Premonição Chronicles 2 escrita por PW, VinnieCamargo, MV, Felipe Chemim, Jamie PineTree


Capítulo 18
Capítulo 17: Welcome to Dollhouse


Notas iniciais do capítulo

Escrito por PW.



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15 de Fevereiro de 2015

Um mês depois

Os raios de sol entravam pela fresta da persiana do quarto de Serena. O cômodo era bastante iluminado durante o dia, e não era diferente à noite, já que belos lustres de diferentes modelos pendiam no teto. Dentro da mansão herdada pelos pais, a jornalista montou um escritório, um simples espaço onde ela pudesse fazer suas pesquisas, desenvolvimentos de matérias e até ter explosões de ideias para futuras produções literárias. Além de uma renomada e reconhecida carreira de jornalista, Serena ansiava ser famosa no mundo literário, e um de seus maiores sonhos era escrever um Best-Seller. Aproveitaria sua profissão atual de repórter para descobrir a matéria da sua vida, que lhe levaria ao topo da carreira brilhante tão desejada.

E ela estava confiante de que o mistério que cercava os sobreviventes da erupção da Ilha Vermelha era o que ela precisava para crescer midiaticamente. Serena era ambiciosa o suficiente para desdobrar a conexão entre o que está acontecendo e a civilização de Santa Muerte. Sua base para a linha de pensamento era uma maldição desencadeada através de antigas profecias que alicerçavam a tal civilização, porém, julgou não ser o bastante. Queria saber muito mais sobre o assunto e já tentara recorrer a alguns sobreviventes, mas nada além de migalhas e pedaços remotos.

Sobre a mesa metálica à frente da ruiva, encontravam-se várias fotografias, todas impressas da internet. Quase todas estampavam os rostos das vítimas da erupção, que tiveram a chance de escaparem antes de serem engolidas pela lava e salvarem-se através da embarcação guiada pela garota hippie. Numa foto encontrada numa rede social, Serena podia ver um grupo de adolescentes abraçados, no que parecia ser um shopping. Uma das garotas, que ela conhecia bem por ser uma figura da mídia, estava com o rosto rabiscado, sinal de que ela já tinha lhe descartado das pesquisas, por já ter tido um fim trágico. As outras imagens foram tiradas de perfis na mesma rede social, onde a maioria deles mantinha uma conta ativa, e que com a ajuda de seu trabalho conseguiu tomar as informações.

Também continham impressões de textos que eram direcionados à civilização de Santa Muerte, fossem de fontes históricas como trechos e citações de livros, ou documentários. Serena mantinha o cabelo em um rabo de cavalo improvisado, enquanto folheava as impressões, atenta a qualquer detalhe. Foram semanas de intensas obtenções de informações, com Clarisse sempre a auxiliando. Inclusive, a jovem assistente permanecia sentada na outra ponta da mesa, com mais algumas imagens, dentre elas, diversas que apresentavam o mesmo rabisco vermelho nos rostos dos sobreviventes. A mais famosa que segurava era a foto na qual, todos estavam de pé no convés do barco, fotografados no mesmo dia em que foram resgatados.

— Quantos ex-sobreviventes nós já temos até agora mesmo? — A jornalista sentira que a pergunta seria retórica, que por mais que ela não lembrasse naquele momento, ela encontraria a resposta no próprio pensamento. — Só pra constar.

— Sete. — Clarisse respondeu, sem tirar os olhos das fotos.

— A estrelinha teen, os rapazes que morreram na ilha, um deles era surfista; o músico ruivo, o casal que morreu naquela oficina — Serena parou de falar, quando notou o olhar da assistente se perder. — O que foi?

— A moça que morreu na oficina era minha amiga. Andreia era o nome dela.

— Sinto muito. — Disse, antes de prosseguir: — A última e mais recente foi Vanessa, no mês passado. Em pensar que eu cheguei a desejar sua morte por ter sido tão arrogante da outra vez... Depois que as desgraças acontecem, paramos para refletir nas nossas ações.

Clarisse entendia perfeitamente o que Serena queria dizer com aquilo. Ela também deveria ter aproveitado mais, tido mais contato com Andreia, saído e conversado mais com a amiga. Entretanto, não poderia fazer mais nada. Andreia já estava a sete palmos, sendo comida pelos vermes. Só de pensar, Clarisse sentiu um agouro e largou o pensamento, preservando apenas as memórias boas que tinha da estudante de psicologia.

— E como foi com os depoimentos? Teve sorte? — Mesmo que Serena lhe respondesse com desdém, a estagiária sentiu-se a vontade para perguntar.

— Todos pelo ralo. — Retrucou, dando uma arfada pesada. — Nada com coisa nenhuma. Não cheguei nem a conversar com os irmãos ruivos ou com a grande clarividente daquela noite. Consegui interrogar o youtuber famosinho e a loirinha da foto, que está ao lado da doutora Eva Mendel.

Ao ouvir a jornalista falar, Clarisse buscou o rosto do qual ela falava. Na legenda da impressão havia o nome da moça: Nina Valadares Brandão.

— Tanto com Greg Kaulfuss, como com Nina Brandão o resultado dos depoimentos foi exatamente nulo. Não arranquei nada dos dois, além de um desabafo passional, e isso me deixou mega intrigada, porque quanto mais vou mergulhando nesse assunto, mais ele se distancia e eu volto pra superfície. E esse raso é o que temos até agora, a base do mistério.

— Os recortes que você tem da civilização antiga não ajudaram?

— Só confirmam minhas suspeitas e o que eu já desconfiava desde que os sortudos se tornaram azarados. Eles realmente estão amaldiçoados por alguma profecia de Santa Muerte, mas não tenho como saber nada além disso. A internet não possui aprofundamento nessa civilização. Não é a toa que a Ilha Vermelha é tão sombria, ela esconde muito mais do que a gente pensa. — Serena começou a juntar todas as imagens em um bloco só e coloca-lo dentro de uma pasta. — Talvez eu tenha visto alguma coisa sobre um livro de arqueologia...

Clarisse apoiou o cotovelo na mesa e em seguida, o queixo na mão. Pensou por alguns instantes, até disparar:

— Lembra quando passou no noticiário a morte do garoto triturado no supermercado? — A ruiva assentiu, lembrando-se da cena censurada na tevê. Clarisse continuou: — Também relataram que uma garota estava ferida, e que segundo o que ela disse, o garoto salvou a vida dela, antes da máquina ir lá e... — Ela fez um gesto estranho com os dedos. — Você sabe.

— Agora eu lembro, foram pequenos segundos de depoimento e bastante rápido, pois ela estava em estado de choque, mas faz sentido diante desses fatos dignos de um filme de terror. Eu que deveria ter coberto essa reportagem, mas não deu.

Serena olhou novamente para a pasta sobre a mesa de metal.

— Por acaso a garota não está na foto e nos arquivos, está? — Serena encarou as órbitas da assistente, pronta para ter um insight.

Clarisse apenas virou o tablet que segurava para sua superior conferir. A página era um portal de notícias e o texto referia-se ao acidente no supermercado. Além do nome da vítima, Thomas, o nome da garota salva também era exibido, Isabella.

Entreolharam-se e não ficaram tão surpresas quando viram a garota entre os sobreviventes, posando para o registro do que restara do desastre. A partir do documento, Serena pode ficar ainda mais instigada a descobrir o que se passava com aquelas almas desafortunadas.

— Com certeza, depois de um mês sem nenhuma notícia de que outro sobrevivente se foi, e que a internet não está zoando por fazer montagens de séries de suspense e comparando com os filmes da franquia Premonição... Eles devem estar guardando informações valiosas, quem sabe tudo pode ter acabado de vez. Ou quem sabe, o caso dessa menina esteja ligado a isso? Não sei mais o que pensar, e nem em como ajudar, Serena. — O headphone no pescoço da estagiária balançou com o movimento dela ao desapoiar da mesa.

— Não vamos andar em círculos por muito tempo. E se eu conseguir descobrir do que se trata especificamente essa sequência de mortes horríveis e o que há por trás delas, estarei caminhando rumo ao sucesso! — Os olhos da repórter brilharam. — Quem disse que você não pode ajudar? Tenho um plano!

Clarisse tremeu vendo a expressão maquiavélica da mulher. Só de pensar no que Serena pretendia e qual seria a ideia por trás dos olhos brilhantes, sua barriga embrulhou.

XXXXX

Gabriel entrou no salão espelhado e ficou admirado com tamanho zelo. O espaço era amplo e extenso, com prateleiras coloridas, onde objetos repousavam e aguardavam para serem comprados. O bazar de caridade era feito aos sábados e administrado por um conjunto de freiras, responsáveis por algumas instituições apoiando causas de enfermos, espalhadas pela cidade. Não era a primeira vez que Gabriel aparecia ali, ele costumava ajudar as mulheres, de modo que já era conhecido e exercia um trabalho franco, ajudando-as.

— Nem precisava vir hoje, querido. — A primeira freira que apareceu para dar-lhe as boas-vindas era a mais próxima do rapaz.

A mulher tinha a face plácida, enrugada e acusava a meia-idade, que se escondia dentro da bata preta, com detalhes brancos. O crucifixo pendurado no peito permanecia imponente.

— É uma ocasião especial, irmã Joaquina. — Respondeu ele. — Quero comprar um presente especial, para uma pessoa especial. — Ao sorrir, Gabriel revelou duas covinhas quase inexistentes nas bochechas. A face infantil refletia um sentimento que a freira identificou imediatamente.

— Posso saber o nome dessa pessoa tão especial? — Seus olhos fecharam-se quando o sorriso foi dado.

— Isabella.

— E o que meu filho pretende comprar para esta jovem?

Diante de alguns segundos para pensar no que a garota poderia ganhar, o rapaz teve um estalo mental.

— Já sei! Ela coleciona bonecas, acho que posso encontrar uma que ela goste.

— A sessão de brinquedos é a última deste corredor. — A beata sorriu, apontando para o local onde ele deveria ir. — Fique a vontade, querido. Qualquer coisa procure a mim ou alguma das outras irmãs. Elas também saberão como ajuda-lo.

O rapaz de cabelos claros, com face infantil, assentiu para a religiosa e seguiu no corredor, procurando a prateleira das bonecas. Ao invés de comprar uma boneca nova, ele resolvera escolher uma mais velha, não pelo preço – por se tratar de um bazar -, mas porque a carga simbólica do objeto representava o momento, e ele sentiu que poderia funcionar. Da mesma forma que significou muito para uma pessoa, também significaria para Bella. Além disso, o rapaz queria aproveitar o máximo de tempo que possuía, já que estava ciente na morte e da capacidade da mesma.

Entrou no último corredor, junto de um silêncio sepulcral. A sessão de bonecas era a mais afastada dos outros brinquedos da sessão infantil. Analisou as prateleiras, procurando a boneca que julgava ser a ideal para completar a coleção de Bella, mesmo sabendo que poderia estar levando uma boneca que ela deveria possuir em seu estoque. Logo, seus olhos bateram na última boneca da prateleira mais alta. O rapaz viu que ela estava sozinha, distante das outras.

Gabriel pegou a escada mais próxima e subiu até lá para busca-la. A boneca era de porcelana, tão fina e delicada quanto qualquer seda. Os olhos eram expressivamente grandes, livres de qualquer maquiagem. Inocentes. A face completamente angelical e os cabelos de um tom loiro alaranjado muito bonito estavam arrumados em uma metódica trança. Mesmo com uma aparência “velha”, o brinquedo parecia estar em perfeito estado, concluiu. Gabriel alcançou a boneca, que vestia um vestido branco longo, com um pequeno laço vermelho em volta da cintura e os pés calçados com uma sapatilha de mesma cor.

De volta ao salão principal do galpão restaurado pelos institutos para organização do bazar, Gabriel pode esbarrar com irmã Joaquina pela segunda vez. A senhora olhou para a boneca em suas mãos e encarou-a fixamente por alguns segundos.

— Ela estava junto com as outras? — A freira referia-se ao objeto.

— Sim. — O loirinho deu de ombros. — Por que a pergunta, irmã?

— Por nada, querido. — Respondeu, mas preferiu mudar de assunto: — Saiba que ela tem uma história bem particular, assim como nossos outros itens, mas esta é diferente, porque a história dela é complicada.

Com a face de interrogação como resposta por parte do jovem, a beata apenas encaminhou o rapaz até o caixa. Agradecido e satisfeito, Gabriel pagou pelo objeto e logo mais na frente, em um pequeno armarinho, o embrulhou para presente. Dali, ele partiria em direção ao apartamento de Greg. Segundo o que o homem dissera em um telefonema, ele estava reunindo os sobreviventes do acidente da ilha, então ele precisava estar presente. Tanto ele, como Bella, mas ele entregaria o presente à garota, antes de ir até a residência do youtuber, já que marcaram o encontro antes de serem comunicados sobre a tal reunião.

Para chegar mais rápido ao lugar marcado, Gabriel pegou um moto táxi.

XXXXX

No meio do percurso, o moto taxista se deparou com um bloco de pré-carnaval. Particularmente, Gabriel gostava de carnaval, mas quando comemorado de forma moderada, com fantasias, máscaras, marchinhas... Nada do vulgar atual. Julgou-se até um rapaz antiquado neste quesito, mas o que poderia fazer se era assim que pensava? Passou por diversas pessoas pulando, cobertas por fantasias diversificadas.

De repente, um homem vestido de Chucky, O Brinquedo Assassino, se aproximou da moto, apontando sua faca na direção do rapaz na garupa. Gabriel assustou-se e deu um pequeno espasmo instintivo, segurando em um suporte na motocicleta, evitando cair. O Chucky Fantasiado se afastou, mas continuou com a faca erguida, enquanto a moto se distanciava do bloco de carnaval. Gabriel riu por um segundo, sentindo-se um completo tolo por ter se assustado com o homem fantasiado.

Mais na frente, já próximo do destino final, ele sofreu outro susto. Andando em uma rua movimentada, onde crianças brincavam, a moto passou por alguns garotos soltando pipa. A linha pertencente a uma delas estava no meio do caminho.

— Abaixa, garoto! — Alertou o motociclista.

O loiro baixou a cabeça com o capacete no último segundo, onde a linha passou e deveria ter acertado.

— Essa foi por pouco hein. — Comentou o senhor de bigode. — Essas crianças não têm limites. Semana passada um companheiro de trabalho teve o pescoço degolado por uma linha que eles chamam de linha chilena. Morreu de hemorragia no local, por falta de atendimento de urgência.

— Aquilo era cerol?

— Pode apostar. — O homem respondeu por fim.

A morte não brinca mesmo em serviço... Pensou o garoto, fechando os olhos e respirando fundo. Por um segundo, sentiu um movimento dentro do embrulho, mas percebeu que era seu celular tocando no bolso da calça.

— É aqui moço. — Disse, vendo o moto taxista parar o veículo em frente ao “Planeta Cremoso”, uma das sorveterias mais famosas da região, pelos seus mais de cinquenta sabores diferentes. — Obrigado. — O rapaz pagou a corrida e parou, encarando a fachada.

XXXXX

Assim que entrou, avistou em uma mesa colorida próxima da vidraça, Bella e Vivian sentadas. As duas já estavam se deliciando com seus sorvetes. O loiro sorriu, quando Bella notou que ele estava ali. Levantou para abraça-lo. Os dois colaram os corpos, e Gabriel pode sentir o cheiro da loira, o toque quente de seu abraço. Desejou poder fazer isso para sempre. Logo, ela pediu que ele sentasse, e o loiro assim o fez.

— Está tudo bem? — Bella perguntou.

— Coisas estranhas como sempre. — Respondeu ele, rindo nervoso e olhando o sabor que mais lhe agradaria do cardápio de cinco páginas. — E sua vida neste último mês?

— Virada de ponta-cabeça. — O sorriso desapareceu dos lábios da estudante, transformando-se em uma expressão cabisbaixa. — Pedi demissão do mercadinho, eu não aguentava mais. Não conseguia trabalhar, sabendo que Thomas havia morrido lá. Por onde andava, podia sentir o cheiro do sangue, o meu corpo gelar, sabe? Como se eu revivesse a cena milhões e milhões de vezes na minha cabeça.

— Se estava desagradável, fez bem em sair de lá. Já sabe o que vai fazer da vida agora?

— Continuar estudando e buscando a felicidade plena. — Disse, mostrando seu olhar vago.

— Como ainda pode existir felicidade plena, depois de tudo o que passamos? — Vivian saiu de seu silêncio, após dar mais uma colherada em seu sorvete de pêssego com creme de chantilly e cereja. — Olha o dilema que estamos vivendo? Caçados pela morte. É um belo roteiro cinematográfico, vocês não acham? Claro, tudo isso somado a minha cegueira e morte do meu único irmão, da minha outra parte! — E bateu o punho na mesa, respirando fundo. — Devo ter sido um ser monstruoso pra merecer esse castigo abominável.

Vivian ainda não estava conformada com a perda da visão, e isso era visível. A ruiva precisava aprender a lidar com esta companheira, o que não seria tão fácil.

— Isso não te deixa menos humana, Vivi. — Bella retrucou.

— Todos os monstros são humanos, Darling. — Vivian rebateu, afastando o sorvete e batucando as unhas recém-pintadas com a ajuda de uma empregada, na mesa. Vivian estava inquieta.

Gabriel manteve-se calado, até perguntar:

— Felipe já sabe sobre esse lance todo de morte?

— Ele nem sonha! Nem pretendo contar, ele não precisa saber. Prefiro que fique onde está, no canto dele, e não me importune mais. — As lembranças da loira passaram a vir em flashs, em sua mente. — Sabe quando você se engana com uma pessoa, quando ela nunca foi o que achava que era?

O garoto assentiu.

— Então. Felipe é desses, mas não quero entrar em detalhes, isso continua me machucando profundamente. A última coisa nessa vida que quero, é lembrar daquele insensível. — Bella não deixou que seus olhos ficassem marejados, conseguindo se controlar. Então olhou para a sacola que Gabriel carregava. — O que tem ai, hein? — Perguntou curiosa.

Gabriel fingiu não ter ouvido, mesmo assim olhou para a sacola, e sem muita hesitação, pôs o embrulho sobre a mesa. Bella ficou três vezes mais curiosa, com muita vontade de abrir o embrulho.

— É todo seu. — Gabriel disparou, antes que a loira pudesse dizer qualquer coisa. Surpreendeu-a de tal modo, que deixou-a sem o que dizer.

Rapidamente ela desfez o embrulho e abriu a caixa. Vivian se pôs a esperar alguma palavra da garota, de modo que ficou numa postura que significava isso.

— E então, o que ele te deu? — Vivian indagou para a estudante, ainda sem saber o que dizer, além do protocolar “obrigada”.

— Gostou? — O loiro perguntou.

— Que boneca perfeita! — Exclamou, respondendo a pergunta de Vivian, que franziu o cenho. — Muito, muito, muito obrigada! Eu amei, de verdade!

— Uma boneca? — A ruiva continuava com a face incrédula, segurando o riso. — Mas gente... Quantos anos você tem, Bella?

— Provavelmente seja pra minha coleção... Acertei? Mas como você adivinhou, Biel? — A garota dizia, enquanto olhava maravilhada para a boneca de porcelana.

— Digamos que “stalkeei” seu perfil do facebook. — Disse ele, fazendo aspas com os dedos.

Bella abraçou a boneca e deu um beijo no rosto do rapaz de feições infantis. Ele corou no mesmo instante, sem esperar pelo gesto. Simultânea à carícia, Vivian batucava ainda mais rápido na mesa.

— Será que dá pros pombinhos se apressarem, por favor? Quero que essa reunião acabe o quanto antes. — Bufou, ajustando os óculos escuros.

Bella entendera o recado, e logo se ergueu da sua cadeira, indo até Vivian e ajudando-a a levantar-se. Dali, os três partiram juntos para o apartamento de Greg.

Depois de algumas reclamações da ruiva, por falta de estrutura para deficientes visuais nas calçadas, mesmo com toda a ajuda do casal de loiros, ela resolveu pedir que chamassem um táxi. Ambos assim fizeram e pegaram um táxi. Não demoraram muito, até chegar ao apartamento de Greg, segundo o endereço que Gabriel possuía.

XXXXX

Reunidos na sala da residência de Kaulfuss, além do youtuber estavam Anna Clara e família. A mulher de cabelos curtos, o oriental e a filha do casal estavam sentados no sofá. Valentina e Mônica permaneciam sentadas próximas ao sofá, em duas cadeiras. Na poltrona estava Lana, enquanto de pé Greg aguardava a chegada dos outros. No momento em que a campainha tocou, o barbudo apressou-se para atender a porta.

— Que bom que vieram. — Disse, recebendo o trio parado na soleira.

Os três entraram devagar, observando as demais pessoas presentes no cômodo. Bella segurava a boneca nos braços. Greg pediu que eles se acomodassem no outro sofá. Assim fizeram. Bella ajudou Vivian a sentar no dois espaços vazios, enquanto Gabriel preferiu ficar no braço do móvel.

De repente, houveram duas batidas na porta. Desta vez, foi Lana quem se dirigiu até lá, abrindo-a. Deparou-se com uma jovem de cabelos negros, ela parecia bastante afobada e suava frio. No pescoço, um colar com uma insígnia desconhecida pela jovem de cabelos azulados.

— Oi, posso ajudar? — Lana perguntou, lançando um olhar confuso.

— Oi. — Disse. — Claro, meu nome é Clarisse, eu vim mesmo pedir a ajuda de vocês, estou desesperada. — Seus olhos assustados passeavam pelo local.

— Ei, o que houve? — Greg apareceu atrás da namorada, encarando a moça parada na soleira.

— Vocês também sobreviveram ao desastre, não foi? Vi vocês na fotografia no twitter, também são sobreviventes, certo?

— Sim, somos. Mas não nutrimos nenhum mérito por isso. — O barbudo brincou, levanto um cutucão de Lana, que sorriu sem graça.

— Não me diga que... — A professora começou, mas foi interrompida.

— Isso mesmo. Fui uma das sortudas que saiu da ilha no barco. E desde aquele dia, não consigo dormir direito, comer direito... Viver direito. A todo instante presencio momentos medonhos, onde sou o centro de eventualidades da morte, assim como vocês, como os boatos que correm pela internet.

— Concordo, garota. A galera realmente não perdoa. — Greg entrou de novo, sendo seguido por Lana e Clarisse, a dona do apartamento pediu que a moça entrasse.

Com a jovem já acomodada em um puff, o fotógrafo perguntou:

— Por que não está na foto?

— Huh? — Clarisse fingiu não ouvir.

— A foto tirada no barco. Por que não está nela? — Poderia notar que a desconfiança saltava do tom de voz do homem tatuado. — Todos estão lá.

— Estou atrás do casal que, segundo o que soube, morreram na oficina... — Clarisse baixou o olhar, lembrando-se de Andreia. A falta que a amiga fazia, ainda doía. A insígnia pendurada em seu pescoço havia sido um presente da outra, de modo que ela usava para preservar as recordações.

Cada um reage de maneira diferente às tragédias e a minha foi essa. Pensou por poucos segundos, antes de ouvir burburinhos por parte de uma garota ruiva, que usava ósculos escuros. Ela mantinha uma postura ereta e concentrada, os traços delicados e a maneira com a qual posicionada a cabeça remetia a algum tipo de etiquete da alta classe. Então Clarisse lembrou, ela era a irmã de Maurício, outra Malinowsky, outra sobrevivente. Porém, desta vez, a morte conseguiu um bônus ainda no acidente, por arrancar-lhe a visão. Sinto muito, murmurou no pensamento.

Olhando ao redor, Gabriel notou a quantidade de sobreviventes e estranhou.

— Onde estão os outros sobreviventes? — Perguntou.

— Foram até a biblioteca pública. Nina foi acompanhada de Kris, Ruth e Lena. Eles ficaram de nos manterem informados. Espero que eles voltem com respostas decentes sobre Santa Muerte. — Greg comentou, enquanto Clarisse apertava a orelha, de modo que, parecia acionar algo. — Sabemos o quanto isso é muito importante para sairmos de vez dessa carnificina.

— É o que mais quero. — Anna, que permanecia imersa num silêncio nada remoto, pronunciou.

Shinji olhou-a com ternura. Anna Bella ainda mantinha-se em silêncio, jogando algum aplicativo no celular da mãe.

— A minha vida anda uma bagunça completa e eu só queria voltar ao cotidiano, sem se preocupar em estar pisando em campo minado.

— Nós só precisamos que lembre as mortes, Anna, a ordem exata delas, mesmo que seja difícil e duro pra você ter que lembrar aquela merda toda. — Falou o barbudo, escorado na parede. — Por enquanto, segundo o que sabemos das cicatrizes que possuímos, Kris é o próximo por ser o número nove.

— Cicatriz? — Gabriel perguntou intrigado.

— Na sua nuca, Biel. — Bella respondeu, olhando para o pescoço dele. — A sua tem o formato do número onze.

— É até bom por um lado, saber que ainda faltam duas pessoas antes de chegar minha vez. — Pigarreou.

Anna lançou-lhe um olhar repreendedor.

— Não é perigoso Kris ter ido com elas? — Clarisse perguntou.

— Faz um mês que a morte não dá nenhum sinal. — Valentina comentou.

— A Val tem razão. — Mônica, que até então estava calada, completou. — A morte não o atacou neste meio tempo.

— Isso é muito estranho. — Concluiu a estudante de jornalismo.

— Gente, temos um problema. — Isabella interferiu. — A Vivian não possui cicatriz ou nenhuma outra marca na nuca.

Valentina aproveitou para ver a de Mônica, que até aquele momento, não tinha certeza de que possuía a mesma cicatriz dos outros.

— Nem a Mônica. — A hippia proferiu, arrancando um olhar arregalado da estudante de biologia.

No exato instante, Anna Clara sentiu-se aliviada.

— Shinji e Anna Bella também não. — Clara constatou.

— Isso significa que pode nos descartar da tal lista da morte? — Vivian perguntou com certo interesse.

— Acho que nessa altura do campeonato, não devemos descartar nada, muito menos essa hipótese. — Retrucou a mulher de cabelos azuis.

— E de fato não estão. — Anna surpreendeu a todos, de forma que até Shinji virou-se para ela.

— O que disse? — A voz de Mônica foi a única audível, antes da visionária continuar.

— Estou começando a lembrar dos detalhes. Eu não vi nenhum deles morrer na premonição. — Na mente da comissária de bordo, os flashs começaram a aparecer, um por um. — Primeiro foi Lis, a cantora. O corpo dela foi jogado do palco; O rapaz que acompanhava o veterinário foi o próximo, atingido por um carro; O surfista morreu logo em seguida, quando uma prancha de surf atingiu-lhe em cheio.

Mônica sentiu um agouro, quando seu irmão foi citado.

— Logo depois do surfista, você foi queimada viva. — Disse apontando para Bella. A garota se encolheu, onde estava sentada. — A vez do ruivo foi após a sua, quando ele também pegou fogo.

Vivian fez o mesmo gesto de Bella, mas com mais impassibilidade. A ruiva preferia se encrustar em uma armadura, como forma de não demonstrar fraqueza ou fragilidade. Vivian não gostava de se sentir fraca, ainda mais que estava beirando a instabilidade emocional, por causa da ausência de visão.

— A garota da oficina morreu quando um veículo em alta velocidade estourou... — Então as têmporas de Clara começaram a latejar, mas ela conseguiu prosseguir: —... Sua cabeça, como se ela fosse somente uma bexiga.

O relato de Clara arrancou uma face de horror, que cresceu em todos os presentes. Clarisse cerrou os cílios, podendo imaginar o que Andreia sentir. Shinji verificava se os fones de ouvidos colocados em Anna Bella estavam distraindo-a o suficiente para que não prestasse atenção no que eles diziam.

— Vanessa foi a próxima, sendo atingida por um pedaço de lataria, arremessado após uma explosão. — Dentro da mente da visionária, os flashes do acidente na visão e do acidente real com a socialite se misturaram, causando-lhe o acréscimo da dor de cabeça. — Valentina, você veio depois dela e foi pisoteada. — Os olhos de Clara brilharam. Estava visivelmente abalada e emocionada. Viu-se novamente dentro do terror e sufoco daquela fatídica noite.

Valentina assentiu de cabeça, entendendo o que ela dissera. O aperto no peito foi inevitável. Ela e Mônica trocaram um olhar de resignação.

A aeromoça não resistiu e as lágrimas brotaram nos olhos. Por mais que ela tentasse ver o que acontecera depois da morte da guia turística, não conseguia. A partir deste ponto, sua visão tornou-se vaga, opaca. Era inútil, ela sabia, mas a forte dor de cabeça empurrou-a de sua mente. Shinji amparou-a, abraçando a esposa, dizendo:

— As lembranças vêm com o tempo, querida. Não force sua cabeça, isso vai te fazer muito mal.

— Vem comigo, Anna. Tenho analgésicos. — Lana falou, indo até a mulher chorando no sofá.

Ajudou-lhe a levantar e as duas desapareceram no corredor, sendo seguidas por Pussy e Dick, que aparentaram estarem bem amigáveis àquele dia.

— Como podemos ter certeza de que Kris é mesmo o próximo? Vocês mesmos disseram que a morte não veio atrás dele em um mês, enquanto as outras mortes foram praticamente uma atrás da outra. — Clarisse mexeu instintivamente na orelha, incomodada com alguma coisa no canal auditivo.

— Esse é o problema. — Greg respondeu. — Não temos certeza. Só seguimos o que tínhamos no arsenal. — Pensou um pouco, sentando no sofá. — O que ainda me deixa bastante intrigado é o porquê de alguns de nós não terem a marca.

— Vai ver estamos mesmo fora da lista. Some ao que ela alegou sobre não visto a gente morrer na tal premonição. — Clarisse comentou.

— Isso não quer dizer muita coisa, porque ela ainda não sabe a ordem de mortes completa. — Quem replicou fora Mônica.

— E isso não quer dizer que estejamos nessa ordem. — Valentina retrucou, dando um sorriso torto para a estudante de olhos claros e cabelos castanhos. — Entendam, a conexão é maior para quem possui a estranha numeração, que assustadoramente coincide com a ordem em que os primeiros morreram.

Clarisse e Mônica entraram em silêncio, mas a primeira semicerrou os cílios, dessa vez indo até um canto da sala e sussurrando, pondo o dedo no ouvido. Greg achou o gesto estranho e fitou-a, enquanto eles permaneciam naquele silêncio constrangedor. A única coisa que tinham a fazer, era esperar pelos que haviam ido buscar informações na biblioteca.

Bella olhou ao redor. Sua boneca havia sumido, mas ela tinha certeza que deixara sobre a mesinha próxima da porta, no embrulho.

XXXXX

Dentro do carro célere pela rua, Serena conversava com alguém por chamada eletrônica, através de um recurso de seu veículo.

— Você está indo muito bem, Clarisse, querida. Continue assim e vou lhe fazer um agrado, ok? — Riu nervosa, sem deixar de redobrar a atenção para o fluxo de veículos. — Estou a caminho da biblioteca. Tem certeza que os outros sobreviventes foram buscar respostas sobre Santa Muerte?

Sim. — A jovem estagiária respondeu do outro lado da linha, em tom de sussurro. — Tome cuidado, eles não podem ver você.

— Garota, você acha que nasci ontem? — Serena revirou os olhos. — Logo mais falo contigo. Tente arrancar mais informações deles.

Pode deixar.

Serena encerrou a chamada e se concentrou em chegar o mais rápido na biblioteca municipal. Ela tinha tudo a seu favor e não poderia estragar seu plano mirabolante. Através dos sobreviventes, ela teria acesso ao acervo sobre Santa Muerte, só precisava ser esperta. E esperteza, a jornalista tinha de sobra.

XXXXX

Agosto de 2014

O clima frio se esgueirava pelos cômodos da mansão Valadares Brandão. Era possível ouvir o grito do silêncio, enquanto a chuva da manhã esbravejava no céu e atirava suas gotas pesadas contra os vidros das inúmeras janelas que a mansão possuía. Nina estava tomando banho, enquanto Ícaro aguardava em seu quarto, sentado na cama, num ócio intenso. Mesmo com o aquecedor ligado, fazia muito frio, de modo que o homem usava um grande moletom preto.

Com o chuveiro ligado, a loira se ensaboava, distraída.

Ao receber uma ligação, Ícaro ergueu-se da cama e foi andando pelo corredor, falando ao telefone. No outro quarto do mesmo andar, a pequena irmã de Nina, brincava com suas bonecas. Uma enorme casa de brinquedo estava posicionada no centro do cômodo, com outros brinquedos coloridos e pomposos espalhados ao redor. Anabel segurava seu brinquedo preferido, entre tantos. A boneca de porcelana havia sido de sua mãe e passado para ela no seu aniversário mais recente. Penteando seu cabelo alaranjado e arrumando-o numa trança bem feita, Anabel recitava frases possivelmente direcionadas à boneca. O vestido branco, com fita vermelha já estava posicionado ao lado da garota, para vestir a boneca posteriormente.

De repente um trovão retumbou do lado de fora. Anabel saltou, pressionando a boneca contra seu peito.

— Calma Tiffany, você tá segura aqui comigo. — Abraçou o brinquedo. — O que você disse? Quer chocolate quente? Vou preparar um pra você, então. Mas prometa que vai ficar comportada aqui com a Glenda e a Tamara.

Anabel levantou do carpete rosa e andou para fora do quarto, deixando Tiffany encostada na casinha de bonecas. As duas passaram pelo primeiro corredor e chegaram ao segundo, que dava acesso direto à escadaria principal. A chuva continuava caindo como se não houvesse amanhã, e em meio à réplica barata do dilúvio, a garotinha saltitou até a escadaria, vendo o namorado da irmã de pé no corredor. Ele esbravejava ao celular:

— Já disse que não tem como a gente se encontrar hoje, Soraia! — A voz ecoava pelo corredor, de modo que a garota podia ouvi-lo.

Ao dar alguns passos, a garota encontrou sua boneca, Tiffany, recostada ao pé da escada, sussurrando:

— Como você foi parar ai, sua danadinha?

Desajeitada e em passos lentos, Anabel recolheu a boneca de porcelana e seguiu a voz dele até onde estava e escorada na parede, permitiu ficar imperceptível, atrás de um vaso africano contendo uma grande samambaia.

— Olha, deixa a Nina dar um tempo aqui, acho até que ela vai querer dar uma volta. Quando eu chegar, ligo pra você e a gente mata a saudade com aquela foda que só você sabe me dar. Mas pra isso, preciso que pare de me aborrecer, combinado? E pare de drama, que semana passada eu já te dei uma ótima transa... Porque você sabe, né? — Houve uma pausa, ele parecia prestar atenção do que a pessoa do outro lado dizia. — Eu sei e é por isso que não pode ficar se expondo dessa forma, mais tarde te ligo e agente marca, meu amor, te amo.

E desligou. No mesmo segundo, Anabel, sem resistir àquela postura do namorado de sua irmã, de estar traindo-a na cara dura, protestou:

— O que você pensa que está fazendo? — A voz da menina de treze anos ecoou ainda mais alta que a do homem. — Acha que pode ficar ai, fingindo que ama a minha irmã, quando na verdade ama outra garota?

— Ei, Anabel. — Ícaro sorriu com a maior face de cínico do mundo. — Não sabia que estava ai ouvindo minha conversa. — Foi aproximando-se aos poucos. — E ainda por cima ouviu muito errado.

— É por isso que nunca entendi os meninos. Quando você menos espera, eles estão se engraçando para outras. — Anabel cruzou os braços e lançou um olhar desafiador para o bombeiro. — Vou contar pra Nina.

Antes que a garota pudesse perceber, Ícaro segurou-a pelo braço e encarou seus olhos agressivamente delicados.

— Ela não vai ficar sabendo, porque você não vai contar. — Logo, apertou o braço da baixinha.

— Ai, tá me machucando! — Rangeu ela, mordendo o braço dele.

Ícaro largou-a no mesmo segundo.

— NINA! — Anabel gritou e começou a correr. — MANA!

Ela não foi muito longe, Ícaro alcançou-a e tapou sua boca. A garota tentou gritar, reunindo força nos pulmões, mas o homem já deletara sua oportunidade de revelar à irmã o que estava fazendo pelas suas costas.

— Eu vou contar pra ela! — Gritou, quando houve uma brecha. — Nina!

Anabel conseguiu morder novamente a mão dele, que desta vez resmungou da dor instantânea. A garota não esperou e fez menção de correr em disparada novamente, mas não deu nem um passo, quando o bombeiro puxou seus cabelos para trás, derrubando-a no chão. Anabel quase bateu a cabeça, mas se recompôs, ouvindo o trovoar lá fora. A mansão estava relativamente escura, o clima sombrio aumentou a porcentagem dos arrepios. E foi isso que a garotinha sentiu, ao agarrar a boneca e ver o monstro chegar mais perto.

— Você não deveria ter ouvido, pirralha. — A voz do homem soou fria e sanguinária. — Foi totalmente burrice. A Nina não pode saber da existência da Soraia. Eu não posso perde-la por causa de você.

Anabel arregalou os olhos e endireitou o corpo, a tempo de ser empurrada. O corpo da criança desequilibrou e bateu os joelhos no primeiro degrau. O estalo foi audível, a madeira estalou. Então o tronco e o rosto também atingiram os degraus e logo em seguida, o crânio, as costas... Por fim, todo o corpo tombou, separando tendões, estalando as costelas, causando graves hematomas pela extensão dos braços e pernas. O corpo completamente sem vida, só parou quando atingiu o chão, no andar de baixo. Ícaro não ficou muito tempo ali e voltou ao quarto, para fingir, como fazia bem. Mais cedo ou mais tarde, alguém descobriria o corpo da menina, e esse indivíduo não seria ele.

Sobre o corpo inerte em uma posição quase impossível aos olhos humanos, onde os cachinhos dourados de Anabel cobriam seu rosto, restou a boneca. Tiffany estava ao lado da dona. Até o fim.

O pouco sangue que escorria do nariz da garotinha, ousou pingar em cima de uma pequena rachadura formada próxima dos olhos de Tiffany.

XXXXX

Agora

A biblioteca pública estava com o transitar das pessoas razoável e agradável. Nina, Ruth, Kris e Lena já procuravam algum livro que falasse sobre Santa Muerte faz um tempo. Não sabiam mais a qual tipo de literatura recorrer. Separaram-se nas prateleiras para ter mais sucesso nas buscas, mas nada disso adiantou. Ruth chegou perto de completar, encontrando boa parte sobre civilizações espanholas, mas nada que rendesse um melhor aprofundamento na sombria e misteriosa civilização da Ilha Vermelha.

Já cansados e fadigados de tanto procurar pelas respostas – sem obtê-las –, os quatro pararam e sentaram em uma mesa branca disponível para os leitores. A ala onde estavam não continha muita gente, e isso permitia que eles falassem normalmente, sem sussurrar, como costumeiramente em um lugar do tipo.

— E agora? — Lena arfou, desabando na cadeira.

— Pra sessão infantil é que não vamos. — Ruth cruzou os braços e arrumou os óculos sobre o nariz. — A última coisa que eu quero é ter que me deparar com unicórnios dirigindo carruagens de glitter.

— Já procuramos de tudo e não conseguimos nem um décimo do que precisamos, gente. — Foi a vez de Kris arfar cansado e cruzar os braços, mas antes, retirou o celular do bolso e conferiu quatro chamadas não atendidas. Uma de Verônica e as outras três de Jeferson. Respirou fundo e projetou o corpo contra a mesa, deitando sobre os braços cruzados.

— Tem que ter algum livro ou outro documento escrito que fale daquela cidade. — Nina ponderou. — Não é possível que uma civilização antiga seja tão esquecida assim.

— Pior é que existem muitos casos como esse. — Comentou Ruth.

Subitamente, a loira brincando com o colar de sereia, viu nas mãos de um homem que andava próximo à mesa, um livro grande e velho, que chamou a sua atenção imediatamente. Ela conseguiu ler “Santa Muerte” na capa e de maneira veloz, ergueu-se da mesa e seguiu o homem, que estava acompanhados de mais duas pessoas. Sem notar a presença de Nina, ele depositou o livro na prateleira, mas ela o interceptou.

— Oi, me desculpa, mas você ainda vai precisar desse livro? — Perguntou gentilmente.

— Oh, claro que não. — O homem sorriu, mostrando duas pequenas covas nas bochechas. — Fique a vontade.

— Obrigada. — Nina tomou-o em mãos e sorriu de lado.

Ele tinha os cabelos com fios em tons claros bem curtos, e uma barba rala, que parecia ter sido feita a pouco tempo. A camiseta estampada com cabeças cômicas de Chucky, o Boneco Assassino, chamou sua atenção e deixava a tatuagem em seu braço direto à mostra. Um lobo. O homem se despediu rapidamente, depois que uma mulher chamou por ele. Os dois, na companhia de uma garotinha, saíram dali.

Nina voltou à mesa, onde o trio que aguardava, estampava uma expressão confusa.

— O que aconteceu? Por que saiu feito uma louca? — O veterinário indagou.

A loira apenas balançou o livro em sua mão. Os olhos de Ruth e Lena brilharam ao mesmo tempo.

— É sobre Santa Muerte? — Ao olhar para a capa e lê-la, Ruth teve a confirmação.

— “Santa Muerte, uma herança maldita”. — Nina leu, tocando a capa dura. — Deve ser exclusivamente sobre ela. — Começou a olhar os detalhes dos desenhos em alto relevo na contracapa.

— Graças àquele homem. — A loira concluiu. — Mas, por que ele estava com esse livro? — Nina não se empenhou em responder sua indagação e ainda na capa do livro leu: Hermes Gama. — Esse é o autor.

— Nunca ouvi falar. — Disse o veterinário. As outras duas deram de ombro.

— Vamos ver logo o que tem nele e acabar com isso! — Lena apressou.

A espessura e o número de páginas assustaram um pouco, mas tudo acabou fluindo normalmente, quando relato do escritor começou a ser descoberto:

“Nunca pensei que um convite para explorar a zona sucumbida de Santa Muerte fosse render-me uma experiência tão incrível como a que sucedeu comigo durante o tempo que estivesse nas ruínas. A expedição contou com diversos homens, incluindo Nero Roger, que infelizmente não está mais entre nós, mas conquistou o que tanto sonhou: desbravar os restos do que um dia fora uma civilização sombria, que escondia seus segredos embaixo de sete chaves, nas catacumbas do esquecimento. E agora estou aqui, relatando a história de um povo que praticou atos horrendos, perante um deus cultuado por exercer um papel fundamental de proteção e fartura. Eles chamavam de Santa Muerte, e isso derivou o nome da cidade, mas eu prefiro chamar secamente de Morte [...]”.

Passaram algumas páginas, até lerem outro trecho do escritor e narrador do documentário:

“[...] As pragas rogadas sobre a civilização, caso não cumprissem com as oferendas mensais para a soberana Morte foram divididas em três: Enchente, Infestação e Ruína. As oferendas tratavam-se de sacrifícios feitos pelos próprios moradores, para a divindade. E consistiam em quatorze almas condenadas através de um desastre, conjurado pelo Xamã da floresta. Ele invocava a morte em determinado local, para eliminar tais vítimas, de acordo com uma ordem imposta por ele, durante a visão de uma dessas pessoas. O indivíduo responsável pela precognição era denominado Oráculo, e obrigatoriamente deveria ser o último sacrifício, pelo motivo da divindade considera-lo a carne original, aquela que guiou as demais almas. Através da visão dos desastres, era desencadeada a caçada da divindade aos sacrifícios, e um a um, os indivíduos eram sacrificados em rituais.

Porém, para que as cerimônias pudessem ser organizadas e planejadas de acordo com o que a divindade queria, eles precisavam ser classificados por categorias, que denominavam cada vítima, perante seu julgamento feito pela própria Santa Muerte. A numeração original das categorias, segundo as escrituras encontradas nas ruínas da civilização, seguiu a exata ordem:

A Harpista

O Guerreiro

O Atleta

A Inocente

O Flautista

A Guardiã

A Prostituta

A Erudita

O Curandeiro

A Virgem

O Tolo

O Mensageiro

A Donzela

O Oráculo

Também, segundo os escritos, esta categoria original se difundiu ao longo dos meses, passando a modificar-se nos diferentes Oráculos, onde em cada premonição conjurada pelo Xamã, a ordem das categorias se alterava, mas sempre com o Oráculo em último, como a principal oferenda. Isso impedia que as vítimas soubessem sua colocação na lista da Morte. Para confundi-los, eles marcavam os sacrifícios com a ordem de categorias original.

Com o passar dos anos, bruxos aderiram à conjuração e passaram a desencadear a morte e a tabela de sacrifícios em outros desastres, visando apenas as recompensas, dentre elas e mais procurada: Imortalidade. Esta linha de pensamento se dissolveu no oriente e, muito tempo depois, no ocidente. Ainda hoje [...]”.

Todos na mesa arregalaram os olhos. Tudo o que estavam sendo relatado acontecera de fato com eles. E naquele momento, eles tornaram-se os sacrifícios da morte. Ela estava realizando a caçada, como realizava nas oferendas mensais de Santa Muerte.

— Alguém deve ter conjurado o desastre e escolhido Anna como o Oráculo, e agora, este mediador espera algum tipo de recompensa pelo feito. — Nina comentou pensativa, semicerrando os cílios, forçando um raciocínio lógico. — Lembro-me do Greg ter dito algo sobre o Oriente Médio mesmo.

— Isso deve explicar por que estamos marcados com estes números em nossas nucas. É a formação original dos sacrifícios. — Ruth replicou.

Em seguida, Lena disparou:

— Então, não é a ordem oficial, é apenas a demarcação de categorias.

— É possível que seja isso mesmo. — Kris olhou para Nina, paralisada e em silêncio, parecia visitar suas lembranças. — Mas não explica porque os sobreviventes foram morrendo na mesma ordem que a sequência original de sacrifícios. É confuso, estou com um nó na cabeça.

— Muito pelo contrário, Kris. Chega a ser bastante simples. — Ponderou Ruth, retirando os óculos.

Ela enxergava bem, mesmo que estivesse sem eles. Não os usava muito, de modo que venceu facilmente a dependência, que em outra ocasião, seria um problema. Deu continuidade ao seu pensamento:

— Considerando que seja apenas uma coincidência bizarra, a Lis pode ser a Harpista, certo? As outras confirmações vêm através do surfista em terceiro e do Maurício, que era músico, em quinto. Os dois representam respectivamente o Atleta e o Flautista.

— Isso, Ruth! Você está coberta de razão. Encaixamos Wendel na categoria de Guerreiro e Bella na categoria de Inocente. Explicaria o motivo deles não parecerem seguir essa base. O mesmo para a Guardiã e a Prostituta. As vítimas precisam se adaptar às categorias, e não o contrário. — Completou Lena, empolgada por estar desvendando os códigos impostos pelos sacrifícios. — A morte só precisa usar perfis parecidos.

Nina sentiu-se extremamente desconfortável com Vanessa estar na categoria de Prostituta, mesmo que não fosse e precisasse da semelhança de uma, para que o sacrifício funcionasse. Até porquê, ela não tinha nada a ver com aquele perfil imposto.

— De certo, explicaria realmente o motivo de eu ser o número nove. O nove é o curandeiro, e eu tive que me adaptar à categoria, porque sou veterinário. — Kris disse. — Mas ao mesmo tempo fico em dúvida, porque se continuarmos seguindo a numeração e essa conexão, não especifica a causa da demora em ela vir me pegar, já que sou o nono.

— É simples, Kris. — Nina tocou seu ombro de leve. — Você não é o próximo.

Ruth e Lena prestaram atenção na bióloga.

— Logo depois da quase morte da Valentina, a Erudita, segundo às categorias e ao perfil dela, eu quase morri. O meu ex-namorado causaria minha morte, foi quando Greg e Lana interviram, e eu fui salva. Eu morria depois da Valentina, e não você. — Olhou para o rapaz sentado à mesa. — Agora faz mais sentido. Ela o usou pra chegar até mim... O número treze, o número da Donzela... Ela precisava armar o circo, a cena, para que tudo corresse como ela queria e eu estivesse realmente em perigo. Assim, o sacrifício valeria a pena, por estar dentro dos padrões que ela pretendia. — Os olhos da loira ficaram marejados.

— Isso significa que ainda posso ser o próximo, mesmo que quebre o protocolo da ordem de sacrifícios original. — O rapaz arfou.

— Anna é a única que pode ceder quem é a próxima vítima. — Replicou Ruth. — Voltamos à estaca zero, e dependemos dela mais do que nunca.

— Por precaução, ficaremos com o livro. Irei aluga-lo. — Nina completou, fechando e segurando o objeto. — Agora, precisamos ligar para eles e avisá-los.

Em uma mesa próxima, Serena gravava toda a conversa no gravador que pusera embaixo da mesa, quando eles ainda procuravam pelo tal livro.

— Eu preciso desse livro, mas como vou fazer para pegá-lo? — Sussurrou para si mesma.

XXXXX

Dentro do apartamento de Greg, todos continuavam eufóricos e ansiosos pelas respostas dos sobreviventes que foram até a biblioteca. Anna Clara, prestes a ter uma de suas crises de ansiedade, prostrou-se diante da filha e resolveu conversar com ela, tentar se distrair, ver se a dor de cabeça iria embora de vez. Greg e Shinji trocaram algumas palavras, assim como Mônica, Valentina e Lana. A segunda falava sobre sua irmã e em como sua busca estava se desenrolando.

Já Bella contava sobre o desaparecimento da boneca para Gabriel e Vivian. O rapaz ofereceu-se para procura-la do lado de fora, e diante da insistência dele, a loirinha cedeu. Gabriel saiu porta à fora, despertando Greg.

— Para onde ele foi? — Indagou.

— Foi procurar um objeto meu, que provavelmente caiu do lado de fora. — Bella respondeu. — É melhor eu ir chama-lo. Esqueci que não podemos ficar sozinhos, qualquer um de nós pode ser o próximo.

— Pode ir, tomamos conta dela. — Valentina sorriu, apontando com a cabeça para a ruiva sentada próxima a ela.

— Obrigada, mas eu não preciso de ajuda. — Foi o que ela retrucou.

— Você vai ficar bem, Vivi. — Bella assentiu e saiu pela porta.

Quando chegou no corredor, Bella acabou se chocando contra uma mulher subindo as escadas, correndo. Ela estava muito ofegante. Os cabelos recentemente tingidos de um tom de roxo enegrecido balançavam pela velocidade.

A loira desceu os degraus e procurou por Gabriel. O rapaz havia sumido de sua vista.

XXXXX

A porta entreaberta do cômodo foi empurrada com facilidade, assustando todas as pessoas presentes. Greg, que estava mais próximo da entrada do apartamento, apressou o passo e conseguiu parar a mulher cambaleante que acabara de entrar. Ela desmaiou em seus braços, e ao retirar o cabelo que cobria seu rosto, soube de quem se tratava. Como não pode perceber as orelhas pontudas?

— Lana, corre aqui, é a Crystal! — Antes mesmo de ele terminar, Lana já estava ao seu lado, amparando o corpo desacordado da cigana.

— Alguma de vocês poderia trazer o álcool? Está no banheiro! — A dona do apartamento bradou, e rapidamente Valentina se ergueu de sua cadeira e correu até o banheiro.

Com a ajuda de Shinji, o barbudo pôs a cigana deitada no sofá.

— Crystal, fala comigo. — Lana dava leves tapinhas no rosto da mulher.

XXXXX

Gabriel parou de frente para o prédio onde os sobreviventes estavam reunidos, e direcionou seu olhar para o prédio da frente. A placa do lugar destacava qual sua finalidade. Estava escrito “Casa de Brinquedos: Hello Toys”. O rapaz seguiu o olhar para a porta principal da brinquedoteca, que estava aberta, e viu uma mulher carregar a boneca – que dera de presenta para Bella –, para dentro do prédio. Correu para lá, chamando a atenção da senhora de cabelos grisalhos e um vestido longo surrado.

Ao lado da casa de brinquedos, na fachada de uma vídeolocadora, um cartaz de Curse of Chucky estava pregado ao lado de um do filme Annabelle, ambos retratando o terror onde bonecos eram o causador de tudo. Gabriel não notou os cartazes e entrou o mais rápido que pode no prédio. Do outro lado, ainda na calçada do prédio do barbudo, Bella pode ver Gabriel entrando na brinquedoteca e o seguiu.

XXXXX

O celular de Greg tocou. Ele olhou no visor e atendeu. Era Nina.

— E então, Nina, o que conseguiu?

Greg, estávamos errados sobre as cicatrizes. Elas estão nas nossas nucas para nos confundir. — Falou celeremente. — Passe para a Anna, precisamos dela.

O homem tatuado não protestou e passou para a mulher de cabelos curtos.

— O que houve, Nina?

Anna, você precisa fazer um esforço, pra nos dizer quem é o próximo, tente lembrar.

— Mas só consigo lembrar até a Valentina. A partir daí dá um branco completo. — Pigarreou.

Se isso te ajuda. Eu morri depois da Valentina. — Retrucou a bióloga. — É isso, não é? Eu morri depois da Valentina. Agora, você precisa me dizer quem morre depois de mim. Quem? Ele é o próximo! — Nina sabia que era difícil para Anna lembrar a ordem exata, mas a vida do próximo da lista estava em jogo.

XXXXX

Assim que o rapaz de feições infantis entrou na casa de brinquedos, as luzes começaram a piscar. De onde estava, Gabriel podia enxergar milhares de brinquedos espalhados, fossem nas paredes, no chão ou pendurados como enfeites no teto. Era, de fato, um ambiente extremamente infantil, onde as mães deixavam suas crianças para trabalharem mais tranquilas. Bella também viu as lâmpadas oscilarem, de onde ela estava posicionada.

Ambos permaneciam relativamente longe um do outro. Enquanto ele acabara de entrar na sessão de brinquedos masculinos, como carrinhos de controle-remoto; ela acabara de chegar até a sessão de bonecas.

Era quase infinita a quantidade de bonecas diante dela, espalhadas nas prateleiras enfeitadas com doces artificiais. Muitas delas tinham o olhar bastante vidrado, de modo que pareciam segui-la. Bella caminhou entre as prateleiras, receosa. Já Gabriel corria entre as várias prateleiras cheias de carrinhos, peões, bonecos cheios de testosteronas em excesso e bolas de futebol.

De repente, ele viu no fim do corredor, a silhueta se mover depressa e uma risada estranha e esganiçada. Correu na direção do vulto.

— Ei, será que pode devolver a boneca, por favor? — Continuava correndo, na direção do fim daquele corredor.

A risada continuava.

Desta vez, as lâmpadas se apagaram completamente e uma música começoua tocar nos alto falantes espalhados pelo lugar.

Hey girl, open the walls

Play with your dolls

We'll be a perfect family

When you walk away

Is when we really play

You don't hear me when I say

Bella continuava caminhando pela sessão de bonecas à procura de Gabriel.

— Quem apagou a luz? — Gritou. — Gabriel, cadê você?

XXXXX

Anna Clara forçava a mente, e a cada vez que ela fazia isso, a dor de cabeça só aumentava. Mas era necessário, o futuro da próxima vítima da morte dependia desse esforço, dependia dela. Então, em meio à apreensão, ela pode ver os flashes voltando até sua mente. A primeira a ver depois de Valentina foi Nina, assim como a garota falara que seria. Ela estava em um quiosque, tentando salvar alguns animais indefesos, e acabou ficando presa, foi quando aconteceu. A lava que vinha logo atrás da loira engoliu-a sem dó. Anna pode sentir o calor expelido pelo mar de fogo lhe consumir.

Subitamente, surgiu outros dois flashes. Em um deles, estava Gabriel, o garoto da face de criança, ele não resistiu e foi levado junto com o píer, enquanto caía, a lava vinha junto. Toda a cena trouxe novamente uma agonia para Anna. Ela desejou acordar do transe, mas antes que o fizesse, teve noção do que estava prestes a ver no flash seguinte. Ela tinha certeza de que vira Ruth nadando e a água tomando de conta da respiração da garota, e então viu uma lança surgir do nada.

Anna? — Nina disse no celular, despertando a visionária. — Anna, conseguiu? Viu quem é o próximo?

— Gabriel. Ele vem depois de você na premonição.

Todos na sala ficaram estáticos. Crystal tremia os olhos, ameaçando acordar. O álcool pego por Valentina, e que estava na posse de Lana, estava surtindo efeito.

— Droga! Logo agora que ele saiu com a Bella no encalço? — Greg bateu os punhos na parede.

— E agora, como saberemos pra onde os dois foram? — Valentina ficou de pé.

— Péssimo dia pra não poder enxergar, se não, já tinha ido atrás deles, revirando os quatro cantos do planeta. — Vivian disse. — Por favor, achem eles e salvem o Gabriel!

— Mas não fazemos a mínima ideia de onde eles possam ter ido. — Lana comentou.

De repente Crystal abriu os olhos, mas os mesmos estavam aterrorizantes. O globo ocular da cigana estava completamente branco, revirados. Nada era visto além da órbita leitosa arregalada. Ela balbuciou algumas palavras:

— Estou vendo um rapaz com rosto de criança. Ele está assustado e rodeado de bonecas, principalmente a loira que o acompanha. Os dois estão encurralados, perdidos, sem saber como escapar. Há brinquedos por todos os lados, sorriso medonhos, olhares compenetrados, cheiro de sangue e morte...

Anna, que estava ao lado da cigana no sofá, ergueu-se e saiu de lá, sumindo do corredor e sendo seguida imediatamente por sua filha. A garotinha pigarreou alguma coisa.

— A brinquedoteca aqui em frente! — Lana gritou.

— Faz sentido. Eles devem ter ido pra lá! — Greg assentiu e saiu porta à fora. Shinji o seguiu instintivamente. Clarisse e Valentina fizeram o mesmo, sem olhar para trás.

Mônica ficou ao lado de Vivian nas cadeiras, rogando para que tudo ficasse ao favor de Gabriel. Lana ainda tentava acordar Crystal, que havia desmaiado novamente. E a esta altura, Nina já tinha desligado e estava a caminho, com os demais.

XXXXX

Places, places

Get in your places

Throw on your dress and put on your doll faces

Everyone thinks that we're perfect

Please don't let them look through the curtains

A música continuava tocando, enquanto Gabriel já estava sentindo-se muito desconfortável com a canção. Ouvia uma voz feminina ao longe, mas devido ao tamanho do lugar, não conseguiu distingui-la. Na verdade, duas vozes chamavam pelo seu nome, a segunda parecia estranhamente rouca e abafada. Ele continuava à procura da boneca de Bella. Quando repentinamente, achou-a jogada no meio do corredor parcialmente escuro.

A boneca estava de olhos abertos, de modo que, do ponto onde ele se encontrava, os olhos do brinquedo pareciam vermelhos. Acima de sua cabeça, bandeirinhas coloridas balançavam uma brisa traiçoeira. Bella já estava bem próxima, quando ouviu um barulho como ferros tilintando e olhou para a prateleira ao seu lado. Um boneco de ventríloquo caiu sobre ela, e ela se assustou, gritando.

As cordas do boneco prenderam em seus cabelos e ela começou a correr na mesma direção que outrora estava seguindo. Gabriel ouviu seus gritos e os reconheceu. No único momento de distração, a boneca que estava no chão, olhou-o com seus olhos vermelhos e avançou sobre ele, o empurrando na direção das prateleiras. O garoto tropeçou e bateu as costas em uma delas, deixando que vários brinquedos caíssem.

Bella corria e gritava, pedindo que alguém tirasse o “bicho” das suas costas. As cordas do ventríloquo continuavam presas em seu cabelo, e só embaraçavam mais.

Neste momento, Greg, Shinji, Valentina e Clarisse entraram apressados na brinquedoteca.

— Puta que pariu! A maldita apagou as luzes! — Exclamou o tatuado, referindo-se à morte e seguindo pelo primeiro corredor que avistou.

As garotas ouviam a música tocar ao longe.

Uh oh she's coming to the attic, plastic

Go back to being plastic

No one ever listens

This wallpaper glistens

One day they'll see what goes down in the kitchen

— Venham por aqui! — Shinji chamou as meninas. As duas os seguiram.

Greg já conseguia ouvir os gritos de Bella e Gabriel, respectivamente.

— Vamos nos separar, é mais fácil de achar os dois. — Shinji sugeriu.

— Isso só fode com as pessoas nos filmes de terror. — Comentou o fotógrafo, em passos apressados pelo corredor repleto de brinquedos.

— Ficarmos juntos aumenta a desvantagem de salvá-los. — O oriental replicou. — Somos quatro, precisamos adiantar as coisas.

— Ok, você venceu, flango. — Greg falou, parando. — Você e Val seguem para o outro lado. Os gritos da Bella estão vindo de lá. Deixem o garotão comigo e com a baixinha aqui.

Clarisse assentiu. E os quatro se separaram.

Logo Valentina e Shinji encontraram Bella, ajoelhada num dos corredores, com um ventríloquo preso em seu cabelo loiro. A garota chorava, enquanto debatia-se, na tentativa de tirá-lo. Até que Valentina conseguiu retirar o boneco de cima da garota, que chorava. Estava abalada, visivelmente apavorada. Além do mais, a escuridão não ajudava em nada. Só piorava a situação.

A boneca pulou novamente sobre Gabriel e dessa vez o loiro deu-lhe uma cotovelada. A boneca de porcelana bateu no chão e deslizou até a base de uma das prateleiras. Essas continham brinquedos de maneira. O rapaz recuou e decidiu correr, mas a boneca pulou em suas costas e ele rodopiou, procurando se livrar dela. De repente, viu um objeto reluzir entre os dedos do brinquedo.

— Que merda é essa? Um canivete?

Rodopiou novamente, segurando os braços gélidos da boneca, até sentir um filete de sangue descer em sua bochecha. O canivete havia sido contra seu rosto. Cambaleou e se chocou contra a prateleira ao lado, fazendo os brinquedos balançarem e virem ao chão. Gritou, jogando a boneca para frente. Uma réplica do Pinóquio chacoalhou e tombou na sua direção. A madeira era pesada, de modo que atingiu a cabeça do loirinho e o fez desmaiar instantaneamente.

Abriu os olhos poucos segundos depois. A luz acima dele oscilava e enquanto piscava, ele podia ler nas bandeirinhas: “Hello Toys”. Subitamente a bandeirola do “o” se desprendeu e caiu ao seu lado, tornando o nome “Hell Toys”. Uma agonia e um agouro tomaram conta dele, ao mesmo tempo em que um arrepio perpassava em sua espinha.

Dois vultos se aproximaram dele. Ele preferiu agarrar o canivete e aponta-lo na direção das silhuetas.

— Somos nós, Gabriel. Já pode baixar isso. — A voz grave de Greg era inconfundível.

Mas Gabriel não conseguia enxergar Greg e muito menos a garota que o acompanhava. Duas cabeças se boneca estavam substituindo as cabeças do barbudo e da estudante de jornalismo.

— Não se aproximem! — Gritou.

— Ei, garoto, você enlouqueceu? Estamos aqui pra te ajudar. — Proferiu a garota de cabelos escuros.

— VOCÊS ESTÃO COM AQUELA BONECA, QUEREM ME PEGAR! — O garoto estava visivelmente alterado, não falava coisa com coisa.

Porém, Greg e Clarisse não estavam na pele dele, que enxergava duas cabeças da mesma boneca que o atacou, naqueles corpos. Os olhos vermelhos brilhando, o sorriso repleto de dentes pontiagudos.

— Basta me dar esse canivete, e vamos pegar a porra dessa boneca juntos. — O youtuber estava tentando acalmá-lo. — Vou enfiar esse canivete no cu dela. Mas pra isso, você tem que me dá-lo, entendeu?

Gabriel pôs as mãos na cabeça e começou a chorar, mas sem largar o canivete. De repente Greg estendeu a mão e Gabriel viu a cabeça da boneca abrir a boca e posicionar seus dentes na direção dele. O rapaz deferiu um golfe contra a mão de Greg, que acerto a palma da mesma. Estancando o sangramento com a outra mão, o homem tatuado viu Gabriel subir uma escadaria desesperadamente. Clarisse correu, na tentativa de alcança-lo, mas ele era mais rápido.

O corredor de metal que ficava acima de um cercado com uma grande casinha de bonecas, também ficava embaixo de uma grade colorida cheia de penduricalhos de bonecas relativamente grandes, além de bolas de todos os tamanhos e outros tipos de brinquedos. Gabriel subiu na plataforma chorando, acreditando realmente que estava sendo seguido pela boneca.

Clarisse chegou ao final do corredor de metal, abrindo os braços.

— Não tenha medo, Gabriel! Não vou te fazer nenhum mal! Venha sem medo, não sou nenhuma boneca! — Gritava.

Lá embaixo, Shinji, Valentina e Bella aguardavam. O oriental então andou até a escada que dava na plataforma. Greg estava parado nela, um pouco atrás de Clarisse. Shinji chegou a sussurrar algo para Greg, que assentiu.

Gabriel debruçou-se na beirada da plataforma, sobre as grades.

— Por favor, Biel, não faça nenhuma besteira! — Bella gritou.

— Venha, Gabriel, venha comigo! — Clarisse fez menção em se aproximar.

Então, Gabriel começou a ver todos com suas antigas faces. As faces normais. Não haviam mais cabeças de “bonecas do mal”. O jovem sorriu com os olhos brilhando para Bella. Ela estava ali, finalmente ele poderia ficar aliviado pelo primeiro amor de sua vida estar a salvo. Ele não percebeu Shinji e Greg se aproximando ao lado dele, muito menos o mecanismo ligado logo acima da grade, que continha os penduricalhos.

O barulho metálico despertou a atenção de todos.

D-O-L-L-H-O-U-S-E

I see things that nobody else sees

D-O-L-L-H-O-U-S-E

I see things that nobody else sees

O mecanismo soltou faíscas e despencou sobre a grade dos penduricalhos, chacoalhando e desprendendo alguns palhaços, antes de acontecer o pior. A boneca da ponta da grande deslizou e pendeu para frente, na direção de Gabriel. Shinji até tentou puxá-lo, mas o rapaz foi atingido em cheio pelo brinquedo. No último segundo entre a grade protetora atrás de si e a grade inclinada acima de sua cabeça, pode ver a boneca que lhe atingira. Era a de cabelos alaranjados com tranças, a mesma que usava vestido longo branco de fita vermelha. A boneca com a qual presenteara Bella. Os olhos vermelhos foram a última coisa que ele viu, antes de rolar pela grande de proteção da plataforma de metal e ficar em queda livre.

Eram poucos metros até a réplica em tamanho grande da casinha de bonecas. A costa do garoto de feição infantil foi a primeira coisa a bater contra o teto da casa. O som grotesco das costelas quebrando e da coluna vertebral entortando foi audível. Bella gritou o mais alto que conseguiu, caindo de joelhos. Gabriel abriu os braços e rolou pelo teto da casinha, sentindo o tronco arder como se estivesse deitando em brasa. Naquele breve momento, focou-se em Bella e a imagem da loira ficou em sua mente, até seu corpo encontrar algo que o fizesse parar.

Um último sopro de vida. O corpo do estudante chocou-se contra o cercado colorido em volta da casinha. As pontas da cerca atravessaram brutalmente seu tórax e saíram com força nas suas costas, levando consigo alguns órgãos e muito sangue. Uma das estacas de madeira chegou a atravessar seu ombro e abdômen, numa dança violenta de órgãos, ossos e sangue.

Sangue espirrou no rosto de Valentina e Bella. A loira já estava totalmente desolada, sem saber o que fazer além de gritar pelo nome dele.

Sentado na plataforma, Shinji olhava horrorizado para a cena. Greg continuou de pé, estancando o sangue que continuava saindo da palma de sua mão. Quanto à Clarisse, observava tudo de cima da passarela de metal, segurando na grade, com o corpo inclinado, os olhos vidrados na cena que se sucedeu.

Por fim, a boneca deslizou pelo telhado da casinha e caiu perto do corpo estirado, empalado e ensanguentado na cerca. Algum sangue desceu pela cerca, até pingar numa grande rachadura que havia se formado entre os dois olhos da boneca.

Tiffany.


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Notas finais do capítulo

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