A Vida em Baker Street escrita por they call me hell


Capítulo 1
A Vida em Baker Street


Notas iniciais do capítulo

Watson não possui super-poderes, mas certamente é o tipo mais humano e real de herói. Aproveitando, convido-os a conhecer minhas outras fanfics! ♥



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― Olá, meu nome é John Watson. Seja bem vindo ao meu blog.

Devo confessar que estou extremamente empolgado com a concretização dessa idéia em particular, algo que já havia decidido começar há algum tempo, mas que só estou começando agora, nessa bela manhã de março.

― Que jeito mais estúpido de começar um blog, Watson ― diz o meu adorável amigo Holmes. ― O que pretende escrever aí?

Desviando o olhar da tela do notebook para Holmes, vejo que ele está com uma das sobrancelhas erguidas – um gesto aparentemente muito peculiar seu –, o que indica um misto de curiosidade e irritação, imagino. Mas só imagino, porque Sherlock é indecifrável.

― Comecei a realizar consultas com uma médica, como já lhe disse. Ela sugeriu que eu escrevesse sobre os anos em que dediquei meus serviços ao país, no Iraque ― explico. ― Agora estou refletindo sobre o que realmente aconteceu para poder escrever de forma fiel. Foi um longo tempo. Não bastando a loucura da primeira vez, depois de ser dispensado e me fixar em Londres acabei recebendo um chamado para retornar ao Iraque e...

― Atuar como médico dos soldados feridos em batalha ― Holmes completa minha narração. ― Você passou três meses lá, fazendo isso, e acabou de voltar. Por isso estava procurando um lugar para morar e nem sabia por onde começar, não é mesmo?

Eu não preciso confirmar para que ele saiba que está completamente certo.

― Sabe Sherlock, durante esses três breves meses fora eu achei que estivesse presenciando o apocalipse. É terrível ― pauso momentaneamente, tentando não reviver as memórias. Em vão.

Ah, eu me lembro bem desses três meses! Foram longos dias tratando homens feridos em guerra, sem nenhuma perspectiva de fim ou de retorno ao lar. Todos os dias chegavam mais e mais homens feridos; não apenas fisicamente, pois suas mentes e corações também estavam em pedaços. Era difícil enxergar alguma humanidade nas áreas de conflito, sendo que nem mesmo eles sabiam o real motivo de estarem ali.

O meu trabalho, mesmo que mais recluso, não era muito mais fácil. Muitas vidas eram exauridas diante dos meus olhos, por mais esforços que fossem empreendidos entre nós médicos e enfermeiros. As pessoas costumam achar que apenas os homens com capas e super-poderes são heróis, mas pense um pouco melhor e verá que os homens de farda ou jaleco também o são.

― Sim, Watson. Você realmente é um herói de guerra condecorado, como soldado e médico. E está vivo, o que vale muito mais ― Sherlock ri do seu jeito sarcástico.

― Creio que sim ― balanço a cabeça positivamente, dando uma risada contida. ― Seria ótimo se minha irmã, Harriet, pudesse me dizer isso também. Ela ficou profundamente alegre quando retornei a Londres, mas julgou inaceitável que retornasse por mais tempo, ainda que com um diferente propósito ― olho para Sherlock, sentado no velho sofá, e percebo que ele realmente quer ver onde essa conversa vai dar. ― O tempo passou, de todo modo. Quando retornei após esse trimeste, a doença de Harriet já havia piorado e a única coisa que tenho dela desde então é o silêncio da sua sepultura, a qual visito todos os domingos.

Sherlock franze o cenho e eu espero pelo que será a sua primeira demonstração de compaixão e afeto, em forma de palavras de encorajamento a mim.

― Você não está escrevendo sobre mim nesse blog, está? ― Sherlock se põe a andar em direção ao notebook, frustrando minha idéia de receber boas palavras suas sobre o quão difícil é aceitar que estive longe quando minha irmã morreu. ― Nada de falar sobre mim, Watson. Já me bastam os jornais e cartas que chegam a todo momento.

― Holmes, o blog não é sobre você ― Explico calmamente. ― É sobre os acontecimentos da minha vida, desde que parti até meu retorno, como um... diário virtual.

'Diário virtual'? ― Pergunta de forma sarcástica. Eu detesto isso. ― É assim que você chama isso, Watson? Deixe eu lhe dizer uma coisa que parece não estar clara para você: sua vida foi muito tumultuada no Iraque e, por causa disso, você perdeu seus amigos e a única família que te restava, mas desde que nos conhecemos a sua vida se resume a mim e aos nossos casos. Isso definitivamente não pode ser publicado assim, de repente.

― Nem quando resolvidos? ― É a minha vez de erguer uma das sobrancelhas.

― Não acredito que esteja mesmo fazendo isso.

Oh-ou. Ele parece irritado e eu estou considerando me proteger com o próprio notebook caso ele se aproxime. Holmes é muito bom em boxe e esgrima, poderia até ter sido um grande pugilista, na minha opinião.

― Escute, Sherlock ― Começo devagar, procurando acalmá-lo. ― É graças ao meu blog que tantas pessoas têm nos procurado com seus casos e isso te livrou do tédio, não? Pense pelo lado positivo, meu amigo. Você é um gênio em dedução e o mundo aprecia isso.

― Moriarty tem tanto acesso à internet quanto você, Watson ― Meu amigo aponta, me deixando amedrontado.

― Não há nada que ele já não saiba sobre você ― Acuso em defesa.

Tal frase parece repelir Holmes, tal como o fogo afasta a escuridão. Em poucos passos – talvez dois – ele se aproxima da janela do nosso apartamento e fita o movimento dos carros lá em baixo. A Baker Street sempre será uma importante artéria no tráfego norte-sul de Londres, ainda que seja tão estreita. Ele parece pensar o mesmo.

Olhando Sherlock Holmes desse modo, não posso evitar analisá-lo, ainda que a análise seja uma área digna da sua observação única sobre os seres humanos. Ele é jovem. Entre uma aventura e outra, deve ter seus 28 anos, ou - pelo menos - não aparenta mais do que isso. Alto, dono de uma pele muito branca, possui cabelos negros levemente ondulados, que não passam muito da parte superior das suas orelhas. Tem os olhos azuis, claros como o céu londrino em dias de sol, que são raros, mas às vezes nos dão a graça da sua presença. Holmes tem também os lábios muito finos e as sobrancelhas um tanto grossas, ainda que elas não pareçam desproporcionais ao seu rosto. Ambos - os lábios rosados e as sobrancelhas negras - não são muito expressivos na maior parte do tempo, o que me faz ver que ele é um homem mais racional. Seu cérebro trabalha a milhões por minuto, silenciosamente e a todo o momento, enquanto seu rosto parece calmo e entediado sempre.

Acho que meu amigo ficaria feliz se soubesse que fui capaz de dizer tais palavras sobre ele. Ou, melhor dizendo, criticaria que meu senso de análise é muito externo, muito cru, faltando o estudo dos detalhes mais ocultos. Holmes às vezes me dá dores de cabeça com sua paixão por detalhes e mistérios aparentemente insolúveis.

― A correspondência chegou! ― Diz a senhora Hudson, batendo à porta numerosas vezes.

Considerando a conversa anterior, prefiro levantar-me para atender a velha dona do prédio, mas Holmes é muito mais rápido do que eu, como sempre há de ser. De onde estou, posso vê-lo abrindo a porta sem fazer o menor barulho, encontrando a mulher com o rosto virado para trás, provavelmente ainda esperando. "Esses meninos deveriam abrir a porta mais rápido", ela diz a si mesma, virando o rosto na direção do 221B outra vez e encontrando o silencioso dono dos olhos azuis a fitar-lhe. Ele sempre parece estar nos estudando. Ao reparar que a porta foi aberta e que Sherlock está diante dela, a senhora Hudson assusta-se, dando um leve grito que parece muito mais alto com o eco do ambiente.

Ela eventualmente se assusta com ele, mas não é para menos. Meu amigo gosta de tocar violino nas horas mais inapropriadas do dia, assim como também guarda amostras de sangue e partes mutiladas de vítimas na geladeira da cozinha. Há também o gosto anormal por testes com armas dentro do apartamento e seus treinos, muito emocionantes, de boxe e esgrima. Emocionantes, principalmente quando inventamos de treinar os dois, ele com suas armas brancas e eu com minha bengala.

O fechar da porta me traz de volta ao presente. Sherlock está com algumas cartas em mãos e as passa tão rápido que eu não sei dizer como consegue ler, ao menos, o nome dos remetentes em cada envelope. Mas ele consegue, eu sei disso, ainda que jamais possa explicar como o faz. De repente, o padrão é quebrado e um único envelope permanece curiosamente em sua mão, o que o fez descartar todos os outros sobre a mesa branca de seu pequeno laboratório, no cômodo ao lado.

― Pollack ― Ele diz, simplesmente, fazendo várias perguntas surgirem na minha cabeça.

― Quem é 'Pollack', Holmes?

― Não se trata de quem, mas sim o que ele é ― Meu amigo sussurra, quase não me permitindo ouvi-lo, como se ali estivessem todas as respostas. Sem tirar os olhos do envelope ainda fechado, prossegue: ― Pollack é um homem consideravelmente fraco, de meia-idade, não mais inteligente do que a média. Estudou em Laverne, presumo, pois seu estilo literário é digno do que costuma ser ensinado lá. ― Ele passa o envelope uma única vez pelo nariz, o que estranho. ― E tem uma prediletação aparente por charutos alemães, o que é incomum. Esse tipo de charuto, forte como a nação ariana, tem um cheiro peculiar que se impregna em toda e qualquer coisa que esteja próxima à fumaça. Pollack fumava um enquanto escrevia e estava tenso, já que estava fumando.

― Impressionante, Holmes ― Eu o elogio, fascinado pelo modo como pode me dizer tantas coisas através de um único envelope ainda lacrado. Se o tal Pollack estivesse aqui, tenho certeza de que confirmaria tudo isso.

― São apenas os fatos ― Responde ele, a mania de diminuir suas façanhas sempre presente. ― Mas há mais sobre Pollack. O que lhe disse responde apenas uma parte.

― E o que ele seria?

― Um importante elo, Watson ― Holmes responde, os dedos longos rasgando o topo do envelope sem comprometer a carta. ― Pollack liga uma rede criminosa qualquer à Moriarty. O que me fascina não é a rede em si ou o nível de periculosidade da mesma, mas sim a aproximação desse mero homem com o gênio deturpado que Moriarty representa.

― Talvez seja um teste ― Subestimo.

― Talvez ― Holmes concorda, me deixando um tanto alegre por ter acertado em algo. ― Porém, a aproximação de Pollack se deu por ele mesmo e já me passou importantes informações antes. Não me ajudando em casos em andamento, mas, sim, prevenindo acontecimentos, de certo modo. Moriarty deve desconfiar dele, suponho. Esse seria um bom motivo pra charutos alemães durante sua escrita.

Quando Holmes finalmente abre a carta, percebo sua atenção focar-se em um certo ponto específico da mesma. Ele varre os olhos de forma rápida pelas linhas, tal como fizera com os outros envelopes antes. Ele pode negar o quanto quiser, mas adora os minutos que antecedem um bom mistério tanto quanto eu.

― Bem, pegue seu casaco. Temos algo a fazer ― ele murmura, dobrando novamente a carta. Em um cabideiro próximo pega seu sobretudo e o cachecol, guardando o papel em um dos bolsos salientes.

Obedeço sua ordem de imediato. O Iraque acabou para mim e, graças a ele, tenho marcas profundas em meu corpo e alma. Durante minha ausência perdi amigos que continuaram suas vidas e Harriet, a única parente viva que me restava e que não conseguiu vencer o câncer. Porém, não posso definhar agora que finalmente estou livre, por mais difícil que seja começar do zero. Mais do que isso, estou também ao lado de Sherlock e, assim, todo dia é um novo dia para ser um herói salvando Londres.


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Notas finais do capítulo

Obrigada por ler! Caso tenha gostado, que tal incentivar-me a escrever novas histórias com um review ou recomendação?