O Médium escrita por slytherina


Capítulo 1
oneshot


Notas iniciais do capítulo

Local: Connecticut. Ano: 1935.



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Jonah arrumou as cadeiras do salão principal da funerária. Os parentes do defunto saíram lentamente. Alguns sinceramente consternados com o passamento do velho comerciante. Outros estavam ali apenas por convenção, cumprindo formalidades, como os credores e rivais do morto.


Um deles não se retirou. Jonah o observou bem. Já o vira antes por ali, em outros funerais. Se ele não achasse estar obcecado com a idéia, poderia jurar que aquele indivíduo esteve presente em todos os serviços fúnebres daquela casa, por pelo menos as duas últimas semanas. Um pensamento lhe cruzou a mente, e Jonah quase deu um tapa na própria cabeça, por ser tão lento das ideias.


Resolveu se aproximar do cidadão. Retirou um cigarro do bolso e ofereceu ao outro homem com um gesto. Este recusou balançando a cabeça, enquanto olhava vividamente para ele.


- Não quer fumar porque não gosta, ou porque não pode? - perguntou Jonah.


- Você é observador. Realmente fui um fumante nos meus tempos, mas agora mal consigo segurar algo nas mãos. Prazer em finalmente conversarmos. Meu nome é Francis, e eu sei que seu nome é Jonah.


- Por que está aqui, Francis? Não teria que seguir seu caminho, rumo ao paraíso?


- Isso se tornou impossível para mim, meu caro, o seu patrão me aprisionou.


- O que?


- Seu patrão. O respeitável Ramsey Aickman. Ele prendeu meu corpo carnal neste edifício. Agora não posso mais sair daqui. Nem céu, nem inferno, apenas essa prisão.


- Com quem está conversando, Jonah? - Uma voz suave e feminina se fez ouvir. Jonah reconheceria essa voz em qualquer lugar do mundo.


- Clara! O que faz aqui? - Jonah se levantou e procurou a esguia figura de sua namorada, para um abraço apertado, no que foi correspondido.


- Vim ver por que você demorava a vir falar comigo. Parecia que estava conversando com alguém, mas não há ninguém aqui. A outra pessoa já se foi?


Jonah virou-se para o espírito chamado Francis, e este continuava sentado no mesmo lugar, observando-os com um sorriso condescendente.


- Já! Já foi, querida. Por que não vamos sair um pouco e se afastar do clima desta casa, hã? - Jonah falou beijando as mãos da garota, que aquiesceu com um sorriso.


Clara era uma excelente jovem. A mulher de seus sonhos. Futura mãe de seus filhos. E o melhor de tudo, ela o amava, mesmo sendo ele um 'joão ninguém', um aprendiz de coveiro, faxineiro em uma casa funerária, e médium nas horas vagas.
Ele sabia de casos em que os médiuns ganhavam muito dinheiro, apresentando-se em shows para o entretenimento das massas, ou atendendo a clientes vips, prometendo a solução de seus problemas. Infelizmente não poderia fazer nenhuma dessas coisas.


Na cidade em que morava, todos o conheciam e absolutamente não acreditariam se ele se apresentasse como um místico, que consegue ver e falar com os mortos. Muito pelo contrário, provavelmente seria acusado de charlatanismo, e seriam arremessados tomates em sua cabeça. Um santo numa faz milagre em sua casa, já dizia o ditado.


O trabalho com Ramsay Aickman, por outro lado, era sério e importante. Todos respeitavam aquele homem, e pagavam muito bem por suas séances, ou sessões espíritas. Jonah era só o meio que Ramsay tinha, para veicular seu carisma e sua forte personalidade.


Um dia ele juntaria dinheiro suficiente pra comprar uma casinha, e então se casaria com Clara. Trabalhariam em empregos modestos, mas teriam um ao outro, alguns filhos e muito amor no coração. Ela só teria que esperar um pouquinho mais, pra esse sonho se realizar. Então seriam felizes para sempre.


Até lá, sua vida pertencia a Ramsey Aickman.


No dia seguinte, ele foi chamado por seu chefe para fazer um trabalho extra. Teve que carregar corpos para o porão, onde o velho homem daria início ao processo de embalsamamento dos mortos. Os corpos foram despidos de suas roupas civis, com as quais deveriam ser enterrados, e então dispostos na mesa de trabalho do agente fúnebre.


Após terem aplicado os produtos químicos que manteriam os corpos íntegros, por mais tempo, retardando o apodrecimento natural da carne, Ramsay Aickman começou então a escarificar... não, ele começou a escrever coisas nos corpos, com um bisturi. Jonah não entendia bem aquilo, mas pareceu errado. Ele notou a presença de Francis em um canto da câmara mortuária. Ele estava sério, e algo zangado. Jonah resolveu falar algo, pois aquela situação o deixava desconfortável e ... com medo.


- O que está fazendo, Senhor Aickman?


- Não deveria me interromper, Jonah. Estou tentando me concentrar. Fique em silêncio.


Jonah se calou, mas podia sentir o grau de irritação e desaprovação em Francis, que agora cruzara os braços sobre o peito. Jonah agora observava de Aickman para Francis, e podia perceber que havia ódio ali. Se um sentimento negativo pudesse matar uma pessoa... bem, Aickman não duraria muito tempo.


Aickman fez o mesmo com dois outros corpos. Inclusive recortou suas pálpebras, para que seus olhos sempre ficassem abertos. A seguir colocou os corpos em gavetas, enquanto que nos caixões... colocou sacos de areia.


- Senhor Aickman... tenho certeza que isso é contra a lei.


- Se a família nunca souber, não fará nenhuma diferença. Além disso, precisamos da presença dos espíritos nos trabalhos que fazemos.


- E se... e se os espíritos não quiserem ficar aqui? Se eles preferirem ser enterrados, como deve ser?


- Isso não passa de convenção. Preciso deles para lidar com o sobrenatural. Você é um médium, mas não é forte o bastante. Com todos estes mortos ao meu lado, sob meu julgo, posso realizar grandes coisas.


Jonah o olhava atônito, como se não o reconhecesse.


- Não se preocupe Jonah, aumentarei seu salário, pelo serviço extra.


Jonah olhou para um canto distante. Francis continuava lá, e estava irado. Isso não estava bem.


As sessões de séance, eram o verdadeiro ganha pão de Ramsey Aickman. Milionários o pagavam muitíssimo bem, para acompanharem uma das sessões de comunicação com espíritos. Jonah era possuído por espíritos de mortos dos mais variados tipos. Ele tinha uma vaga lembrança do que era falado e que situações eram postas em movimentos, graças ao seu trabalho, mas uma coisa era certa, Aickman ficava cada vez mais rico.


Ramsay Aickman era um apresentador de espetáculo, e como grande artista que era, procurava oferecer o melhor e o mais exuberante show que a audiência já havia visto. Não é de se espantar, que depois de ouvir falar de "materialização de ectoplasma", ele também quisesse incorporar essa atração nas séances.


Jonah foi treinado para conseguir fazê-lo. Quanto mais ectoplasma saísse de sua boca, melhor. De onde vinha toda essa matéria? Aparentemente do próprio corpo de Jonah, embora também fosse utilizado ectoplasma proveniente de todos os espíritos armazenados no porão de Aickman. Jonah sentia-se sufocar com toda aquela história.


Uma manhã, quando estava limpando a cozinha da funerária, Francis aproximou-se dele.


- Tem ideia do que é ser um escravo?


- Tenho... mas eu não posso fazer nada, Francis. Ele é mais forte e importante do que eu. Talvez uma outra pessoa possa ajudá-lo... eu sou apenas um pobre serviçal.


- Você tem razão, mas escute bem. Aos olhos dos outros espíritos, você é cúmplice de Aickman. Tão culpado quanto ele, e tão odiado quanto.


- Não há nada que eu possa fazer quanto a isso... talvez apenas rezar.


- Escute... você pode fugir daqui. Ir para bem longe. Recomeçar do zero. Nunca mais se envolver com o mundo dos mortos, e então... talvez você seja poupado.


- Poupado do que?


- Da ira dos espíritos escravizados por Aickman.


Jonah ficou encarando Francis, tentando absorver tudo o que estava contido naquela simples frase. Aquilo soava mais como uma ameaça, um aviso, ou ultimato. Um barulho nas suas costas chamou sua atenção. Ele virou-se sobressaltado. Era somente Mary, a cozinheira, que havia deixado cair um utensílio de cozinha. Ele ainda tinha coisas a perguntar a Francis, mas resolveu sair da cozinha.


O aviso ficou martelando em sua cabeça. A idéia de fuga lhe pareceu irracional, mas se o mundo sobrenatural planejava algo funesto, ele não ficaria no caminho. Talvez Aickman merecesse castigo, mas não ele. Jonah apenas fizera o que lhe mandaram. Resolveu fugir, mas antes falaria com o patrão, para pedir seu salário.


- Senhor Aickman, eu quero me demitir desse emprego.


- Você o que?


- Quero me demitir desse emprego. Não trabalho mas nem um dia para o senhor.


- E o que pretende fazer, rapaz? Trabalhar na roça?


- Talvez, isso é problema meu.


- E pretende se casar com aquela mocinha, como é mesmo o nome dela? Ah, sim! Clara!


- Isso não é da sua conta.


- Conheço os pais dela e eles me tem em grande consideração. Uma palavra minha, e você será proibido de voltar a falar com ela. E quem sabe, eles podem até arranjar um casamento proveitoso para ela, com um rico empresário.


- O que...


- Por que você acha que eu o deixaria livre por aí, Jonah, quando é meu servo mais útil e produtivo? Se eu aprisiono espíritos, por que não aprisionaria você também?


Ao ouvir aquelas palavras, Jonah saiu correndo do escritório de seu patrão. Antes que pudesse alcançar a saída, foi pego, manietado e trancado no porão, junto aos cadáveres dos mortos. Passou ali um dia inteiro, a pão e água. Os espíritos escravos estavam ali também. Jonah pôde vê-los. Aparentemente, eles não o percebiam, apenas choravam e se lamentavam, como se enlouquecidos.


- Eles sofrem, estão cegos para as condições em que se encontram, mas eles sabem que você e Aickman são os responsáveis por seu desespero. Eles sabem que serão usados na próxima séance, e o nível de revolta e ódio é extremo.


Jonah olhou para Francis, que lhe falava. A despeito de seu aprisionamento, Francis era calmo e comedido, não estava em frangalhos como os outros espíritos.


- Você parece calmo, como se isso não o afetasse tanto, Francis.


- Quando vivo, eu me envolvi em contatos com o mundo dos mortos. O conhecimento abre a mente, e permite que vejamos as coisas com mais serenidade, mas eu também sou um prisioneiro, Jonah, e eu também sei que Aickman deve ser parado. Os espíritos aqui presos querem vingança. Eles querem matar a todos.


- E você, Francis, também me odeia?


- Eu já o perdoei. Mas sou impotente para controlar essa turba. Cuidado, Jonah! A materialização de ectoplasma pode resultar mais forte que você está esperando.


- Mais forte como?


- Ao invés de matéria, pode materializar energia pura, como uma arma mortal.


- Não, não... eu não sou capaz de fazer isso...


- Não entendeu ainda, Jonah? Não é você que faz, mas os espíritos.


Neste momento a porta do porão se abriu e outros empregados, mais parecidos com capangas, vieram buscar Jonah para a sessão de séance.


E esta seria a última vez em que seria visto com vida.


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