Premonição 9: A Dama no Escuro escrita por Lerd


Capítulo 5
Pressão


Notas iniciais do capítulo

Dessa vez o capítulo não demorou, certo? :DD
Enjoy!



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Emma Lynn Brown escrevia no enorme quadro branco da sala da universidade com rapidez e segurança. Ela nunca havia lecionado em um college até três meses antes, mas desde que pisara na sala de aula tudo seguira de maneira natural. No fim das contas não havia qualquer diferença entre os seus alunos dali e os que ela tivera no high school durante quase vinte e cinco anos, exceto que ela não precisava ficar cobrando coisa alguma deles. Quem quisesse ser irresponsável, tinha total liberdade para isso.

— O “Mito da Caverna”, de Platão, é uma das histórias mais clássicas da Filosofia. Eu tenho certeza que todos aqui, em um ponto ou outro já ouviram falar sobre ela. Esse mito nada mais é do que um modo de contar imageticamente o que conceitualmente os homens teriam dificuldade para entender, já que, pela própria narrativa dele, o sábio nem sempre se faz ouvir pela maioria ignorante...

Sentado em uma das carteiras mais afastadas, bem acima e ao fundo, Lucas bufou. Ele sabia sobre o que tratava o mito, já que tinha tido aquela exata mesma aula, com a exata mesma professora, quando estava no ensino médio, no ano anterior. Ao lado dele, Nina parecia ter a mesma opinião, já que largara o lápis em cima do caderno e se dedicava a jogar um jogo qualquer em seu celular.

— Será que pega mal a gente sair no meio da aula? — Ele cochichou pra ela.

— Acho que não. — A loira respondeu sem tirar o olho do celular. — E além do mais eu estou morrendo de vontade de tomar um cappuccino. Vamos?

Lucas meneou a cabeça positivamente e se levantou. Ele estava na carteira ao lado do corredor, de modo que não precisou pedir licença a ninguém, apenas sair. Nina veio atrás deles, e ambos saíram pela parte de cima da sala, preferindo não chamar mais a atenção para si tendo de passar ao lado da professora, várias fileiras abaixo.

— Essa aula é um maldito déjà vu. — Nina comentou já fora da sala, caminhando abraçada com sua pasta cor de rosa. Lucas estava ao lado dela, com uma mochila branca nas costas.

— Nem me fale. É como se a gente tivesse voltado um ano no tempo. — O rapaz confirmou.

Nina sorriu.

— Exceto que há um ano eu te odiava, não é?

Lucas caiu na gargalhada, mas não disse nada.

No fim das contas, a tragédia no Atlântida fora o que Lucas e Nina precisavam para entenderem melhor um ao outro. Eles conversaram pela primeira vez no memorial para as vítimas, realizado dois meses após o acidente, mais de dez meses antes daquela enfadonha aula de filosofia com Emma. Na ocasião, foi Lucas quem decidiu colocar a situação a limpo. A maneira irracional com que Nina o odiava, e a maneira como ele a temia, eram completamente inapropriadas. Não havia motivos sensatos para isso. Nenhuma bolsa de estudos compensava a maneira vil como eles competiam um com o outro.

Naquele dia, os dois conversaram. Muito. Por horas. E por fim descobriram que tinham mais em comum do que podiam imaginar. A pressão pra serem os melhores. Os problemas familiares decorrentes da expectativa que era colocada em cima deles. A sensação de nunca ser bom o suficiente. A perda recente de amigos queridos (Eddie no caso de Lucas, Michaela no caso de Nina). Nina percebeu, naquele dia, que Lucas tinha mais em comum com ela do que qualquer outra pessoa que ela conhecera em toda a sua vida.

E então chegou o dia do resultado da bolsa em Harvard. Para ambos, que nesse ponto já tinham desenvolvido uma saudável (porém frágil) amizade, aquele resultado foi o melhor possível.

Nenhum dos dois conseguiu a bolsa. Por uma resolução do governador do estado de Massachusetts, a partir daquele ano todos os estudantes de Harvard deveriam passar por um teste de admissão padrão, não havendo concessão de bolsas para nenhum colégio, dentro do estado ou não. E então, de uma hora para outra, tudo o que Nina e Lucas batalharam durante pelo menos quatro anos para conseguir fora por água abaixo. O motivo de todos aqueles anos de ódio irracional desaparecera tão rápido que era difícil pensar com clareza a respeito da situação.

Nos meses seguintes, a amizade entre Lucas e Nina apenas se intensificou. Com o afastamento de Riley e Andi, o rapaz cada vez mais se apoiava na loira. E com a morte de Michaela, o mesmo era verdade para a garota. Junior era sempre bastante solícito, mas Nina precisava de um amigo. Alguém com quem pudesse, inclusive, conversar sobre os problemas entre ela e o namorado. Lucas era essa pessoa. O amigo perfeito.

Ambos se matricularam na mesma universidade, uma das melhores do estado, e um dos privilégios de suas excelentes notas no high school. Lucas estudava geologia, enquanto Nina iria se formar em química. Como Filosofia era uma matéria comum a ambos os cursos, eles faziam as aulas juntos. Para o azar de ambos, ministradas por Emma, alguém que representava um passado que eles se forçavam a esquecer.

O que eles não sabiam, porém, era que Emma pensava exatamente a mesma coisa sobre eles. Talvez por isso ela tivesse se sentido incrivelmente aliviada quando os dois saíram da classe. O restante da aula correu de maneira mais firme e segura do que começara. Sem Lucas e Nina por perto, Emma sentia que conseguia até respirar melhor. Mas porquê?, ela se perguntava. Não fora nenhum deles o causador do acidente no iate, isso a professora sabia. Mas eles lhe lembravam daquele dia. O dia em que ela perdera mais de trinta alunos com os quais convivera diariamente durante três anos. Um dia que jamais sairia de sua memória.

Quando a aula terminou, Emma recolheu suas coisas em cima da mesa e saiu da sala. Aquela era a última aula antes das férias do college, o que a deixava ainda mais aliviada, já que teria tempo de colocar a vida em ordem. Desde que chegara de mudança no campus a sua vida tinha sido tão corrida que ela não conseguira nem mesmo visitar Julio e os filhos. Mas eles estão bem, eu tenho certeza disso. E é só temporário. O Julio vai conseguir aquela vaga, e então nós todos vamos poder voltar a morar juntos.

O que acontecia, era que Emma e o marido estavam passando por sérios problemas financeiros. Logo após a tragédia no Atlântida, quando a mulher já havia se recuperado, o marido lhe contou que fora demitido. O dinheiro do acerto era suficiente para que eles mantivessem as contas da casa pagas por pelo menos seis meses, mas seis meses haviam se passado e Julio não havia conseguido outro emprego. Foi então que Emma recebeu a oferta da Universidade Saint Francis, oferecendo-lhe uma vaga com um salário quatro vezes maior que o que ela recebia como professora do high school. Além disso, ela poderia morar em uma pequena casa dentro do campus sem pagar nada por isso. A mulher aceitou a oferta sem hesitação.

O problema era que o lugar era pequeno demais para a família toda. Emma viera sozinha, três meses antes, enquanto o marido tentava vender a antiga casa em que moravam e se mudar para a cidade onde a mulher estava, onde ele também estava esperando uma vaga de emprego. Era quase certo que Julio conseguiria o cargo, mas enquanto isso não ocorria, restava a separação. Emma não conseguia conter a saudade que sentia dos filhos e do marido.

Quando Emma abriu a porta de casa, o relógio da sala indicava que já passava das seis da tarde. Isso era confirmado pelos pequenos raios de sol que atravessavam a persiana branca que ela colocara de maneira improvisada. Uma barata passou correndo ao seu lado, e a professora tremeu. Bem-vinda, Emma, ela sarcasticamente pensou. Ela então retirou o celular de seu bolso, um incômodo dentro das calças justas, e o colocou em cima de uma pilha de caixas ainda não abertas, ao lado de diversos quadros, com fotos de sua família, pendurados na parede.

O dormitório era pequeno, e tinha somente três cômodos, contando o banheiro. Um deles era o quarto, e o outro ela dividira entre a sala e a cozinha, com uma bancada de cimento separando os dois ambientes. Tudo ali parecia improvisado, com caixas e mais caixas de papelão cheias de coisas ainda guardadas, bem como poucos móveis. A única coisa que dava um tom de pessoalidade ao dormitório eram as fotos espalhadas por todos os cantos.

Só mais um pouquinho. Só mais um pouquinho e nós estaremos juntos de volta, meus amores...

x-x-x-x-x

— Você tem certeza que não precisa de outro travesseiro, meu amor? — Claire perguntou carinhosamente.

James apenas sorriu fracamente, meneando a cabeça de maneira negativa. Até sorrir era doloroso para ele.

— Que horas os enfermeiros vão chegar pra fazer a minha transferência? — Ele perguntou, com a voz entrecortada.

— Já era pra eles terem chego. — A mulher respondeu.

O homem voltou a sorrir, tentando esboçar de maneira fraca, porém genuína, a felicidade contida em seu peito. Ele não precisava, porém. Claire demonstrava felicidade por ambos.

— Eu mal posso acreditar, bebê. Um ano. Um ano em que eu fiquei ao seu lado te vendo dormir. Tão calmo, tão em paz... — Ela começou, sentindo os olhos se encherem de lágrimas. — Mas eu sempre soube que você acordaria. Eu nunca desisti de você.

— Eu sei disso, meu amor. Eu sei disso. — James confirmou, estendendo a mão e tocando a mão da esposa. — Eu também jamais desistiria de você.

Os dois não conseguiram trocar mais palavras, porque subitamente três homens vestidos de azul entraram no quarto.

— James Ziegler? — Um deles perguntou.

— Isso mesmo. — Claire respondeu pelo marido. — Ele vai ser transferido agora?

— Sim senhora. Você pode vir junto conosco na ambulância. — Outro dos enfermeiros respondeu.

Claire meneou a cabeça positivamente, concordando. O que acontecia era que, por conta da melhora em seu estado, James precisava ser transferido para fora da UTI, para que sua vaga ali pudesse ser liberada para outro paciente. Isso significava que ele iria para um quarto comum, até terem certeza de que ele havia melhorado completamente. O problema era que não havia um quarto disponível no hospital em que eles estavam, de modo que James precisava ser enviado para outro, mais longe do centro. A última parada antes de voltarmos pra nossa casa e começarmos a nossa vida juntos, Claire refletiu.

x-x-x-x-x

A primeira coisa que Riley percebeu quando pisou dentro da casa de Andi, foram os quadros espalhados por todos os lados.

— Você voltou a pintar, amiga? — A ruiva perguntou, tocando de leve a moldura de uma das obras.

— Aham. — A outra respondeu.

Riley seguiu caminhando pelo corredor mal iluminado que levava aos outros cômodos da casa de Andi. Pelo cheiro de mofo, era claro que o lugar estava fechado há um bom tempo, o que era explicado pelo fato de que a amiga não morava ali, mas dentro do campus onde estudava. Os pais de Andi por sua vez, já não moravam na casa desde que a garota tinha dezesseis anos, e ela se cuidava sozinha desde então, recebendo apenas o suficiente para pagar as contas mais básicas como a água e a luz. Todos os seus outros gastos eram cobertos com o que ela ganhava no 18 O’Riley. Desde a sua mudança para o college, a casa fora deixada às moscas.

— Amanhã de manhã a gente pode limpar tudo. — A ruiva se ofereceu, sorrindo.

— Claro! — Andi respondeu, empolgada. — Vai ser divertido. Como nos velhos tempos.

— Como nos velhos tempos. — Riley confirmou.

Quando Andi acendeu a luz da cozinha, a ruiva pôde olhar com clareza para o aquário de vidro que segurava em mãos. Dentro dele, Felicia parecia estar dormindo.

— Eu preciso alimentá-la até amanhã... — A ruiva comentou de maneira displicente. — Ela não comeu nada a semana toda.

Andi colocou a mochila que tinha nas costas em cima da mesa e seguiu até a pia para lavar as mãos, comentando:

— Você se esqueceu de alimentá-la?

— Não, não. — Riley negou com um aceno de cabeça. — É que elas comem pouco mesmo. A Felicia ainda é comilona, come quatro vezes por semana se deixar. O normal é de uma a três vezes.

A amiga meneou a cabeça positivamente, sorrindo, sinal de que compreendia.

Riley puxou uma cadeira e sentou-se, aproximando o rosto do vidro. Felicia estava bastante encolhida, e então subitamente um pensamento horrível tomou conta da cabeça da ruiva.

— Oh, não. — Ela murmurou, meneando a cabeça de maneira negativa.

Andi virou-se na direção da amiga, ainda com as mãos molhadas, e percebeu quando Riley tapou a boca.

— O que houve?

— Eu acho que a Felicia morreu... — A ruiva comentou relutantemente.

Riley então esticou a mão e a colocou dentro do aquário. Ela imediatamente surpreendeu-se, porque a tampa não estava mais ali, mas caída ao fundo, quebrada em dois pedaços.

— A tampa. — Ela murmurou, sentindo um nó na garganta. — Ela foi esmagada pela tampa. Como eu pude ser tão irresponsável?

Andi aproximou-se calmamente da amiga e tocou seu ombro. Riley retirou os dois pedaços de vidro com cuidado, mas não percebeu que um deles estava afiado, cortando seu dedo.

— Mas que... Droga! — Ela exclamou.

— Eu vou pegar um pano. — Andi comentou no mesmo instante, se afastando. — Eu sinto muito, amiga.

— Ela já estava velhinha. — Riley comentou de maneira pragmática, olhando para o sangue que escorria da ponta de seu dedo indicador. — Uma pena que tenha morrido por uma irresponsabilidade minha...

As gotas do líquido vermelho na ponta do dedo de Riley caíram lentamente, pousando como gotas de chuva em cima do corpo da aranha morta. A ruiva olhou para o cadáver de Felicia com pesar, o líquido rubro escorrendo de seu corpo peludo. E então, por uma fração de segundos, a ruiva sentiu tudo ao seu redor girando.

Olhou para os lados. O alarme de incêndio quebrado, com os fios desencapados saindo. O fogão com o gás ligado, embora não tivesse qualquer botijão ali. A caixa de veneno de rato em cima da bancada, bem ao lado de uma caixa de cereal do mesmo tamanho. Tudo ali parecia muito agourento. Era quase como... Quase como eu me senti no dia em que o Sketch e a Michaela morreram. O menino com a motocicleta e o cavalo de plástico... Não pode ter sido apenas uma coincidência.

Felicia, esmagada pela tampa de vidro. O coração de Riley parecia querer sair pela boca. Era sufocante.

— Riley! — Andi a chamou, tentando tirá-la de seus devaneios. — Riley!

Mas a ruiva tinha o pensamento longe demais para ouvir os clamores da amiga.

x-x-x-x-x

Já passava da meia-noite quando a ambulância saiu do hospital.

Dentro dela, na parte de trás, iam Claire, James e um enfermeiro. A oriental e o profissional iam sentados em bancos nos cantos, enquanto o homem seguia deitado na maca.

— Nós já estamos chegando, bebê. — A mulher disse, se aproximando do marido e lhe dando um beijo na testa. James estava sedado, mas acordado, e então sorriu de maneira fraca.

Aquela não era a primeira vez que James Ziegler estava deitado em uma maca, dentro de uma ambulância. Na verdade, era provável que aquela ocasião estivesse na casa das dezenas. Até mesmo na presença de Claire aquilo já acontecera.

O que acontecia era que James possuía uma síndrome rara, chamada de Síndrome de Brugada. Pelo que Claire sabia, graças aos relatos do marido e dos médicos, aquela síndrome se caracterizava pelo batimento exacerbadamente acelerado do coração, fazendo com que James desmaiasse sem motivo aparente. Ele então precisava ser levado ao hospital às pressas, já que se seus batimentos não fossem normalizados, a arritmia seria fatal.

A primeira e única vez que aquilo aconteceu na presença de Claire, foi durante a primeira vez em que os dois fizeram sexo. A oriental lembrava-se claramente de todos os detalhes daquele dia, especialmente porque foi o mais próximo que James chegara da morte. De início Claire não compreendera o que havia acontecido, demorando vários minutos até chamar ajuda. Segundo o médico que atendeu o homem naquele dia, James sobreviveu por um milagre. Desse dia em diante, uma parte de Claire sempre se culpou por ter sido incapaz de protegê-lo. Mas não agora. Agora eu posso e vou te proteger, meu amor.

Do lado de fora da ambulância, Claire conseguia perceber que era noite. Ela via as luzes da cidade da maneira indistinta, como borrões iluminados através do vidro grosso. Quando a oriental sentiu que a ambulância subia uma inclinação, suspirou. A maca escorregou alguns centímetros, mas então ficou segura por tiras de borracha que a prendiam à parede. James agora dormia tranquilamente.

— Não tem perigo de a maca escorregar não, certo? — Ela perguntou, segurando firmemente na mão de James.

— Não senhora. Ela é bastante segura.

Claire então esboçou um meio sorriso que nunca pôde ser completado.

A primeira coisa que ela ouviu foi o barulho do freio, e então foi jogada com força para trás e para frente, batendo na porta da ambulância e abrindo-a por acidente. O impacto também foi suficiente para arrebentar uma das tiras de borracha, deixando a maca batendo com delicadeza em um dos cantos.

— Que porra! — O enfermeiro exclamou. Mas o motorista parecia não ter percebido a situação.

A ambulância arrancou no mesmo instante, fazendo o enfermeiro escorregar e cair para fora do veículo. Claire caiu junto, em cima dele. A segunda tira da maca então se arrebentou, e a estrutura de metal caiu para fora do veículo, passando ao lado de Claire e o homem de azul e descendo ladeira à baixo.

A oriental arfou e não conseguiu gritar.

Claire correu o mais rápido que pôde, tentando alcançar a maca. James acordara, mas ainda estava dopado demais para ter consciência do que acontecia. A mulher sentia o vento da noite batendo em seu rosto, fazendo seu cabelo esvoaçarem, mas tudo ao seu redor era feito de barulho e luzes. Ela sabia que havia transeuntes na rua, bem como outros carros, buzinando e freando bruscamente para não atropelá-la, mas não conseguia prestar atenção em mais nada.

— Parem! Parem! — O enfermeiro gritava, tentando correr atrás de Claire e James.

Os pés de Claire doíam, mas ela ainda conseguia ver a maca há vários metros de si, chegando ao fim da ladeira, onde havia um cruzamento. Os carros freavam com fúria, evitando acertar James.

Quando a maca parou no cruzamento, Claire inspirou uma grande quantidade de ar, sentindo os pulmões arderem.

Quando você acordar, o novo dia vai lhe trazer um brilhante mundo novo…

E então algo esperado aconteceu.

Dois carros vindos em alta velocidade perceberam a maca no cruzamento no mesmo instante. O problema foi que um deles tentou desviar para a outra pista, onde o outro veículo não conseguiu frear. Os dois colidiram exatamente no centro, onde a maca de James estava, prensando-o no meio. O impacto retorceu tanto o metal da estrutura, quando o corpo de James. Claire conseguiu ver somente uma massa vermelha explodir em pedaços, que voaram para os quatro cantos que cercavam o cruzamento. A mulher correu o mais rápido que pôde, e só parou quando conseguiu ver o líquido vermelho escorrendo debaixo de suas sapatilhas amarelas. Ela tapou a boca, tremendo de maneira espasmódica, e olhou para o que o corpo do marido se tornara. O vômito foi inevitável.

A cabeça de James era a única parte de seu corpo que ainda era distinguível, pendendo por pequenos nervos na frente de seu tronco em pedaços. Ele estava com os olhos fechados, sereno. Uma quantidade ínfima de sangue escorria de sua boca, passando por sua barba clara e pingando na bata verde do hospital.

A última coisa que Claire viu foram as luzes, e então apagou.

x-x-x-x-x

Emma ligou o fogão e deixou a água fervendo na chaleira. Por alguns segundos ela achou ter visto um vulto passar atrás de si, sendo refletido no inox brilhante, mas quando nada aconteceu, ela descartou a ideia. Eu estou ficando paranoica.

A mulher ficou de pé diante do notebook, em cima da bancada de cimento, os calcanhares erguidos, e verificou seus e-mails. Não havia nada de importante ali, exceto diversas mensagens a respeito de cobranças de cartões de crédito. A professora suspirou.

Atrás dela, um escorpião corria pelo chão, saído de trás de uma das inúmeras caixas de papelão. O bicho passou por detrás da professora, assustadoramente perto da sola de seu pé, e então ergueu seu ferrão. Emma sentiu uma sensação estranha, como se alguém fizesse cócegas em seus pés, e então pressionou a sola contra o chão. Ela sentiu somente um barulho característico, como se tivesse pisado em uma casca de ovo, e então sentiu uma dor lancinante.

Emma caiu com a bunda no chão, sentindo-se zonza. A mulher imediatamente olhou para o seu pé, e o que viu a aterrorizou. Havia um ferrão de escorpião cravado nele, bem como metade do bicho. A outra metade estava no chão, esmagada onde seus pés antes estiveram.

— Ai, ai... — A professora resmungou, sentindo um desespero tomando conta de si.

Eu preciso pedir ajuda, Emma conseguiu raciocinar no mesmo instante. Apesar disso, ela não conseguia ficar de pé, já que a sola do seu pé direito doía de maneira infernal, como se tivesse sido colocado em cima de uma placa de ferro fervendo. A mulher então tentou se arrastar em direção à bancada, para alcançar o notebook, mas ele estava alto demais. Emma então tentou se apoiar no cimento para subir de maneira cambaleante, mas também não obteve sucesso: caiu no chão uma segunda vez, sentindo o restante do escorpião ser esmagado por seus quadris.

O celular, a mulher racionalizou. Ela então começou a se arrastar pelo chão da cozinha em direção ao quarto, ouvindo o barulho do apito da chaleira de água quente ao fundo. Aquele acidente era tão estúpido que Emma mal conseguia refletir sobre o que estava acontecendo. Tudo o que ela sabia era que precisava alcançar o telefone antes que o veneno do bicho fosse suficiente para fazê-la desmaiar. Se isso acontecesse, Emma estava morta.

A professora arrastou-se até o quarto e então, com um impulso de braço, sentou-se na cama. O aparelho de celular, porém, não estava ali. Oh, não. Eu deixei em cima das caixas.

Emma sentia a dor tomando conta de toda a sua perna, subindo como uma praga. O pé já não doía mais, e o que existia agora era somente um formigamento, uma dormência. A dor agora subia para sua panturrilha e coxa. Eu só preciso pedir ajuda. Eu ligo para alguém e então não importa se eu desmaiar. Eles vão arrombar a porta e me salvar, eu tenho certeza.

Quando Emma chegou diante da pilha de caixas em que o celular estava no topo, suspirou. Ela jamais alcançaria o topo delas, mas poderia derrubá-las de modo que ele caísse. A mulher então suspirou uma segunda vez. Afastou-se alguns centímetros e puxou a caixa debaixo, esperando que todas as outras caíssem. Seu plano funcionou em partes.

As caixas caíram como num efeito dominó, espalhando seu conteúdo por toda a sala, e o celular foi jogado para longe, batendo na parede e escorregando até perto da cozinha. O que Emma não contava, porém, era com os quadros.

A queda de uma das caixas foi suficiente para fazer com que eles começassem a cair, um por um. O primeiro deles caiu diretamente na cabeça de Emma, e ela teve tempo de cobri-la com os braços, mas então os outros vieram. O segundo deles fez um corte no braço da mulher, fazendo-a instintivamente abaixá-lo e propiciando que o terceiro acertasse em cheio o seu crânio. O impacto abriu um pequeno corte no topo da cabeça da professora, e foi suficiente para fazê-la desmaiar.

Caída no chão, o sangue de Emma escorria pelo piso. De dentro de uma das caixas, dois pequenos escorpiões filhotes saíram, caminhando com rapidez e incerteza. O primeiro deles desceu até os pés da professora, enquanto o segundo subiu para perto de seu rosto. O que estava embaixo ergueu seu ferrão e fincou-o com força na sala do outro pé da professora, se debatendo sem sucesso para se soltar. Emma não sentiu nada.

O segundo caminhou por cima da poça de sangue que provinha da cabeça da mulher, seus passos no chão deixando leves marcas rubras. Ele subiu pelo rosto da professora, curioso, circundando suas maçãs do rosto. O calor ainda existia naquele corpo.

O ferrão foi erguido e abaixado diretamente no olho esquerdo de Emma. A mulher levantou-se de imediato, sentindo a dor mais forte de sua vida, e então arfou, soltando seu último suspiro. Com apenas um olho, ela conseguiu observar uma última vez a visão borrada que era o quadro de sua família na parede. Só mais um pouquinho. Só mais um pouquinho e nós estaremos juntos de volta, ela pensou mais uma vez.

E voltou a cair, morta.

x-x-x-x-x

Riley levantou-se da cama num impulso, sentindo-se sem ar. Ao seu lado na cama, Andi acordou com o movimento brusco da amiga.

— Tá tudo bem, amiga?

A ruiva meneou a cabeça negativamente, tocando o olho esquerdo com a ponta dos dedos. Por algum motivo, ele coçava bastante. Ela piscou duas vezes, e então uma imagem lhe veio à cabeça.

— Alguma vez você pensa na professora Emma? — Ela perguntou à queima roupa.

— Quem?

— Emma, a nossa antiga professora de filosofia. — Riley repetiu, incapaz de observar a expressão facial de Andi no escuro.

— Não. — A outra respondeu. — A última vez que eu pensei nela foi há uns três meses, quando o Lucas me disse que ela da aula pra ele na faculdade. Mas por que você tá me perguntando isso, Riley?

Por algum motivo, saber daquela informação fez uma onda de eletricidade percorrer todo o corpo de Riley.

— Você acha que o Lucas está acordado há essa hora? — A ruiva indagou, sem responder a pergunta da amiga.

— Com certeza. — Andi respondeu. — Mas o que diabos tá acontecendo? Por que você quer falar com o Lucas? E por que esse súbito interesse na professora Emma?

Riley não tinha resposta para nenhuma daquelas perguntas. Nenhuma resposta concreta, na verdade, mas decidiu responder a amiga mesmo assim:

— Porque eu acho que ela está morta.

x-x-x-x-x

Já eram duas da manhã quando as viaturas estacionaram em frente ao dormitório de Emma Lynn Brown, próximo do ginásio de esportes. Lucas estava debaixo da quadra de futebol, jogando em seu videogame portátil, quando ouviu os barulhos das sirenes. Ele gostava de passar o tempo livre ali, especialmente porque era bastante quieto e calmo, diferente de seu dormitório, o qual dividia com um intercambista mexicano que gostava de ficar falando sem parar.

De súbito o rapaz alarmou-se, pensando se tratar de um assaltante. Se esse fosse o caso, ele estava frito, já que o lugar onde estava seria um esconderijo perfeito se o bandido estivesse fugindo da polícia. Lucas levantou-se num pulo e saiu debaixo da arquibancada, dando de cara com as estrelas bem altas no céu. Fazia calor.

Lucas pegou seu celular e abriu o WhatsApp, procurando o contato de Nina. Não havia nenhuma mensagem dela, mas havia uma mensagem de Junior enviada quinze minutos antes, dizendo:

Oi, é a Nina. Eu estou no dormitório do Junior, e a bateria do meu celular acabou. Tudo certo pra carona de amanhã?

Nina se referia ao fato de que, no dia seguinte, Lucas daria uma carona para ela e Junior até a cidade deles, há alguns quilômetros dali, já que os três passariam as férias do college com a família.

Ele respondeu:

Tudo sim, pego vocês ao meio-dia na frente do dormitório das Delta Lambda Zeta. Por acaso vocês sabem por que tá cheio de viaturas perto do ginásio de esportes?

Quase no mesmo instante que ele enviou a mensagem, viu que “Junior” havia ficado online e digitava:

Vem correndo aqui na frente do dormitório da professora Emma.

Lucas guardou o celular no bolso no mesmo segundo e se pôs a correr em direção à casa da professora, há duas quadras do ginásio. Antes mesmo de chegar lá, ele percebeu a aglomeração de pessoas. Havia duas viaturas e uma ambulância estacionadas em frente ao dormitório de Emma, e dezenas de alunos ao redor, apenas observando a cena com curiosidade. Lucas notou Nina encostada em uma das árvores mais distantes da casa, mas de onde ainda conseguia ter uma boa visão do que acontecia ali.

— Hey! Cadê o Junior? — Ele disse, se aproximando da garota e cumprimentando-a com um beijo no rosto.

Nina meneou a cabeça negativamente, respondendo:

— Ele ficou no dormitório fazendo uma chamada por Skype com os pais. O Junior não é muito o tipo que gosta de fofocas.

Lucas meneou a cabeça positivamente, compreendendo a situação. Por alguns segundos ele olhou de maneira despretensiosa para Nina, e percebeu os olhos castanhos claros dela brilhando com a luz da lua. Ele lembrava-se vagamente de ter visto uma cena quase idêntica àquela, com o rosto da garota iluminado pela luz natural da noite. Foi no dia do acidente no iate. A Nina estava linda como rainha Elsa... Mas então se repreendeu por ter tais pensamentos. Ele e Nina eram amigos, nada mais do que isso. Além disso, ela tinha um namorado.

— Entendi, entendi. — Ele concordou de maneira desinteressada. — Você sabe o que tá acontecendo?

— Uns garotos que chegaram aqui antes das viaturas disseram que a professora Emma está... — E Nina suspirou antes de dizer o restante da frase. Suas mãos tremiam de maneira quase imperceptível, mas Lucas notou mesmo assim. — Morta.

Lucas não conseguiu conter a expressão de surpresa em seu rosto. Mas... Como pode? Hoje mais cedo nós tivemos aula com ela...

— Parece que foi um acidente. — Nina continuou, aparentando estar um pouco nervosa. — Escorpiões.

O rapaz não soube o que dizer diante daquilo. Encostou-se à árvore, próximo de Nina, e escorregou suas costas pelo caule até cair sentado no chão. Aquilo era horrível demais para ser verdade. Era quase tão horrível quanto... Não, Lucas. A Riley estava nervosa, ela tinha acabado de perder o Sketch. Além disso, já faz um ano, certo? Se fosse verdade, teria acontecido antes.

A conversa ocorrera logo após a morte de Sketch, quando Riley ainda estava extremamente abalada pelo que presenciara. Aquela fora uma das últimas conversas que o rapaz teve com a ruiva antes deles se separarem definitivamente, com a mudança dele para um college diferente do dela. Ele acreditava que a sua reação fosse um dos motivos do afastamento dos dois, mas julgava não ter tido escolha. O que Riley falava era... Absurdo. Até aquele momento.

Riley contara a ele a respeito de uma garota chamada Anna que, assim como a ruiva, havia tido uma visão e salvara os colegas antes de um desastre ocorrer. Essa Anna alegava que nos dias e semanas que se seguiram, seus amigos começaram a morrer um a um porque, segundo ela, eles haviam desafiado os desígnios da morte, estendido o seu tempo na Terra ou qualquer coisa assim. Para Riley, a morte de Sketch (e posteriormente a notícia da morte de Michaela) era o que faltava para a teoria se concretizar como verdadeira. Mas então, nada mais aconteceu. Até agora.

Lucas pensava exatamente nisso quando sentiu o celular vibrar em seu bolso. Ele retirou o aparelho e viu que na tela havia o número de Riley.

— Alô? Riley?

Oi. Eu não posso te explicar agora, mas eu preciso saber: você sabe onde a professora Emma está nesse momento? Você pode entrar em contato com ela, mandar a segurança do campus no dormitório dela ou algo assim?

Como... Como... Riley...?

— Ela acabou de morrer, Riley. Picada de escorpião, aparentemente. Eu estou em frente ao dormitório dela nesse momento, as viaturas estão por todos os lados.

Do outro lado da linha, Lucas ouviu a amiga soltar um gritinho abafado.

— Nós precisamos conversar, Riley.

Concordo. — Ela respondeu depois de alguns segundos. — Você vai passar as férias na cidade?

— Vou sim. A Nina, o Junior e eu vamos chegar aí amanhã à tarde.

Do outro lado da linha, o silêncio voltou a reinar por alguns segundos.

Você conseguiria convencê-los a vir junto? O que eu tenho pra falar precisa de todos nós, sem exceção. Eu, você, a Andi, a Nina, o Junior e o Paris.

Lucas só concordou com uma fala monossilábica qualquer, e então Riley desligou. O rapaz ficou segurando o aparelho no ouvido por vários segundos, sem saber direito o que fazer. Por algum motivo, mais uma vez Riley sabia. Mais uma vez ela se antecipara a um acontecimento, mas dessa vez havia sido tarde demais.

Nina olhava para ele com uma expressão de confusão em seu rosto. Lucas suspirou. A única coisa que conseguiu dizer foi:

— O que você acha de uma pequena reuniãozinha?


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Notas finais do capítulo

Prometo que o próximo capítulo não demorará, galere :B
E não se preocupem, eu estou consciente que estou indo "rápido demais" com as mortes, mas faz parte da narrativa! Tenho bastante coisas boas planejadas :D