiro cenário para algum filme de terror. O pior é que eu sentia que já havia estado naquele lugar.

– David... – uma voz feminina chamou, com suavidade. – David...

Meu coração começou a bater mais rápido, a minha respiração estava descompassada. Parte de mim queria sair correndo dali, mas a outra parte dizia que estava tudo bem e que eu devia seguir a voz. Nem preciso dizer que parte venceu.

Engoli em seco e andei pelos corredores, seguindo a voz da garota.

– David... volte para casa, David... volte para nós...

Voltar para “casa”? E como assim “nós”? Continuei andando e passei por uma enorme porta dupla, de madeira, que dava no que parecia uma enorme sala de estar. A única luz era a da lareira, suas chamas bruxeleantes lançando sombras nas paredes, deixando tudo mais arrepiante. Mas o assustador mesmo, eram as pessoas que me receberam na sala. Não dava para ver os rostos, mas sentia que já os tinha visto antes. Um grupo de adolescentes, provavelmente, da minha idade. A garota que me chamava estava no meio do grupo.

– David... volte para casa... estamos te esperando...

O sonho mudou. Eu estava no meio do que, um dia, foi uma cidade. Tudo estava destruído, com nuvens de poeira e fogo pra todo lado. O desespero toma conta de mim quando percebo que é cidade era essa. Nova Iorque. Só consigo olhar para os prédios em ruínas, e o fogo se alastrando, até que sinto algo segurar a minha perna e olho, hesitante, para baixo.

Reconheço os cabelos louros e os olhos cinzentos de Annabeth, que me olha em pânico, o corpo cheio de cortes e coberto de sangue. Próximos a ela estão todos os nossos amigos. Percy, Jason, Piper, Leo, Calipso e outros campistas que não conheço, todos sangrando ou mortos. Estou na Colina Meio-Sangue.

– Po... por que...? – Annabeth diz, e desmaia.

Minha cidade está destruída. Meus amigos, mortos.

“Este é o seu destino, David!” diz uma voz cavernosa, de algum lugar. “Não lute contra isso! Aceite!”.

*****

Acordei gritando. Estava novamente na minha cama, no sótão da Casa Grande. Nada está destruído ou pegando fogo. Eu estava coberto de suor e minha respiração está ofegante. Cobri o rosto com as mãos, tentando organizar meus pensamentos. Foi um sonho... um pesadelo muito, muito ruim.

Não conseguiria dormir, mesmo se eu quisesse. “Melhor descer e ir para o chuveiro”, pensei. “Preciso esfriar a cabeça...”. Desci as escadas e olhei para um relógio na parede. Seis e meia. Mas me sentia como se tivesse passado a noite em claro.

– Aonde pensa que vai, cria de titã? – nem precisei erguer os olhos para saber que era Clarisse.

– Tomar um banho. – disse, exausto. – Se importa em me dar licença?

– Não tire com a minha cara! Quíron pode ter concordado com a ideia de você ficar aqui, mas eu não!

– Olha, eu sei que você tem algum problema comigo, mas eu não estou com cabeça pra isso agora.

– Cale a boca, cria de titã! – ela exclamou. – Vá embora daqui!

Lentamente, eu ergui o olhar para encarar Clarisse.

– Eu disse que não estou com cabeça pra isso. – eu disse, com voz seca. – Sai da minha frente.

Minha cara devia estar péssima. Clarisse me olhava como se estivesse olhando a cena mais aterrorizante de um filme de terror... o que é meio estranho, considerando que ela filha de Ares. Eles não parecem ser do tipo que sentem medo.

Passei por uma Clarisse estática (e, dessa vez, sem “congelar” o tempo) e entrei no banheiro do Acampamento. A água morna me deixou um pouco mais relaxado, mas as imagens do pesadelo ainda me voltavam à mente. “Foi só um sonho. Só um sonho. Só um sonho!”, eu repetia sem parar. Não podia ser mais do que isso. Podia? A lembrança de meus amigos morrendo ao meu redor quase me fez vomitar.

Depois do banho, voltei para a Casa Grande, e me sentei nos degraus da varanda, tentando limpar a cabeça de pensamentos. Alguma coisa toca meu ombro, me quase me fazendo pular de susto.

– Ei, David? Você está se sentido bem? Está pálido.

– Jason? Não, estou péssimo. Tive o pior pesadelo da minha vida.

Ele me encarava como se eu tivesse dado uma sentença de morte a alguém.

– Sonhou com o quê?

Resumi a coisa toda para Jason. A mansão no meio do nada, as pessoas estranhas, a cidade destruída, os campistas mortos, a voz estranha. Quando terminei, ele se levantou de um salto.

– Temos que falar com Quíron! Depressa! – Jason me puxou pelo braço e me fez ir com ele. Eu não conseguia entender... o que o meu pesadelo tinha de tão importante assim?

Corremos pelo acampamento (ou melhor, Jason corria e eu era puxado) até encontrarmos Quíron, conversando com alguns campistas, perto dos campos de morangos. Jason parou em frente a eles, ofegante, com a mão erguida pedindo tempo para respirar antes de falar. Logo que se recompôs, ele falou rapidamente com Quíron sobre meu pesadelo. Nosso instrutor centauro me olhava com o que me parecia uma mistura de medo, preocupação e pena. Não era um olhar muito agradável de se receber.

– Jason, junte os conselheiros dos chalés. – disse Quíron. – Sinto que logo teremos uma chamada do Acampamento Júpiter.

– Rachel e Ella? – perguntou Jason.

– Exatamente. Tudo isso não pode ser mera coincidência.

Jason saiu, me deixando sozinho com Quíron. Eu estava completamente confuso.

– Quíron, o que houve? O que o meu sonho tem de tão importante?

– David, fique calmo. Quando os conselheiros se reunirem na Casa Grande, quero que conte a eles seu sonho por completo. Não esqueça nenhum detalhe.

– Mas por quê? Foi só um sonho, não foi?

Quíron pensou um pouco antes de falar.

– Sim, foi só um sonho. Só temos que garantir que não se realize.

– Como assim, “se realize”?

– David, geralmente, quando semideuses tem sonhos, os deuses lhes mostram visões de coisas que podem acontecer, inimigos que terão de enfrentar e o que os está esperando.

As peças começavam a se encaixar no meu cérebro.

– Está dizendo... que eu, tipo, vi o futuro?

– Uma versão do futuro, sim. Mas nada que não possa ser mudado. Basta que nos diga em detalhes o que aconteceu e saberemos com o que estamos lidando.

Com essas palavras, Quíron me deixou nos campos de morangos.

*****

Um tempo respirando entre os morangos tinha me feito muito bem e já não estava mais tenso. Devia ser algo em torno de nove e meia da manhã, quando voltei à Casa Grande e me deparei com Quíron e os conselheiros dos chalés conversando ao redor de uma mesa de pingue-pongue. Clarisse estava terminando de falar quando me viram.

– Estou dizendo, ele é uma ameaça...! – ela me encarou. Todos na mesa acompanharam seu olhar.

– David. – Quíron acenou para que eu me aproximasse.

Respirei fundo e fui para o lado dele.

– David teve um sonho que acho que todos precisamos ouvir. – disse Quíron, me dando tapinhas nos ombros, me encorajando a falar.

Olhei para todas as pessoas sentadas ali, todos esperando que eu dissesse como o mundo ia acabar e todos morreriam. Fiquei tentado a mudar o tema da conversa para qualquer outra coisa. Encontrei Percy, Jason, Annabeth e Nico entre os conselheiros. Jason fez um sutil sinal de “positivo” com o dedão. Percy e os outros assentiram para mim, como se dissem “Pode falar. Está tudo bem”.

Respirei mais uma vez e contei o sonho inteiro, em cada detalhe. Como a mansão me parecia familiar, a silhueta de garota que me chamava e das pessoas que a acompanhavam, a cidade queimando em ruínas e os campistas morrendo. Por mais que eu quisesse, não consegui esconder a lembrança de Annabeth segurando minha perna, e morrendo logo depois (embora Percy, com certeza, preferisse que eu tivesse guardado essa última parte pra mim). Quando contei da voz estranha, Clarisse quase voou na minha garganta.

– Eu sabia!! Você vai destruir a todos nós, cria de titã!!

– Clarisse, cale essa boca!! – exclamou Percy.

– Cale você, Jackson! – ela retrucou. – Você acabou de ouvir o que ele vai fazer! Temos que nos livrar dessa cria de titã!

– E por que acha que é o David que vai destruir tudo? – perguntou Will Solace, do chalé de Apolo, fazendo Clarisse hesitar. – Se ele quisesse mesmo acabar conosco, não faria o menor sentido ele contar sobre esse sonho.

– Não... não tenho a menor ideia do que se passa na cabeça dele! Só sei que ele é perigoso!

– Ou só está com inveja porque ele te deixou sem ação naquela luta. – disse Connor com ar travesso, fazendo brotar risinhos ao redor da mesa.

Clarisse ia começar outra série de argumentos agressivos, quando uma imagem tremeluziu sobre a mesa, como uma tela de videoconferência. Uma mensagem de Íris. A imagem mostrava uma garota ruiva, sardenta, uma mulher de cabelos e penas vermelhas e um garoto de um olho só.

– Quíron! Quíron! – chamou a garota ruiva.

– Sim, Rachel? Estamos ouvindo. – disse Quíron.

– Estavam em reunião? Ótimo, isso nos poupará tempo.

– Oi, Percy! – disse o garoto ciclope.

– Tyson, agora não é hora para isso! – disse Rachel. – Prestem atenção, eu e Ella conseguimos transcrever outra profecia dos livros sibilinos!

– Ella e Rachel conseguiram. – disse a harpia vermelha.

Todos na mesa ficaram imediatamente tensos.

– E que profecia foi essa, Rachel? – perguntou Quíron.

Ela pegou um pedaço de papel, e começou a ler.

“O Herdeiro do Titã será encontrado,

por seus amigos e aliados.

Mar, Fogo, Céu, Sol, Sabedoria e Amor

hão de lutar.

E, com uma flecha de Apolo,

o mundo ou um coração irá se quebrar.”

Agora era eu quem estava tenso. Todos na mesa me encaravam como se eu fosse explodir em uma fissão nuclear. Era sobre mim que a profecia falava. Eu era o Herdeiro do Titã.