Premonição Chronicles 2 escrita por PW, VinnieCamargo, MV, Felipe Chemim, Jamie PineTree


Capítulo 3
Capítulo 03: Sereia


Notas iniciais do capítulo

Escrito por PW.



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ANTES

Nina arfou, seguido de um último espasmo e gemido, fazendo um trajeto mental rápido até as nuvens, e voltando com a mesma velocidade, num misto de prazer e felicidade instantânea.

Do lado de fora do casarão da família Lemos, o brilho do sol no início da manhã incandescia o quarto, com a grande fresta de luz que entrava pela janela, ricocheteando na parede e refletindo sobre o chão e o teto. Um belo contraste reluzente, que fazia jus aquele término de intimidade entre o casal. Ícaro abriu um largo sorriso, com seus dentes extremamente alinhados e envolveu a namorada num abraço quente e aconchegante.

A jovem aninhou-se nos grandes braços do homem e deu um sorriso doce, encarando as cortinas azuis da janela, balançarem com a brisa. Naquele instante sentiu-se segura por tê-lo consigo, lhe acalentando e protegendo. Ícaro era sua fortaleza. E a última coisa que Nina queria, era se despedir dele pela segunda vez.

Nina deitou a cabeça solenemente sobre o peitoral do namorado, visto que seus cabelos dourados se espalharam. As suas feições angelicais escondiam sua coragem e determinação. Os olhos azul-celeste, o nariz grego e seus lábios carnudos faziam parte do rosto alvo, que parecia ser lapidado a mão por um artista genuíno. Com o formato rudimentar dos maxilares, Nina chegava a transparecer um ar mais hostil, mas aquele era de longe, seu maior e improvável extremo.

Ela fechou os olhos, na esperança de moldar uma cena em sua mente, onde estaria junta de Ícaro, de mãos dadas, na Ilha Vermelha. A água estaria batendo contra as pedras e o fim de tarde invadia qualquer coisa que os rodeassem, fossem a vegetação, as rochas ou até as lindas construções antigas... O lugar receberia o casal em breve. Para ser mais exato, em trinta e seis horas. Um cruzeiro partiria do porto da cidade em direção ao arquipélago Tríade Atlântica, onde ficava a localização exata do destino final dos dois.

Nina permanecia ansiosa pela viagem, tanto por estar indo com o homem, que ela julgava ser o melhor companheiro que ela poderia ter, como por estar prestes a encontrar a porta que lhe levaria para seu futuro. Esta porta era chamada de Animal Rescue e esta organização mundial de proteção animal iria ajuda-la a firmar-se na carreira que tanto batalhou para conseguir, a Biologia Marinha.

O apego da loira para com os bichos era muito grande, de modo que ela sempre tratou de criar alguns e trata-los com muito carinho. O apreço pela vida dócil e selvagem dos animais lhe tornou aquela pessoa mais amigável, aberta e compreensível. Esses eram alguns dos diversos estímulos que a levaram a escolher a biologia como ramo de estudo e trabalho, e era naquilo que ela esperava encontrar a eterna gratidão. No fim, desejava poder agradecer a si mesma por tudo que fez aos animais, desde os pequenos aos grandes atos.

Nina foi tirada de seus devaneios com o beijo no topo da cabeça. Abriu os olhos e viu Ícaro se erguer da cama. Ele estava nu e parecia estar caçando algum pertence. Quando achou o que procurava, ergueu o aparelho celular e balançou.

– Bem que eu achei ter ouvido ele tocar algumas vezes enquanto transávamos. – Ícaro disse num tom de reprovação. – Três chamadas não atendidas.

– Foi por isso que terminou mais rápido do que de costume? – A loira brincou.

O rapaz devolveu com um sorriso torto de com uma expressão de “você venceu”, e caminhou até o banheiro, arrastando os pés pelo piso marrom amadeirado. Nina achava seu andado bastante sexy e adorava vê-lo andar pelo quarto completamente nu, pois achava sua bunda surpreendentemente excitante. A loira riu baixinho e enrolou-se no cobertor branco, ficando de pé e indo até o guarda-roupas, onde pegou um blusão qualquer do namorado e pôs em cima da cama.

Indo até a porta do banheiro e se escorando na mesma, indagou:

– Essa viagem vai ser maravilhosa, você não acha?

Com o chuveiro ligado, a audição de Ícaro ficou limitada.

– O quê?

– Você não acha que essa viagem será maravilhosa pra gente?

– Claro que será, meu amor! – Gritou ele, enquanto deixava a água escorregar pelo corpo malhado, resultado dos treinamentos intensivos na base militar e das horas na academia para manter o físico condicionado.

Empolgada, Nina sentou novamente na cama e pôs o notebook do namorado no colo. Verificaria como estava o andamento do seu fórum de adoções. Assim que carregou a página, ela pôde visualizar o número de acessos, que continuava razoável diante dos outros dias da semana. Comemorou por alguns segundos e viu que sua amiga virtual Ana Carolina, ou Lana, como era comumente conhecida, havia comentado uma de suas publicações sobre a viagem e em como ela iria ajudar as novas espécies nativas de animais da ilha.

“L. Flowers: Estou muito feliz que tenha aceitado o convite da Animal Rescue para fazer parte da equipe deles. Olha que responsabilidade você tem nas mãos! Não desperdice essa oportunidade, ok? Quem sabe esse seu web-projeto decola de uma vez e vira uma ONG... Nossa, estou feliz que logo estaremos nos conhecendo, porque esses três dias na Ilha Vermelha serão os melhores das nossas vidas (minha e do Greg) e você também fará parte disso tudo, olha só que demais! Ansiosa, Nina, beijão!”

O sorriso que Nina abriu ao ler o comentário era imensurável.

As duas se conheceram no próprio fórum da loira, quando Lana apareceu, querendo adotar dois cães abandonados. A partir daí, já depois da burocracia ter sido realizada e dos cães terem ido para o novo lar, Nina e Lana passaram a conversar periodicamente, até evoluir para um estágio de constância e acabarem se tornando amigas virtuais. Finalmente, depois de meses se falando apenas pela tela do computador, havia chegado a hora de se conhecerem pessoalmente, por intermédio do destino. Ela aproveitaria e conheceria um dos seus maiores ídolos virtuais e companheiro de Lana, João Gregório, o famoso youtuber Greg Kaulfuss.

XXXXX

No cais da cidade, o vento chegava a assemelhar um vendaval, mas Nina não estava preocupada com o mesmo, e sim, com a demora de Ícaro em voltar do banheiro de um barzinho localizado ali mesmo. Com uma das mãos, a moça segurava o chapéu de sol na cabeça, para que o vento não fizesse o desprazer de levá-lo embora. Com a outra, ela impedia que a barra do vestido florido e colorido, levantasse. Permanecia sentada num apoio de madeira, com as malas ao lado.

Bem a sua frente, o imponente navio Empire XIII, o responsável por conduzir a ela e ao companheiro à Ilha Vermelha. Ela nunca havia visto o lugar, mas ao contrário da Ilha Vermelha, Nina já tinha feito uma visita à Fernando de Noronha, outra das três ilhas que formavam o arquipélago Tríade Atlântica, para um extenso trabalho de conclusão de curso. Apesar dos pesares, ouvia muito os rumores de que se tratava de um verdadeiro paraíso tropical. Não via a hora de embarcar e ter a sensação da diversão se aproximando. Seria pouco mais que um dia de viagem, e era provável que chegassem antes do meio-dia do dia seguinte.

Por alguns segundos, teve a impressão de ver alguns fotógrafos passando pelo local e ouvir uns gritos histéricos, enquanto se aproximava do porto, mas não prestou muita atenção, pois a mistura de vários sons ambientes atrapalhara, como: as gaivotas sobrevoando acima de sua cabeça, as ondas quebrando contra o paredão de rochas, alguns pescadores que tinham voltado de viagem em alto mar, dentre outros.

O barulho ensurdecedor que o navio fez em seguida assustou a loira, que quase caiu do apoio de madeira. O aviso de que o Empire XIII estava partindo foi dado e ela, já impaciente, sussurrava coisas ininteligíveis para si, olhando a imensidão branca da lateral da embarcação.

Ícaro apareceu, tirando os óculos escuros, que outrora estavam sobre os olhos, e pondo-os no topo da cabeça. Os olhos azuis-anis do homem nunca pareceram tão brilhantes sob a luz do sol e os cabelos negros balançavam com o vento. O sol estava escaldante, e apesar do vento forte, o calor não amenizava. O homem abriu a garrafa d’água que trouxe do bar e bebeu alguns goles, oferecendo para a loira em seguida.

– Se não entrarmos agora, ficaremos para trás. – Ela comentou, pegando uma mala-de-mão, a gaiola para animais e carregando outra de maior de rodinhas até a escada de ferro que separava o navio do porto.

Ícaro vinha logo atrás, trazendo as outras malas, e por mais que carregasse mais bagagens que a namorada, ele fazia aquela tarefa ser mais fácil e prática. Logo ele a alcançou e sorriu.

– Ok, Superman, você é mais rápido e mais forte, já entendi. – Nina riu de lado, resignada pelo desafio. E até certo ponto, ela tinha razão, pois a maioria das malas era pesada. Era a bagagem do casal, para mais de quatro dias. O plano inicial era ficar um pouco mais que apenas o fim de semana.

Ainda caminhando pela longa plataforma de metal, Nina arriscou olhar para baixo, a água já estava longe o bastante para ela ter uma vertigem. Segurou no corrimão rapidamente, e por pouco não deixou que uma das bagagens de mão caísse lá embaixo. Se não fosse pela jovem mulher que vinha logo atrás, seu kit de primeiros socorros estava indo em direção ao fundo do mar, naquele exato momento.

Nina virou-se, desconsertada pelo ocorrido. O rosto da loira corou de imediato e um sorriso trêmulo apareceu no mesmo. A bela mulher no traje simples e despojado tirou os óculos de sol e mostrou um sorriso. Os cabelos negros estavam com um penteado metódico, num corte típico masculino. Pelo que Nina deu pra ver, o corpo era magro, encaixado dentro de um porte atlético, pele em tom bronzeado, na medida do possível e as feições maduras escondiam o que poderia ser a casa dos trinta anos.

– Obrigada. – Nina falou.

– Não precisa agradecer. – A mulher retrucou. – De alguma forma eu vi a mala caindo lá embaixo antes e... – Quando notou a face confusa da loira, a jovem mulher calou-se e corou imediatamente.

– Como você... – Arrependeu-se de prosseguir. – Muito obrigada mesmo. – Ela pôs um pouco de cabelo para trás da orelha e continuou: – Nina Brandão, prazer. – E estendeu a mão livre.

– Anna Clara del Sol. – A mulher cumprimentou-a.

– Nome bonito, Anna.

– Obrigada. Nina é um nome muito bonito também.

Então, Nina notou a pequena criança puxando a blusa da mãe, chamando sua atenção. A garotinha era oriental, e o homem alto parado atrás dela, também era claramente asiático. Os dois eram muito parecidos e Nina logo deduziu: são o marido e a filha dela... Porém, ao contrário dos dois, Anna não era oriental. Um rapaz vestido com uma blusa gola polo, com o emblema do Empire XIII apareceu na porta e pediu que entrassem, pois a embarcação estava pronta para partir.

Quando Nina entrou, não viu mais Anna Clara ou sua família. Só estavam ela e Ícaro na espantosa recepção do navio, onde um enorme e chamativo lustre balançava no centro. Os dois haviam sido os últimos a entrarem. Caminharam até o balcão e logo foram atendidos por uma das cinco recepcionistas distribuídas atrás do balcão de mármore.

Após entregarem as passagens, o casal recebeu alguns folhetos informativos e programáticos sobre o entretenimento das próximas horas que passariam no cruzeiro. A recepcionista voltou o olhar para a loira apoiada no balcão e disse:

– Quarto 0-8-1, suíte com cama de casal e hidromassagem. Reserva feita pela senhorita Eva Carmen Mendel, para Nina Brandão.

Nina assentiu e a atendente pediu sua identidade, assim que o fez, a loira ouviu atrás de si, o que parecia ser uma discussão. Ela agradeceu o bom atendimento da recepcionista e pegou novamente as malas. Enquanto isso, Ícaro estava carregando o resto da bagagem, distraído, analisando o panfleto programático.

Ambos passaram pelo corredor onde uma mulher de aparência refinada reclamava de algo relacionado à reserva de seu quarto. Não deram muita importância, seguindo para seus aposentos. Eles teriam um dia inteiro para apreciar o que o cruzeiro tinha a oferecer. Não demoraram muito, até achar o quarto 081.

XXXXX

Nina jogou-se na cama, sentindo sua maciez. Parecia cama d’água, mas ela sabia que não era. As malas estavam colocadas ao lado do móvel, de modo que, apenas uma dela estava desfeita e um vestido azul claro transparente estava ao lado dela, na cama, junto de um biquíni branco. Ela brincava com o pingente de seu colar, uma sereia, presente que ganhara de aniversário, de sua mãe.

Olhava pra todo o quarto, sem cessar os olhos, deslumbrada com o tamanho do cômodo e com sua elegância. A lâmpada acima dela tinha o formato de uma estrela-do-mar e ela achou-a engraçada.

Seu namorado saía do banheiro, vestindo uma camiseta listrada branca e azul, e uma bermuda caqui. Com os chinelos nos pés e a toalha no pescoço, ele andou até ela, enxugando o rosto.

– Antes de chegarmos naquela ilha vamos ter que experimentar aquela hidromassagem, combinado? – Ele largou a toalha num cabide opaco, colocado ao lado da porta. Foi até a janela e olhou pela escotilha. – O mar nunca pareceu tão infinito pra mim...

A loira riu dos dois comentários feitos por ele.

– Combinado, comandante! – Fez sinal de sentido.

Sentou-se na cama e sentiu um peso rápido sobre seu ombro. Não precisou olhar para saber que o pelo macio era de sua chinchila, Sidney Prescott. O roedor cinza de olhos negros expressivos e orelhas proporcionalmente grandes havia ganhado este nome pela afeição de Nina com os filmes slashers dos anos noventa. Sidney, da franquia Scream era sua protagonista e final girl predileta e ela não abdicaria deste nome à sua amada chinchila. O animal brincou alguns segundos com as madeixas loiras da bióloga e desceu de seu ombro, andando pela cama e passando a brincar com o biquíni sobre o vestido.

– Você vem comigo? – Ícaro despertou-a dos pensamentos distantes.

– Onde?

– Pra piscina, sereia, foi o que decidimos fazer primeiro, antes de chegar ao quarto, lembra?

Sereia, só ele mesmo pra me chamar assim... Pensou ela.

– Ah, claro, vou depois, tenho que me trocar.

– Não demora tá? Vou estar no bar, te esperando.

Nina piscou e o viu sair e fechar a porta. Sidney ainda brincava com a roupa de banho. A loira então a tomou em mãos e deixou que a roedora se divertisse somente com a toalha. Sid e suas manias estranhas.

Quando se ergueu da cama, Nina deparou-se com uma fotografia que havia caído da sua pequena bagagem de mão. Ela apanhou do chão e encarou a foto de maneira fixa.

Só nos últimos cinco meses
Eu já morri umas quatro vezes
Ainda me restam três vidas pra gastar

As mãos trêmulas, os olhos marejados, as pernas bambas. Na foto, sua irmã caçula, Anabel, sorria, fazendo um “v” com os dedos. Nina estava abraçada a ela, rindo. Tão descrente das barbáries do mundo, tão inocente. Foi difícil para Nina entender que Anabel não estava mais entre a família, pelo menos não de forma física. E também, demorou a acreditar que seguiria em frente sem a presença da pequena garota.

Foi ai que se lembrou da filha de Anna, a moça que a ajudou com o kit de primeiros socorros. Mesmo oriental, Nina recordou a feição angelical da garotinha e foi difícil extrair o pensamento do rosto de Anabel. Já fazia um ano desde o ocorrido e o buraco no peito da bióloga sarava gradativamente. O arrepio involuntário em seguida trouxe uma sensação estranha. Ela tratou de guardar a fotografia e se apressar, prometera a Ícaro não envolver a irmã caçula na viagem, não faria bem para ela. E Nina tinha plena certeza disso, pois lembrar o fato traria uma recordação difícil.

Definitivamente, uma parte da loira morrera com Anabel.

Era um mar vermelho
Me arrastando do quarto pro banheiro
Pupila congelada
Já não sabia mais de nada

XXXXX

Assim que a loira chegou ao convés superior, onde ficava a enorme piscina e o complexo de lazer, ficou boquiaberta. O sol deixava tudo mais brilhante, enquanto a movimentação das pessoas presentes completava o ambiente. O complexo era dividido em três: um bar, com cadeiras, mesas e guarda-sóis; As cadeiras de sol dispostas à beira da piscina, próximas da amurada, e por fim, o pequeno conjunto de tobogãs, que se encontravam e terminavam dentro da piscina. A primeira impressão era de diversão na certa.

Nina caminhou até o bar, com Sidney em seu ombro, comendo o que aparentava ser um bloco de algum legume. A moça lembrara que Ícaro tinha dito que esperaria no bar, então o avistou. O ex-militar da marinha estava diante de dois coquetéis, e tomando goles de um deles. Nina aproximou-se e lhe deu um beijo rápido, sentando junto dele à mesa. A sombra fresca sob o guarda-sol lhe trouxe alívio.

Sidney desceu do ombro da bióloga lentamente e pulou para o chão, parando embaixo da mesa. Roeu outro pedaço do legume. Nina começou a mexer no canudo, distraída, somente encarando o líquido vermelho no copo. O pequeno enfeite no topo do recipiente dava uma impressão de bebida tropical.

– Essa bebida é maravilhosa. O senhor do bar disse que é afrodisíaca. – Ícaro comentou, olhando-a com malícia.

– Sério?

Nina arriscou beber um gole, para comprovar. Junto ao sabor adocicado da bebida, veio o gosto de álcool. De imediato Nina recuou o copo até a mesa.

– Quero ficar longe do álcool por esses dias. – E suspirou. – Mas o gosto da bebida é realmente muito bom.

– Qual é, Nina... Mais tarde vamos tomar um ótimo vinho no pequeno jantar com direito a apresentação acústica, que vi na programação pra hoje. – Ícaro tentou uma expressão de súplica. – Não pode fazer essa exceção?

A jovem ficou em silêncio por breves segundos e disparou:

– Primeiro a bebida afrodisíaca, agora você fala do vinho... Quer se aproveitar, marinheiro?

– Claro que não. Até porque você nunca precisou ficar bêbada para termos uma noite de amor, concorda?

As bochechas dela coraram no exato momento do comentário do namorado. Ficou acanhada, mas tratou de retrucar:

– Ok, dessa vez você venceu, mas só por hoje. – Sorriam simultaneamente.

Nina bebeu mais dois goles da bebida avermelhada e se levantou da cadeira. Olhou em volta, arrumou o chapéu de sol e se encaminhou até as cadeiras na beira da piscina.

– Você pode dar uma olhada na Sid pra mim? Vou tomar um pouco de sol, estou precisando. – A loira deitou na cadeira de praia e pôs os óculos escuros.

Ícaro assentiu e olhou para a mesa, sem avistar o animalzinho de estimação. Ergueu-se discretamente da cadeira e olhou para o chão. E nada de Sidney. Onde diabos aquela ratinha foi parar? O homem arrodeou a mesa e, em seguida, mudou o curso do olhar para o bar. Nenhum sinal da chinchila. O homem levou as mãos à cabeça, frustrado com o sumiço do animal. Pensou em contar para a namorada sobre o desaparecimento da roedora, mas preferiu não preocupá-la e procurar a chinchila por contra própria.

Porém, antes que ele começasse as buscas pelo bar, Nina já estava parada, de pé na beira da piscina, encarando-o.

– Algum problema com a Sid?

Ícaro respondeu com um olhar vago. A loira entendeu de imediato.

– Onde ela está? – Não houve resposta dele. – Ícaro, onde está a Sid?

– Eu não sei, quando eu olhei, ela não estava mais lá. Foi num piscar de olhos. – Não estava se importando com a ausência de palavras adequadas pra explicar o ocorrido.

– Como você... – Ela optou por se conter. – Como foi deixar isso acontecer? – Um vento forte lambeu os cabelos dourados da bióloga, arrancando-lhe uma onda de eletricidade.

– Pra começar, ela nem deveria estar aqui. Deveria ter ficado no quarto! Sabe como ela é inquieta.

A sequência aconteceu em poucos segundos. O copo com o resto da bebida de Nina foi derrubado da mesa com a força do vento. O líquido vermelho se espalhou pelo convés. Uma adolescente passou correndo pelos dois e escorregou no líquido. O baque da sua testa contra a beira da piscina fez um barulho oco. O corpo da garota deslizou pra dentro da água logo depois.

O instinto de Ícaro foi correr na direção da piscina para pular, mas sua namorada foi mais rápida e entrou na água antes que ele pudesse protestar seu ato. Nina alcançou o corpo desmaiado da garota, antes que chegasse ao fundo, e como uma exímia nadadora, trouxe-a a superfície. Assim que saiu da água, com a ajuda de Ícaro, notou outra garota ao lado dele. Ao contrário da que caíra na piscina, de cabelos castanhos e pele clara, esta era loira e tinha um olhar penetrante.

Nina logo notou o pequeno hematoma que se formou próximo da têmpora da jovem, que ainda permanecia desacordada em seu colo, na beira da piscina. Algumas pessoas se aglomeraram ao redor deles. A bióloga ficou sem ar por breves segundos, pela proximidade das pessoas estar atingindo de certo modo, sua claustrofobia.

Não demorou muito para que a garota no colo de Nina começasse a tossir e mover os cílios, anunciando que iria abrir os olhos.

– Ela está acordando! – Ícaro disse.

– Ai meu Deus, Ruth! Você está bem? – Nina analisou a postura da garota loira e maquiagem pesada ao seu lado. Ela aparentava estar bastante preocupada. Deduziu ser sua amiga.

– Acho que o ferimento na cabeça não foi grave. – Seu nome era Ruth, Nina havia ouvido. Ela sussurrava, tremendo os lábios, como se estivesse com frio.

– Você deu sorte garota. – A bióloga falou. – Meu nome é Nina, esse é meu namorado, Ícaro. – O homem acenou positivamente com a cabeça.

– Muito... Obrigada...

– Não precisa me agradecer, só não bata com a cabeça de novo e caia na piscina. – Sorriu.

Ela sentiu quando Ícaro cutucou-a com o cotovelo e disparou:

– Ei, eu vi a Sidney correndo para debaixo de uma das mesas.

Empolgada, Nina deixou a garota nos cuidados da amiga e se ergueu.

– Olha, lamento, mas não posso ficar mais, preciso encontrar a Sidney Prescott.

E saiu andando, olhando pelos quatro cantos do bar, a procura da pequena chinchila. Ícaro ainda cochichou algo com as garotas e a seguiu. Nina abriu um sorriso quando localizou o pequeno roedor cinza embaixo da mesa em que outrora ela estava. Abaixou-se e deixou-a subir em seu ombro.

– Nunca mais faça uma coisa dessas comigo, Sid! – E abraçou o animal com a maior ternura do mundo.

– Que tal um champanhe na hidromassagem pra comemorar? – Ícaro murmurou, enquanto saía do convés superior ao lado da namorada.

– Não é uma má ideia, preciso relaxar e me preparar para o jantar.

XXXXX

Enquanto um instrumental de violinos soava pelo salão carregado de mesas e decorações exageradamente elegantes, Ícaro puxava a cadeira para Nina. A loira sentou e agradeceu o cavalheirismo. Estranhou o ato no primeiro momento, pois fazia tempos que ele não repetia o gesto, desde que os dois voltaram a ficar juntos, após o fatídico término da relação, que acontecera há cinco meses.

Desde então, aos poucos, Ícaro vem tentando reconquistar cada pedaço de Nina. Cada pedaço que ele deixou escapar entre os dedos quando decidiu ir além do limite naquela noite. E ele lembrava muito bem do feito. Ela também, mas nunca tocou no assunto novamente.

– Quer fazer o pedido agora? – Ele tomou o menu em mãos.

– Ainda não sei o que pedir. Passo as páginas e só vejo peixe. Ensopado de peixe, Peixe grelhado, Peixe ao molho indiano... Sem falar nos outros pratos, Escargô e Filé de enguia? Nossa quanta covardia com esses bichinhos. – Analisava cada centímetro do cardápio. – Eles não têm salada?

– Olha, tem como acompanhamento na carne de javali, que tal?

– Amor, sabe que tenho pavor de carne vermelha ou carne de qualquer outro animal. E me admira você gostar disso, já que lutamos pelas mesmas causas. – Suspirou. – Mas meu sonho está mais próximo do que nunca. Logo que eu me firmar na Animal Rescue, irei começar a batalhar pela realização física do meu fórum online. Vou transformá-lo em realidade, você vai ver! Eu quero ajudar os animais, me sinto na obrigação de protegê-los, entende?

– Esse é o verdadeiro espírito ativista, sereia. – Ele arrumou o colarinho da blusa social. – Porém, uma coisa você tem que entender: você não pode proteger todos. Há sempre aquele que fica vulnerável e exposto, sempre vai haver... – Então tocou sua mão, enquanto notava a chegada do metre com o vinho.

O homem encheu meia taça para os dois e se retirou rapidamente.

– Eu quero me tornar a heroína que acho que mereço ser.

– Claro, e não vou te impedir disso, mas às vezes precisamos abdicar do otimismo pra cair no realismo.

Os dois riram um para o outro.

Passado o momento, Ícaro decidiu começar pelo vinho, então chamou o metre e pediu que ele lhe trouxesse o vinho de maior qualidade da adega do restaurante “El Dieciocho”. Nina então, notou o palco atrás de Ícaro, no canto do salão, onde os instrumentos já estavam apostos para receber a atração da qual ele havia falado mais cedo.

– Sobre quem você estava falando mais cedo? A apresentação acústica.

– Lis.

– Lis quem?

– Ué, amor. Lis, aquela cantora teen, que tinha um namorado babaca, que levou uns socos por ter dado em cima de você na festa de negócios do pai dela.

– Nem me lembre daquela noite, nossa, foi horrível... E você não precisava ter feito aquilo.

E nem tinha necessidade de recordá-la sobre o fato, pois Nina lembrava muito bem. A “festa do branco” inicialmente teria sido um convite para os pais de Nina, mas a garota acabou indo no lugar deles, para representa-los e levou Ícaro junto. Ela só não contava com o acompanhante de Lis, a cantora teen da qual o militar falava. A garota já havia extrapolado na bebida, e tinha perdido os sentidos, não era atoa que ela não fez praticamente nada para conter o avanço do rapaz contra a bióloga, que na época ainda cursava biologia.

Ícaro não gostou nada do movimento obsceno que ele mostrou para Nina, ao segurar o membro indiscretamente, enquanto permanecia sentado ao lado da garota. A loira tentou se afastar, mas ele segurou seu braço. Aquela sequência foi a gota d’água para Ícaro, que até então estava tentando ser paciente, visto que o garoto estava visivelmente drogado e o militar já tinha se excedido em uma outra ocasião e não tinha acabado bem.

Com dois socos certeiros no rosto do rapper, acertando seu nariz e maxilar, o fez tombar no sofá e ficou estirado por um bom tempo, até as pessoas ao redor perceberem o que tinha ocorrido ali. Nessa altura, Ícaro e Nina já tinham ido embora da festa e ele não seria responsabilizado pelo nariz quebrado do viciado.

A voz que ecoou pelo salão despertou Nina das lembranças. Lis já se apresentava. Um garçom chegou à mesa com uma bandeja, trazendo um prato.

– Esta é a entrada, por conta da casa.

A loira olhou para o que estava sendo servido e sentiu um embrulho no estômago. Lagostas e outros frutos do mar, num prato decorado com camarões e ostras. A bióloga não aguentou e se levantou da cadeira. Andou entre as mesas, na direção da saída.

– O que aconteceu?

– Vou falar com ela, foi mal pelo transtorno. – Ícaro comentou, indo atrás dela.

Já fora do salão do restaurante, Nina murmurou:

– Desculpa amor, eu não estou bem.

– Isso por causa da comida? Poderíamos pedir o javali, mas sem o javali... Só a porção de salada e-

– Ícaro, não é só por causa disso. A verdade é que eu não consigo ficar lá ouvindo a Lis cantar. – Sua expressão mudou de repente. – É que a Anabel adorava a Lis, ela tinha o cd dela. Toda vez que ela canta, eu vejo a Bel no pensamento. Desculpa se eu atrapalhei o nosso jantar.

Ícaro não disse mais nada. Apenas a abraçou forte.

Pálido, doente
Rendido, decadente
Viver parece mesmo
Coisa de insistente

XXXXX

O navio ancorou no porto da Ilha Vermelha no começo da tarde. A maioria dos passageiros já desembarcou. Nina desceu a plataforma, carregando as bagagens com a ajuda de Ícaro. Ambos analisavam quão bonita era a paisagem diante dos olhos. A ilha era impressionante: o verde das matas em contraste com o marrom das rochas e o colorido das construções. E havia muita gente, fazendo diversas coisas ao mesmo tempo.

Um grupo seleto de pessoas estava apostos para começar o que parecia ser um tour pela ilha. Nina tentou animar-se, depois de ter perdido o pequeno colar de sereia, enquanto saia do quarto com as malas.

– Vamos participar da excursão! – Disse, se recompondo com a empolgação.

– Com todas essas malas?

– O tour acontece apenas uma vez por dia. E provavelmente amanhã não tenha por conta do campeonato de surf e os preparativos para o show que vai acontecer no domingo. Se eu fosse vocês, aproveitaria cada segundo como se fosse o último, amanhã poderão não participar da expedição. – A voz era feminina e calma.

Nina olhou para a direção da voz e se deparou com uma moça de cabelos castanhos, rosto infantil e vestimentas no estilo hippie. Ela tinha um olhar doce e segurava alguns panfletos.

– Ouviu, Ícaro?

– A coisa que eu mais quero agora é fazer a nossa hospedagem no resort e tomar um bom banho de piscina.

– Ok. Então você pode adiantar isso, enquanto eu participo do passeio.

Ambos se entreolharam por instantes, então ele cedeu e suspirou com um ok resignado. Nina abriu um largo sorriso e beijou seu rosto em agradecimento. Ela voltou-se para a jovem de roupas largas e leves, esperando-a dizer algo. Como em telepatia, a moça estendeu a mão e disse:

– Valentina Gambazza, professora de história. – Apertou sua mão. – Mas nesse caso, sua guia turística, senhorita...?

– Nina! – Respondeu ligeiramente. – Nina Brandão, prazer em conhecê-la, Valentina.

A moça assentiu com a cabeça e levou Nina até o grupo de pessoas que fariam parte da excursão. A maioria das pessoas se mantinha em pequenas rodas de conversa, aparentemente já se conheciam. Nina se contraiu, envergonhada por estar sozinha, de modo que se dispôs a ficar o mais próxima possível da guia. Valentina esperou que todos fizessem silêncio e prestassem atenção nela, o que não demorou muito para acontecer, mesmo com toda a afobação. Bradou para que todos lhe ouvissem:

– Oi galera! Meu nome é Valentina, podem me chamar de Val se quiserem. Serei a guia turística de vocês nesse passeio. Prazer em conhecer todos vocês.

Valentina pôde ficar menos nervosa, após os aplausos seguintes. Todos os dias em que era voluntária para ser a guia dos turistas, sentia-se nervosa. Não fazia ideia de onde nascia aquele receio, aquela incerteza, mas as borboletas em seu estômago já viraram rotina. Aquilo diminuía a sensação de insegurança e ela achava muito bom, visto que precisava passar segurança e responsabilidade aos visitantes, o que também tinha suas exceções. Valentina nunca perdera seu espírito de criança aventureira, mesmo no começo da fase adulta. Trazer o aroma de infância às vezes fazia bem, e como! De uma maneira que só ela sabia.

Val, como gosta que a chamem, também é forte, apesar da feição nada hostil. Forte e persistente; brava e equilibrada. Um misto de tudo. Os sentimentos de Valentina haviam sido colocados dentro de um liquidificador e de lá, o resultado valia o que se passava na sua cabeça, desde todos os acontecimentos resultantes de uma vida repleta de desafios e obstáculos. Se alguns tinham uma pedra... Val lidara com muralhas. Aprendera a ser valente – o primitivo de seu nome – da pior forma possível. A morte do pai, quando ela tinha quinze anos, foi o alicerce para construir seu caráter e sua armadura, da qual era difícil tirá-la.

Armadura esta que a fez se comprimir do mundo, criar uma barreira entre ela e qualquer coisa que ameaçasse machuca-la. Valentina só não desconfiava da própria sombra, porque não tinha como se livrar dela. Entretanto, com a ausência do pai ela pode criar um grande vínculo consigo mesma, considerando-se sua melhor amiga. Não se considerava uma pessoa solitária, muito menos carente, e sim, livre. Livre para poder pensar o que quiser, viver como quiser.

Optou por tocar a herança do pai em diante, vivendo na pequena residência no povoado e mantendo um pequeno estabelecimento na praia – o quiosque, que ela apelidara de CÉU carinhosamente –, uma pequena lojinha onde disponibilizava de cosméticos, chás de ervas e outros produtos naturais. Além de cursar faculdade de história, após ganhar uma bolsa de estudos.

Parou de pensar no passado, assim que a palavra “irmã” surgiu em sua mente, levando todos os pensamentos embora. Ela sempre tentara formar o rosto de sua possível irmã mais velha na cabeça, mas sempre desistia por nunca ter visto ela, apenas era sabido que Val tinha de procura-la, segundo relatava o testamento de seu pai.

Quando deu por si já estava dentro da mata, a caminho das ruínas. Atrás dela, o comboio de visitantes olhavam deslumbrados para a imensidão verde e tentavam alcançar a copa das enormes árvores que faziam bastante sombra ao taparem a passagem dos raios de sol. Ela adorava aquele hobbie, que praticava quando tinha alguma folga do último semestre da faculdade. Ver os turistas com os olhos cheios de felicidade era sua gratificação.

Enquanto caminhava rumo às ruínas junta dos turistas, Valentina não hesitava em adicionar fatos sobre a Ilha Vermelha.

– Como vocês viram, aquela cidade logo adiante da praia é a atual Santa Muerte, o conjunto de vilarejos que se ergueu sobre a antiga civilização de Santa Muerte, no início do século dezoito. Ambas possuem esse nome em homenagem à divindade do antigo povo que viveu aqui, um século antes, a Santa Muerte, que representa tanto a vida, como a morte, e é detentora dos sete poderes supremos.

Quando deu por si, Nina estava de frente para uma das paredes que começavam a aparecer, anunciando a entrada para a antiga pirâmide de pedra das ruínas. Na parede, as escrituras cobertas por mais de quilos de poeira lhe chamaram atenção, por justamente estarem muito escondidas. Arriscou soprar e retirar poeira dali, fazendo duas jovens tossirem perto. Estava em latim, mas como já tinha feito curso de línguas e latim era uma delas, leu mesmo assim:

Is animae quattuordecim
Quatuordecim convictus Socijs
Semita purificationis
Et cadet interfectus in unum
Succubuit, per maledictionem
Terra et ignis cælo sunt,
Haec cum ita sint casting
Ut hirundo dolorem et dolor in
Qui una die
Evigilans autem haec prophetia
Sentenced a praesagiret

– São quatorze almas. Quatorze cavaleiros condenados, a caminho da purificação. Tornam cadáveres um a um, sucumbidos pela maldição. A terra, o fogo e o céu se juntam dentro desta conjuração. Para engolir na agonia e dor, aqueles que um dia despertaram esta profecia, sentenciados pela premonição. – Não notou que a maioria dos visitantes já estavam mais adiante.

Nina via todos os desenhos de vulcões na parede atentamente, até se distrair por um segundo e esbarrar numa mulher ruiva que caminhava na frente, completamente entediada. A mulher virou-se de imediato e as duas se encararam.

– Ei, cuidado ai, garota!

– Perdão, eu me distraí. – Nina respondeu, acanhada pela postura agressiva da mulher.

– Deu pra perceber.

A loira logo notou a beleza da jovem mulher parada bem na sua frente. Os cabelos ruivos desciam como fogo sobre os ombros, enquanto seu corpo esbelto era marcado pelo vestido bandage azul. No pé uma sandália com um salto nada hábil para terreno arenoso; e distribuídas pelo corpo, algumas joias, que Nina julgou muito caras, identificando algumas das pedras preciosas de seus brincos e dos seus anéis. Como alguém calça essas sandálias para entrar na mata? Pensou.

Nina estava nitidamente hipnotizada pela beleza da mulher, até olhar diretamente para seu pescoço e notar que algo ali estava errado. Pendurada no pescoço da ruiva, uma correntinha com pingente de sereia, cravejado com duas pedras preciosas, reluzia ao toque suave do sol. De imediato a loira reconheceu seu pertence e indagou:

– Graças a Deus, meu colar! Onde você o encontrou?

– Quê? Como assim seu colar? Ficou louca, querida?

– Mais lúcida do que estou, não posso ficar. É minha correntinha sim! Eu a perdi, provavelmente enquanto desembarcava. – Quando Nina estava certa de algo, era difícil alguém derrubar seus argumentos.

– Desculpe, mas já vi pessoas darem golpes melhores. – A mulher carregava um forte tom de ironia em todas as palavras.

– Tem meu nome gravado atrás dela, me deixa mostrar. – A loira aproximou a mão da correntinha, mas sentiu uma leve tapa da ruiva em seu braço.

– Ei, sem contato físico ok? Quem você pensa que é? – Disse, recuando dois passos.

– A verdadeira dona dessa sereia! Ou por algum acaso, você também se chama Nina?

A terra abaixo das duas cedeu para um lado e elas caíram por um barranco repleto de plantas. Nenhuma das duas lembrou-se de mais nada, depois que encontraram algo sólido no caminho da queda.

XXXXX

A bióloga foi a primeira a acordar do desmaio que durou menos de dois minutos. Olhou para o corpo, estava toda suja de terra. Algumas folhas indesejadas decoravam seus cabelos, assanhados pela queda. Segundos depois, a ruiva acordou incrédula de sua aparência após descer o barranco de forma involuntária. O salto de sua sandália havia quebrado e ela deu um gritinho de raiva, se levantando do chão às pressas e tratando de limpar a sujeira do vestido. Só então viu Nina se erguer também e encará-la.

– Viu só o que você fez? – A ruiva começou a caminhar na primeira trilha que viu. – Você faz ideia de onde estamos?

– Não foi minha culpa. – Nina tentou ajeitar o cabelo. Logo mais afrente viu a sereia cravejada e andou até ela, pegando-a e guardando-a no bolso do short. Quanto a segunda pergunta, a loira não respondeu.

– Posso te dar um cheque gordo pela informação, basta dizer quanto quer. – Comentou.

– Com esse dinheiro deveria ter comprado uma bússola, radar ou GPS, porque o mapa da ilha eles distribuíram no início do passeio. – Nina percebera sua pretensão.

– E onde está o seu?

– Não está mais no meu bolso. – Deu de ombros. – Agora, com licença que vou encontrar a trilha de volta, porque essa que você está seguindo, vai te levar pra boca do vulcão.

– Vai me deixar aqui sozinha? – Não houve resposta. Ela entendeu como um “sim”, mas isso não a impediu se segui-la.

Elas caminharam durante alguns minutos e pararam para tomar fôlego. Foi ai que avistaram ao pé da montanha um casebre, que mais parecia um chalé ou cabana. A construção era de madeira e tinham vários penduricalhos na varanda. Identificaram alguns como sendo cabeças de bonecas de porcelana. Saía fumaça da pequena chaminé e uma pequena estufa de vidro improvisada se estendia pela lateral da cabana.

– Parece ter alguém, vamos pedir informação! – Nina se apressou e correu.

– Ei, Nina! É esse seu nome não é? E se um grupo de canibais estiver nos esperando pra nos comer na ceia de natal deles daqui a alguns dias?

– Dá pra se acalmar? Está assistindo filmes de terror demais. – A loira respondeu, subindo as pequenas escadas da varanda. A ruiva vinha bem atrás. – E se por um acaso isso acontecer, ai sim fique com medo. Ruivas do seu tipo são as primeiras. – E riu baixo.

– Engraçadinha.

Entraram em seguida, fazendo um barulho com a sineta acima da porta. Não precisou caminhar muito pela residência para notar que estava vazia.

– Você ainda não disse seu nome. – Nina quebrou o silêncio que se formara.

– Vanessa. – Ela andou até a cozinha e viu a panela no forno a lenha. Recuou alguns passos e esbarrou numa porta atrás de si.

A loira não se deu conta do sumiço de Vanessa, apenas procurava um telefone. Neste momento, ela viu um altar montado nos fundos do casebre, numa porta ao lado da cozinha. E neste altar continha vários bonecos dispostos em prateleiras, velas os iluminavam ao seu redor. Dois deles chamaram atenção da loira. Uma das bonecas de pano tinha cabelos dourados, enquanto a do seu lado era ruiva. Logo se lembrou de Vanessa e tomou a boneca em mãos. A sineta da porta soou. Com o susto ela largou a boneca ruiva no chão. Vanessa soltou um gritinho detrás da porta do outro lado do cômodo. DROGA!

Nina correu para alcançar a porta, antes que o morador da cabana lhe visse. Entrou no cômodo, trancou a porta e tapou a boca de Vanessa.

– Shiu! Ele está aqui.

– Ele quem? O dono desse lugar? Oh, não... – As duas então fizeram um silêncio sepulcral. A respiração pesada de Vanessa ainda era audível.

– Eu já sei que estão aí. – A voz do outro lado da porta arranhou os tímpanos de ambas. Tinham certeza de que era de uma senhora. – Saiam.

As pernas de Vanessa continuavam bambas. Os braços de Nina tremiam.

– Vamos sair. – A loira disparou.

– O quê? – A ruiva arregalou os olhos. – Invadimos a casa dela, querida. Sair por essa porta é suicídio.

– Então fugiremos pela janela. – Nina respondeu por fim.

Vanessa decidiu ir primeiro, mas antes que ela colocasse a primeira perna na abertura, a senhora abriu a porta por fora.

– Aonde pensam que vão, senhoritas? – A velha estava prostrada na frente das duas, com as mãos postas na frente do corpo. Acarretada de rugas. Os cabelos eram parcialmente grisalhos e a falta de cor em suas íris acusava.

A senhora era cega. Mas... Como ela...?

XXXXX

Para Nina, a tarde havia sido bastante estranha. Primeiro, pela profecia lida na parede da ruína; segundo, pela visita sinistra à cabana de Abigail, ou como disse para ser chamada. A senhora aparentemente solitária. Logo após saírem da cabana, depois de conhecerem o lugar e conversarem com a velha, Nina e Vanessa encontraram a trilha e ficaram felizes por isso. Graças à Abigail, que as guiara de volta a ela. Refizeram o caminho de vinda e acharam a praia em questão de minutos. Não tiveram notícias da senhora a partir daí.

Ao chegar ao resort, Nina lidou com as indagações de Ícaro sobre o passeio e preferiu não falar sobre o assunto. Também recebeu uma mensagem de Lana, afirmando já estar na ilha e ansiosa por conhecê-la. As duas marcaram de se encontrar após a recepção da Animal Rescue aos novos membros, que também tinha o propósito de comemorar o congresso que ocorrera na manhã daquele mesmo dia.

Foi fácil para Nina entrar no lindo vestido que estava usando para o jantar comemorativo. Um vestido branco que descia justo pelo busto e seguia leve e solto da cintura para baixo, indo até pouco abaixo dos joelhos, com um degradê do branco para o preto na barra. Nos pés sandálias de salto mediano e no cabelo um enfeite que reproduzia uma estrela-do-mar ornamental, mas não tão chamativa. Ao seu lado, na porta do grande salão decorado do resort, Ícaro vestia um terno relativamente caro, com um detalhe no bolso esquerdo. Uma concha, que Nina dera de presente. Ele achava desnecessário usar aquele enfeite, visto que não ligava muito para acessórios e apesar de ser vaidoso. Mas ela pediu que ele usasse e ele não queria fazer desfeita.

Os dois entraram de braços dados, seguindo para uma mesa com o nome dos dois, próxima a uma coluna que imitava a arquitetura de monumentos gregos. Sentaram e aguardaram Eva chegar. A mulher se aproximou logo em seguida, recebendo os dois com complacência e postura. Abraçou a loira e cumprimentou o bombeiro.

– Fico feliz que tenham vindo prestigiar esse grande momento da nossa instituição. Principalmente você, Nina, que tem se mostrado uma jovem com um futuro brilhante pela frente. – Eva era a responsável pelo convite, hospedagem e despesas de Nina.

A imponente mulher tinha cabelos castanho-escuros que batiam no ombro. O vestido azul que usava era moderno e sofisticado. Sua alta postura de dama impressionava a recém-formada em biologia, que tinha muita afeição pela renomada bióloga.

– Espero que tenha pensado a respeito da proposta, eu ficaria bastante feliz em saber que fará parte da nossa equipe, assim como este belo homem que lhe acompanha. A propósito, deu tudo certo no resgate das aves em Fernando de Noronha?

Ícaro respondeu sério:

– O resgate não poderia ter sido mais satisfatório, doutora.

– Participar deste projeto tão lindo é tudo que almejo professora. – Nina percebera o deslize por Eva já ter sido sua professora da faculdade. Mas a ocasião era diferente. Contornou: – Doutora Mendel.

– Pra você, apenas Eva, querida. Aguardo você amanhã na nossa unidade. Tenham um ótimo jantar e aproveitem a noite. – O casal na mesa assentiu.

Enquanto Ícaro esperava a chegada do garçom, Nina resolveu analisar o espaço. Na mesa ao lado, dois jovens pareciam discutir. Nina queria poder não ter ouvido parte da conversa.

– Dudu, poderia pelo menos fingir que está gostando? – A moça tinha aparência meiga. E o rapaz que lhe acompanhava tinha as mesmas feições que ela, mas, mais masculinas. Deduziu serem irmãos.

– É que você sabe, Mônica, eu não me sinto bem usando estes trajes formais. E para completar, essas comidas são muito chiques.

– Agradeça à Heloisa pelo terno, se não fosse por ela...

A loira desligou-se mentalmente da conversa dos irmãos e girou o olhar, parando-o na mulher ruiva andando pelo salão, rebolando. Vanessa... Ficou alguns segundos olhando-a gesticular para um homem loiro muito bonito sentado à mesa. Logo, uma mulher, segurando a mão de uma criança parou em sua frente. Anna Clara procurava sua mesa, ao lado da filha e do marido. A única coisa que Nina percebeu na mulher, antes dela ser direcionada para a mesa, do outro lado do salão, fora o broche de prata, de alguma companhia aérea na alça de seu vestido preto refinado.

– É aqui a festa? – O grito ecoou como um trovão.

A seguir, após burburinhos vindos das mesas atrás, a loira foi obrigada a olhar por cima dos ombros. O que viu na porta do salão fez seu coração palpitar mais rápido. Seus olhos brilharam. Ao mesmo tempo, ela queria digerir o fato da garota de cabelo azul e o seu ídolo virtual de barba rala estarem parados diante dela. A atenção de todos no salão se voltou para os dois. Lana Flowers e Greg Kaulfuss.

Nina levantou da cadeira, assim que viu dois seguranças, acompanhados de Eva Mendel, se aproximarem de ambos.

– Eu não me lembro de fazerem parte da nossa corporação. – Eva bradou.

– E não fazem, eles estão comigo. – Nina revelou-se atrás de um dos seguranças, sorrindo para a doutora. Seus lábios e nariz tremiam. Todo o rosto tremia.

Lana abriu um largo sorriso. Greg pareceu não se importar muito com todos do salão estarem encarando-os, como se fossem intrusos. De certa maneira eram, mas agora não eram mais. E mesmo que fossem, ele estava acostumado com muita atenção. Se tivesse oportunidade – e tinha, mas não se aproveitaria dela no momento – faria uma edição especial e seu vlog ali mesmo. Ainda caçoaria dos convidados por serem tão mal receptivos. Ah, qual é! Eu sou uma subcelebridade da internet, mas mereço mais do que desconforto social de granfinos. Pensou e sorriu falsamente para os seguranças.

– Estamos com a loirinha, caras. – Completou seu pensamento.

Lana abraçou Nina e Eva retirou-se com os seguranças.

– Ela ficou uma fera, você viu? – A jovem de longas madeixas azuis estava visivelmente corada.

– Não se preocupa, ela entendeu. Você está incrível! – Nina havia reparado no vestido escuro da amiga, com uma jaqueta de couro preta sobre ele e a bota de mesma cor nos pés.

– Agradecido. Gostou dos coturnos? São meus favoritos. – O homem de blusa corte “v” e calça jeans surrada, porém deveras estilosa, replicou.

– Greg... – Lana riu. Nina acompanhou na risada nervosa.

Duas adolescentes, uma morena e outra loira, passaram discretamente pelos três parados na porta do salão. Cochichavam, se vangloriando pelo sucesso na entrada despercebida.

– Eu e meu namorado estamos em uma mesa para quatro. Ele vai adorar vocês! – Ela permanecia incerta sobre Ícaro gostar de Greg, pois ela conhecia o jeito do youtuber e o jeito do namorado. A maioria das características não coincidia, o que dificultaria, mas ela e Lana tentariam levar a noite da melhor maneira possível. A última coisa que queria, era acordar do sonho maravilhoso.

Só não fazia ideia de que não seria maravilhoso por muito tempo.

Um presságio
Eu vi também
Arrastou o céu numa conjuração
Corpos ébrios
Em confusão
A sustentação é que a manhã já vem
Logo mais a manhã já vem

Do lado de fora do resort, fechando seu quiosque, Valentina observava um veículo com um emblema de uma emissora de televisão estacionar na praia. As portas se abriram e revelaram uma mulher ruiva, com uma franja que por pouco lhe cobrira os olhos. Magra e alta, usando um terno feminino cinza. Ela saia apressada, segurando um microfone e apressando seu cameraman, que descia da van logo atrás.

– Venha Tobias! Todos os milionários da indústria farmacêutica estão no resort! Precisamos do maior número de entrevistas possíveis!

Dentro da van, uma moça de cabelos escuros anotava em uma caderneta. No pescoço, um grande headphone pendurado e no crachá em seu peito, estava escrito: Clarisse Souza. Assistente de Produção.

– A matéria só não começa amanhã, na competição de surf? – Tobias indagou.

– Uma boa jornalista é aquela que procura notícia. Se tem uma coisa que aprendi é que, se a notícia não vem até você, é você quem vai até a notícia!

– Adaptação midiática de Maomé e a montanha? – O homem ligou a câmera.

– Que seja! – A repórter arfou.

– Vamos lá. E um, e dois e três.

– Boa noite! Serena Rabelo da Ilha Vermelha, direto para o Mais Brasil.

XXXXX

AGORA

O chão tremia bruscamente. O jipe seguia veloz pela trilha de rochas e pedregulhos. No volante, Greg dirigia à beira da loucura. As garrafas de cervejas vazias dançavam pelo piso do veículo, enquanto Lana evitava que elas quebrassem com os saltos que o jipe dava vez ou outra. No banco de trás, Vanessa gritava desesperada, vendo o pesadelo em que o passeio se tornara. No mesmo banco, sobre o colo de Nina, a senhora da cabana, Abigail, continuava desmaiada e a loira fazia tudo ao seu alcance para acordá-la.

Logo atrás deles, a mãe-natureza extravasava sua raiva, através de um vulcão beirando a erupção.

De repente o tempo e o mundo pararam.

E para o azar do grupo, o jipe também.


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Notas finais do capítulo

Obrigado por lerem!

Espero ver todos nas reviews, porque elas também são muito importantes para a continuidade do projeto.



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