Ao Deus que Odeio escrita por AKAdragon


Capítulo 1
Caprichoso Deus


Notas iniciais do capítulo

"Acredite em si mesmo. Crie seu próprio caminho.
Mesmo que seja o errado, há apenas um futuro.
Mesmo aquilo que não de pode ver... Proteja aquilo que possui valor."
[Myself]



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Há sete anos,

Eu perdi a pessoa que mais amava...

Saria cantarolava enquanto voltava pra casa, via minha irmã com um cesto de pães em mãos. Estava alegre como sempre, e ajudava mamãe nas tarefas, ao contrário de mim, que não conseguia nem ao menos andar pela casa com minhas próprias forças, a maior parte do tempo estava emburrada ou triste ao vê-la tendo tanta atenção. Mamãe estava ocupada fazendo o almoço, e eu estava no quarto tecendo uma tapeçaria com a lã das ovelhas que criamos.

-Filha querida, traga Meira pra cá - A voz da mamãe era macia e calma, e vinha da cozinha, junto com o doce cheiro da sopa que mais gostava.

-Sim, mamãe.

Me sentia envergonhada. Precisava de ajuda para tudo! Porque Burkhan faria algo assim com uma criança como eu?

Minha irmã me carregou até a cozinha, onde o almoço nos esperava. Havia a sopa que mamãe fizera e os pães que Saria trouxe. Ninguém dissera nada durante o almoço, mas a expressão de minha mãe a denunciava: Alguma coisa aconteceu ou estava para acontecer… Era sempre assim com ela.

- Mãe… - Hesitei esperando uma resposta, até que ela parou de comer e se virou para mim - Estou tecendo uma tapeçaria para você - Sorri tentando não parecer tão tola quanto achava.

- Que bom, filha… - Deu um sorriso forçado.

A noite caiu e mamãe estava chorando, era a primeira vez que a via assim desde a morte de papai. Era triste, eu não queria vê-la dessa forma, mas não pude fazer nada. Tudo que fiz foi ver ela ao lado de minha irmã implorando àquele homem velho careca, até que a garota ao lado dele percebeu que eu estava atrás do fusumá* espiando. Ela sussurrou algo ao velho.

- Minha cara criança – Disse ele a mim – Venha, não seja tímida.

Mamãe parecia surpresa por eu estar lá. Não era pra menos, nesta hora eu devia estar dormindo. Esperava um olhar bravo dela, mas recebi um olhar assustado. Ela abriu a boca para dizer algo, mas o velho a interrompeu.

- Ora ora, são gêmeas! – Não parecia estar realmente surpreso - Diga Sandy, porque escondeu essa criança?

- Por favor, deixe Meira co–

- Basta! – Gritou a curandeira da vila – Cressent, já não basta ela ter perdido o marido, ainda por cima que levar as duas crianças que é única família que lhe restou?

Mamãe franziu os lábios.

A curandeira a tinha em seus braços, acariciando seus cabelos, sussurrando palavras para que mamãe se acalmasse.

- O... O que está acontecendo, mãe?

Ela não me respondeu. Minha irmã permaneceu calada todo o tempo, evitava até mesmo contato visual.

- Apenas não se esqueça, Sandy - Ele olhava no fundo dos olhos lacrimejantes de mamãe - Se houver caos, a culpa será sua.

O homem se retirou, e a criança o acompanhou olhando-me com um olhar sádico, como se estivesse gostando do que estava acontecendo.

Desde a visita do homem e da criança, por ele acompanhada, minha mãe fazia todas as vontades de Saria, como no nosso aniversário, mas desta vez toda a atenção era para ela. Mesmo eu sendo a irmã doente. Todos os dias havia as comidas preferidas dela na mesa, ela era a única com quem mamãe brincava, e a noite lia as suas histórias preferidas... Eu queria pelo menos saber o porquê dela estar tendo tanta atenção. Tinha algo a ver com o velho que veio aqui outra noite?

Sempre foi Saria que recebera as atenções...

Porque sempre me tratavam com indiferença?

Só porque ela tinha uma saúde melhor?

Eu não pedi para nascer assim!

Mamãe dormiu em um futon* separado, entre mim e minha irmã. E como nos últimos dias: eu não existia naquela casa. Fiquei acordada as observando dormir, o som dos grilos e as corujas me agradavam, até mesmo os baixos grunhidos dos dragões da montanha ao norte me fazia esquecer o que aconteceu. Mesmo dormindo mamãe parecia aflita, Saria estava de costas pra mim e estava escuro para perceber algo, mas tinha certeza que ouvi algo como gemidos.

O amanhecer parecia uma tortura, aqueles raios de luz atravessando o washi* me cegavam. Quase gritei para que fechassem até que quando pude ver claramente, o fufumá não estava lá, alguém havia o aberto completamente, a luz do sol me incomodava. Mamãe e Saria não estavam no quarto.

Onde elas se meteram?

Talvez finalmente se cansaram de mim…

- Por favor! – ouvi alguém dizer – Repense sobre isso! Ela só tem sete anos...

- Senhora Sandy – Disse uma voz arrogante, e um frio percorreu meu corpo, reconhecia essa voz - Já conversamos sobre isso, essa é a vontade de Deus Burkhan, sabe muito bem das tradições: uma criança de sete anos de idade é oferecida a cada sete anos.

Era ele.

Cressent estava lá.

Queria levantar para ver o que estava acontecendo, mas meu corpo não permitia. Eu era... Não. Eu sou muito frágil, e por isso não tenho permissão para sair. Devia ter tomado meu remédio antes de dormir, mas minha mãe se esquecera dele. Tudo que soube foi o que ouvi.

- É a tradição – Começou o velho – Devemos sempre oferecer alguém puro ao nosso Deus, e isso se aplica as crianças.

Cressent usava sempre Burkhan a seu favor. Isso é a vontade de Deus, aquilo é a vontade de Deus… Começava a duvidar de quem realmente eram essas “vontades”, talvez esse Deus nem ao menos exista.

- M-mas - Gaguejou, a voz de mamãe estava tremula - E… E se não mandarmos esse ano? Deus Bukhan já deve estar satisfeito com todas as almas puras que mandamos todos esse tempo...

- Esta querendo ir contra?

- N-não foi o qu-

- Você é mal, velhote - Alguém a interrompeu. Uma foz pouco mais alta que um sussurro. Aquela criança também estava lá - Não vê que essa mulher prefere levar a vila ao caos do que entregar o filho?

Eles estava tendo novamente uma conversa estranha sobre levar a vila ao caos. Como poderia estar nossa família envolvida nisso tudo? Uma simples escolha de mamãe poderia destruir a vila? Adultos são sempre tão confusos!

Me esforçava para poder me aproximar e espiar o que ocorria - mal habito. Minhas pernas doíam, mas me aproximava aos poucos. Uma sombra apareceu em minha frente, abriu o fusumá com força e me olhava séria.

- Não devia fazer isso, irmã - Saria carregava uma bandeja com comida - Mamãe disse que você não poderá sair hoje,.

- Por… porque? - Tive medo de perguntar.

Ela entrava no quarto, percebi que queria o máximo esconder o que acontecia na sala. Arrumou o futon desarrumado onde eu dormia e me carregou até ele. Entregou-me água e o remédio que a curandeira me mandava tomar.

- Não se preocupe - Ela pegava o pedaço de pão para mim - Mamãe e o Chefe da Vila estão conversando, lembra-se dele, certo?

Não respondi. Apenas fitei-a por um longo tempo.

- Acho que não - Ela me dava o pão na boca.

Sempre. Sempre. Sempre

Eu não sou uma criança! Porque me trata assim?!

Sente pena? Piedade?

Porque é a única a ser tratada normalmente,

atenciosamente,

carinhosamente…

Porque?

PORQUE?

Bati em sua mão e o pão voou para o outro lado do quarto. Saria me olhava assusta.

- O que esta acontecendo? - Tentei parece séria.

Ela sorriu e buscou o pão.

Antes de Saria se levantar percebi. Em sua perna esquerda havia uma marca vermelha, parecia um machucado. Fizera cuidando das ovelhas? Ou então… “Não isso seria impossível”. Saria era sempre a queridinha da família, vovó e vovô também gostava mais dela, foi um grande orgulho para eles quando foi a primeira da família a aprender e ler. Quanto a mim, que não podia sair para a escola, ainda não sei ler ou escrever meu próprio nome, sempre achei que era mágica mamãe tornar aquelas palavrinhas escritas nos livros em incríveis histórias de dragões e elfos, mas agora Saria compartilhava dessa “magia”.

O que seria quelas marcas? Mamãe nunca bateria em Saria, e também não parecia com as machucados que fazia enquanto brincava. Sempre tão sorridente. “Droga! Porque nunca percebi?”, minha irmã sempre foi uma medrosa e chorona, quando mais jovem eu que sempre a ajudava, quando roubaram seu chapéu-de-palha, quando a machucaram…

Não muito longe, já com o pão que joguei em mãos. Ela se virou para mim e disse calmamente:

- Meira, você estragou seu desejum…

- Porque esta assim? Porque estão todos estranhos?!

Meu olhar passou se séria para assustada, mas não como os olhos de Saria. Eu tinha medo de outra coisa.

Nunca conseguiria as respostas que queria. Ela me deixou. “Sempre me deixam. Não pisei fora daquele quarto durante a manhã toda, mamãe me chamou após o Chefe da Vila ter ido embora, mas não atendi. Observava minha irmã passando pelos corredores da casa, ela usava branco e estava sempre com a flor azul que mamãe deu para ela - Campanula. Minha preferida - Saria parecia um fantasma com uma expressão que nunca vira antes desenhada em seu rosto.

Porque ela não demonstrava reação?

Enquanto mamãe estava em lágrimas...

Enquanto eu era apenas um estorvo...

Enquanto todos da vila vinham apenas para vê-la…

O sol, por trás das nuvens brancas, estava no topo do céu, como se nos olhasse de cima. A tarde mamãe me pediu para que eu ficasse no quarto e não saísse de maneira alguma. Disse-me que Saria iria passar a viver com nosso Tio Jaskey, e nunca mais poderíamos nos ver novamente.

Ela mentia.

Sabia disso, nunca me olhava nos olhos quando o fazia.

- Não tenha medo, criança – Disse a nossa avó sentada no kotatsu* ao meu lado. – Daqui a poucas horas você irá se encontrar com o seu destino... – Sorria para Saria tentando anima-la.

Tão injusto.

Fui levada pela raiva. Peguei o zabuton* vago ao meu lado e joguei em direção a ela. “Eu te odeio!”, não consegui gritar. Meu coração doía, ela não demonstrava reação com tudo que estava acontecendo ao seu redor. Queria que ela tivesse gritado comigo… Tudo que fez foi se virar pra mim e sorrir.

Porque?

Não era ela a irmã chorona?

Após isso não a vi mais. Vovó ficou brava e me trancou no quarto. A lua estava no céu, assim como o sol da tarde, nos olhando de cima. “Será que os Deuses nos observam da mesma forma?”. Eu fiquei completamente só, olhar para a lua daquele jeito me fazia sentir inferior. “Quem eles pensão que são? Sim, Deuses” Aquela casa de madeira não dava sinal de vida. Ela era agora: escura e fria.

Queria desabar...

Não consegui me conter.

A noite estava tão quieta que podia ouvir até mesmo o menor dos barulhos. Ruim pra mim. Até as corujas ouviam minhas lágrimas.

- “Porque está assim?” – Dizia aquele que eu não conseguia ver naquela escuridão. Parecia chegar cada vez mais perto. – “Quer ver sua irmã?”.

Vi uma silhueta por trás do Shoji*.

Sequei rapidamente minhas lágrimas.

-“Você é a criança que duvida de sua Majestade Imperial” - Era uma voz infantil, mas me dava arrepio - “Gostei de você…” - Ela riu.

Um fantasma? Impossível.

Mas me soava familiar. Sempre várias crianças vinham atormentar nossas ovelhas. Não sabia como distingui-las.

Fugi de casa, conforme o que a voz disse, minhas dores sumiram. Estava bem, do jeito que sempre quis estar. Corri para a montanha. “Vou lhe dar uma chance”, a voz da criança martelava em minha cabeça. Corria entre as casas de madeira do povo da vila. “Você tem sorte por ter uma irmã como ela...”. Chovia muito, e a terra estava lamacenta, meus longos cabelos negros grudavam em meu rosto como minhas roupas em meu corpo. “Uma irmã que daria sua vida para salvar uma criança como você”. Chegava cada vez mais perto da montanha, eu estava completamente suja, mas isso não importava agora. “...Tão frágil” Já podia ver a trilha deixada pelo povo que passara por lá. “A tristeza de uma pode não ser dividida, mas pode ser compreendida…”. Ainda ouvia seu riso, se divertindo com meu estado.

A lua estava coberta por uma nuvem, todos da vila estavam com tochas seguindo em uma fila até o pé da montanha. Saria seguia em frente de todos sendo guiada por Cressent. Um risco no céu, outro risco, e outro, em pouco tempo havia vários riscos e por eles seguidos, os riscos amarelados que desciam como se estivessem sendo convidados a terra: Uma forte tempestade começou, ela deixava minha visão cada vez mais opaca, os ventos pareciam querer afastar a todos de perto da montanha, vagamente pude ver, a tempestade desviava de Saria. “Venha, minha jovem dama.” – ouvi alguém dizer vagamente. Era uma voz parecida com a da criança que ouvi no quarto, de certa forma diferente, essa voz parecia calma e acolhedora mas ao mesmo tempo, sombria. Olhei de todos os lados mas ninguém a chamava. “Venha, você que aguarda o destino” - Novamente. A voz parecia vir da própria montanha. Seria Burkhan? Ele mesmo providênciaria nossa separação. Saria parou e se virou, longe de todos ela me viu, e eu vi suas lágrimas dançando em um sorriso. Novamente a voz a chamou, desta vez, pelo seu nome. “Saria, encontre-se com Levi, meu filho”, minha irmã já não estava mais em si, seu corpo começava a se mover sozinho, e em pequenos e lentos passos ela entrava na floresta. “Adeus” - Sussurrei desejando que minha voz chegasse a ela da mesma forma que aquela voz acolhedora a alcançou. Todos os outros nem mais pareciam estar lá. Sabia que eu não devia estar lá, mas não pude evitar tudo que estava acontecendo me incomodava.

♠♦♠♦♠

Ela me chamou diversas vezes, mas não conseguia levantar. O sol já estava subindo alto no céu, e eu estava abaixo da mesa. O som do furin* me irritava, mas o calor me confortava espalhando por todo meu corpo. Noite passada ajudara minha mãe com as ovelhas e de tão cansada apenas me deitei na sala e inconscientemente eu acabei rolando para baixo da mesa de madeira. Adorava aquele lugar, porque em noites de tempestades, aquele era meu único amigo. Já se passara alguns anos desde que Saria foi “morar” com o Tio Jaskey, mas fazíamos o possível para esquecer aquilo, mamãe começou a ter depressão por perder a filha preferida e quase se suicidou – agora tudo aquilo era passado...

- Vamos, Meira, querida – Chamou-me novamente – Levante e venha logo!

- Sim... Mãe – Murmurei.

- Rápido, Senhor Cressent disse que hoje haveria outra tempestade... – Insistiu.

Congelei. “Tempestade” era a palavra que mais detestava ouvir. Apesar de ser verão, este ano a tempestade estava mais frequente. Sempre me lembrava o que aconteceu naquela noite… Minha irmã sendo “possuída” por algo que não se sabia o que, entrando na montanha e algo a chamando, possivelmente agora ela estaria...

Levantei-me com dificuldades. Agora já não por conta de minha saúde, mas sim por minha preguiça e cansaço. As ovelhas estavam agitadas, e o trabalho foi longo. Nem mesmo era tarde e começou a chover, e dessa vez era a chuva mais forte que as outras. A casa ameaçava cair. Um forte estrondo de um raio e BAM!

Tudo de repente se tornou escuro, não via nada, mas sentia e cheirava. Tinham um cheiro estranho de queimado, e meu corpo doía mais do que nunca. “Justo agora que minha saúde estava melhor!”Não pude evitar gritar, apenas em minha mente já que não conseguia pronunciar nada, quando recobrei a visão... Tudo estavam em pedaços. A casa que uma vez estava lá agora era apenas madeira quebrada em meio a destroços. Minha visão ainda estava turva, mas pude ver o povo, assustado, correndo para socorrer-nos. Várias pessoas ajudavam, mas a madeira encima de minha mãe era - aparentemente - pesada demais. Horas depois conseguiram me tirar: estava inconsciente.

Aquilo era uma punição? – Pensava enquanto as pessoas ao meu redor estavam murmurando. Todos estavam preocupados, não comigo – certeza -, mas sim se Burkhan estava bravo. A curandeira os mandava irem embora várias vezes, mas sempre voltavam. Até que um homem de idade mais avançada, careca e usando roupas pretas chegou, junto a ele havia uma criança de longos cabelos roxo-azulados que usavam vestes diferentes da de todas as outras garotas que já vira. Todos se calaram quando ambos chegaram ao quarto onde eu estava. Pediu para que a curandeira saísse, e assim o fez. O senhor aproximou-se e perguntou.

- Como você, criança, sobreviveu?

Não conseguia dizer. A criança de cabelos roxos apenas me encarava, examinando-me de cima a baixo.

- Porque você e não Sandy? – Ele estava bravo.

- Talvez Burkhan esteja bravo conosco... – Disse a criança sem demonstrar nenhuma reação - Ele queria que nós entregássemos ambas as crianças.

Lembrei-me de quem eram. O mesmo homem que fizera minha mãe chorar, o mesmo que tirara minha única irmã: Cressent, o chefe da vila; e a jovem era Miranda, a criança que sempre andava junto a ele, mas depois de todos esses anos ela não havia mudado nada – sempre com sua aparência de quatorze anos.

- “Deus” - Corrigiu o velho - Miranda, trate-o como a divindade que ele é!

Ela se recusava, como se intitula-lo de “Deus” fosse um erro.

-Velhote, não me corrija - Ela disse com uma voz fria e um rosto sério - Sei mais sobre esse “Deus” do que você sabe sobre si mesmo.

Tentava dormir, mas a noite foi simplesmente horrível. Sentia os olhares das pessoas passando pelo Washi. Não era aquela atenção que desejava, mas sim... Carinho. E aquilo era completamente o oposto. Tinha certeza que eles me olhavam com medo e desprezo.

Cressent e Miranda estavam lá, e discutiam. A garota sempre foi muito teimosa, sempre se recusava a obedecer ao Chefe da Vila, e Cressent sempre fora um mandão rabugento. Não sei como sempre ficavam juntos.

- Porque não disse que devíamos entregar ambas as crianças há quatro anos?

- Você não perguntou.

- Então devo perguntar sempre se os Deuses mandam uma mensagem a você?

Eles sussurravam, e via sua silhueta por trás do Fusumá, Miranda de um lado, deitada no tatami* comendo algo e Creseent de outro sentado em seiza* perto da porta. Ele estava disposto a ficar perto, como se soubesse que eu iria fugir.

- “Aru” – Desta vez quem corrigiu foi ela – Os Aru que mandam as mensagens de Seltece*, não os imperadores.

- Tsc – Reclamou – Você é o Anjo mais irresponsável que já vi, nos pergaminhos e livros vocês parecem mais confiáveis e angelicais...

- Nunca disse que era um anjo…

“Anjo”? Miranda? Impossível. Mamãe lia de vez em quando histórias sobre eles, e certamente não fariam algo como o que ela fez...

Finalmente cai no sono...

Estava frio – Era tudo que sentia quando a água lambia minhas pernas…

Água?

Levantei-me rapidamente. Olhei para todos os lados, e nada. Não estava mais na vila, não estava mais naquela casa. Não estava em lugar algum... Tudo que percebi era que estava em um lago, ao redor tinham várias e várias árvores enormes. Estava perdida… Eles me abandonaram, aqueles que um dia chamei de “família” me deixaram a mercê do destino. Cressent finalmente decidiu arrumar o “erro” que cometeu. Acho que quem realmente dava as ordens era aquela criança. Não me parecia ter passado muito tempo, pois ainda era noite; ou poderia já ter se passado um dia. “Não importa, quando sair daqui, mato aquela pirralha”. Andei em passos lerdos a qual destino fosse apenas queria sair de lá.

Durante toda a noite andei e andei… Meus pés estavam sangrando quando finalmente decidi parar. Dormi lá mesmo onde cai.

Acordei com a luz que transpassava as folhas das arvores sobre mim. O dia foi tão longo quanto a noite anterior, não vira nenhum animal que minha mãe sempre mencionava, como os Dragões Roxos na Montanha do Norte, mas uma coisa era certa: Lá não havia nenhum sinal de vida. Por todos os lados que passei as únicas coisas que encontrei era mato e árvores. Parei perto de um rio para matar a sede, achei que não haveria ninguém em uma montanha de dragões selvagens mas ouvi risos. Quem seria? Saria? Alimentei minhas esperanças, mesmo se não fosse ela, poderia ser alguém que conhecia a saída desse labirinto chamado “Montanha”. Corri em direção aos risos e conversas, as pedras machucavam meus pés feridos. Cai. E retomei a corrida.

- Quem está ai?! - Perguntei sem esperar uma resposta.

Mas ela veio.

- Lilu - Respondeu uma alta, sentada em um tronco grande - E quem seria você?

Hesitei a responder.

Pessoas! Haviam pessoas naquele lugar!

Elas poderiam… me… ajud-

Não conseguia mais ver claramente as duas a minha frente, minha cabeça pesou. O sono me consumia, meu corpo pesava mais e fiquei sem forças para me sustentar. Desmaiei.

- “Garota!”

- “Lilu segure ela!”

O que aconteceu? Eu morri?

Não, ainda tenho meus sentidos. Por um momento pensei que sim.

“Porque isso sempre acontece?”

- Ela está acordando, Akay!

A garota mais baixa estava perto de mim com algo semelhante a um prato em mãos. A outra estava mais longe com duas criaturas muito estanhas e grandes, parecia ter uma pele áspera e grossa com grandes dentes, provavelmente animais da floresta. A baixa de cabelos pretos se aproximou de mim e sorriu.

- Você já está melhor, garota?

- Saria? - Sussurei.

Ela parecia muito com minha irmã.

- De quem ela está falando, Lilu?

- Sei lá, talvez uma amiga?

Elas foram muito gentis comigo, Lilu me alimentou - assim como minha irmã uma vez tentou… Não devia ter batido em Saria naquela vez. A outra que se apresentara como Akay - que confundi com minha irmã - cuidou dos meus machucados nos pés. Foi a primeira vez que conheci “Domadores de Dragões”, as duas não pareciam ser muito mais velhas do que eu, mas pareciam ser mais experientes. Enquanto eu tinha medo de perder aqueles importantes para mim, como minha irmã, elas protegiam os dragões, como sendo de única família, tendo a certeza de não perde-los - como eu perdi minha mãe e irmã. O que pessoas como elas estariam fazendo em um lugar como esse? Sacrifícios de outra vila?

Akay parecia saber o que eu pensava, olhou para mim e sorriu.

“Ah, como ela parece com minha irmã”

- Você deve estar se perguntando o que estamos fazendo aqui, certo?

- Estávamos a procura de um Dragão Roxo que nasce apenas nesta montanha! - Lilu parecia feliz e abraçava o Dragão Roxo ao seu lado.

- Porque iriam tão longe apenas para encontrar algo?

- Porque é importante para mim - Lilu sorriu docemente - Meira, você nunca teve algo importante que queria encontrar?

- Nunca - Hesitei. A expressão delas parecia mudar. Lilu abriu a boca para dizer algo mais eu a interrompi - Nunca tive a chance de procura-la.

- Você sabe onde está o que procura?

Assenti com a cabeça.

- Mas acho que é tarde demais… - Abaixei minha cabeça fitando meus pés enfaixados - Eu sempre… Fui muito fraca, achar ela agora é imporssível.

- "Se você acredita, não ligue para os outros e faça. eu fiz isso. Lilu fez isso. Não liga para o amanhã, pense no agora".

- Acreditar…? - Cerrei o punho - Tem rasão! Saria está em algum lugar nesta montanha… E eu vou acha-la!

Lilu e Akay me disseram que viram uma garota muito semelhante a mim subindo a montanha. As agradeci, e prometi nos reencontrarmos. A escuridão da noite me convidava, o céu parecia uma cortina esburacada, mas mesmo assim era lindo. A noite chegou como uma amiga, desta vez, e eu a acolhi. Agora a montanha nem parecia ser tão assustadora, depois de conhecer Gorny e Rox, os dragões pareciam ser mais amigáveis do que contam as histórias dos livros. Admirava a lua enquanto ouvia uma música.

Música?

Uma bela melodia...

Alguém a cantava e era muito bela, mas também triste, como se quem a cantasse tivesse a muito pedindo algo. Aquela canção eu conhecia melhor que ninguém – afinal, a compositora fora eu. Cantava aquela música quando me sentia só ou triste, mas a voz que transmitia aquela tristeza dessa vez não era a minha, mas sim de...

- Saria! – Com certeza está sendo iludida por meus olhos, mas eu a vi lá, diante de mim. Ela vestia branco, seu cabelo estava bem penteado e a campanula que mamãe lhe dera estava com ela, a flor azul devia ter morrido a muito, mas estava tão conservada quanto minha irmã, como se seu tempo tivesse parado. – Saria, minha irmã! – Chamava cada vez mais alto.

Lilu e Akay estavam certas. Saria realmente estava aqui.

Ela me ignorava ou então simplesmente não me ouvia. Preferi considerar a última escolha.

Ela andava tão devagar, mas mesmo assim eu não conseguia alcança-la, como se a cada passo que eu desse ela se distanciava cada vez mais. Estava cansada, com sono e com fome, mas não pude deixar o fato de que minha irmã – que eu achava ter morrido – estava diante de mim. A cada passo que eu dava me sentia mais leve... Mais e mais... Longe…

Come se fosse invisível, como se fosse uma ilusão… Como se eu fosse cego.

Eu nada conseguia encontrar...

A perdi de vista. Em um estante está diante de meus olhos e em outro: desaparecera. De repente tudo ficou completamente escuro, meu corpo estava totalmente pesado e não conseguia me movimentar nem um pouco... Lembro-me de telhados, como as casinhas de madeira que um dia tive; havia vários dele, um atrás do outro e em um daqueles telhados ripa havia uma bola de pano vermelha... A bola preferida de Saria; pessoas andavam para todos os lados seguindo seu destino…

Está frio...

Está muito frio...

Né, mãe... Posso finalmente estar ao seu lado?

Era como a visão da morte que Cressent uma vez disse, víamos o lugar onde nós mais nos apegamos quando morríamos… Eu não… Eu não podia estar morrendo! Não antes de encontrar com minha irmã!

“Esse era o mundo em que você sorriu… E o futuro que eu desprezei” - Pensava enquanto caia ainda mais na escuridão.

- “Essa foi sua escolha?” – Novamente a voz daquele que não conhecia – “Quer acabar assim?” – Dessa vez ela se afastava – “E desistir de tudo?”.

Desistir?

Desistir de que?

- Quem é você? – Perguntei ao nada a minha frente.

- Miranda Tamyn – Respondeu a voz - Aquela que leva as almas a Seltece.

Miranda? Aquela que sempre andava ao lado de Cressent? Levar almas ao mundo dos mortos? Mas porque me ajudaria, sendo que ela foi uma dos que ajudou a me separar da pessoa que mais amava?

- Miranda! Se você realmente é um ser de Seltece… Me responda por que os Deuses iriam quer levar minha irmã.

Em vez da resposta que queria. Ela riu.

- Criança mais tola, acha mesmo que Sua Majestade Imperial iria querer almas? Ele é o criador desde mundo! Porque iria querer ver pessoas morrendo em nome dele?

“Isso significa que...”

- Sim, criança - Ela lia minha mente - O Velho Cressent é o humano mais idiota que já conheci, não o culpo, a maioria é assim… Ele realmente achou que os Imperadores ficariam felizes e manteriam a vila em paz se entregasse almas? Mortes, mortes e mais mortes, os humanos são a única espécie que gostam da desgraça de seus iguais, matar uns aos outros só me dá mais trabalho. Sabe o quanto papai fica ocupado em época de guerra?! Stige se torna um mar de espíritos!

“Papai…?”

- Sim, sim. Sou filha de Ronald Tamyn, Imperador de Vidoni, então naturalmente sou uma princesa… Não se deixe levar pelas histórias de príncipes e princesas, tenho muito trabalho… Aiai, veja bem, esse aqui também é um deles, porque o Tio Davi não podia deixar a parte chata pro Levi?! Esteve cuidando da outra pirralha todo esse tempo, cuidar da irmã dela não ia fazer diferença!

“Tio Davi? Levi? Quem sã-”

- Davi Ronald, se ele é irmão de meu pai, obviamente é meu tio, sua idiota! Ah, que saco, só porque Levi é um Anjo que ele fica com a parte fácil, “proteger uma criança” qualquer um pode fazer isso! Enquanto a mim, tive que aturar aquela desgraça de velho rabugento, sempre achando que sabe tudo!

“Quem realmente é você?!” - Sem querer levantei a voz.

- Opa, opa… Me exaltei, desculpa ai, pirralha… Vejamos… Os humanos chamam a mim e meus irmãos de “Deus da Morte” – Vi um sorriso em meio a escuridão – É um título mais agradável do que “Demônios”

Congelei. Estava morta e diante de mim havia um demônio. O tempo todo ela esteve perto de mim, como não reparei sua presença sombria? Eu iria para Ronefin por causa das coisas que fiz...

- Não tema, te mandar a Ronefin daria muito trabalho... Clame a Burkhan, imperador de Vidoni, e lhe devolverei o que é mais caro, criança.

Clamar?

O que devo pedir ao Deus que odeio?

Sussurrei o nome daquele que odiava. Odiava por ter me dado um destino como esse; por ter me tirado a pessoa que, apesar de odiá-la, a amava; por ter me feito de tola várias e várias vezes... Tudo que eu queria era poder viver como uma pessoa normal, com uma família normal, em uma vila normal…

A vida é como uma balança...

Tu, que suportou o destino que escolhi pra [ti.

Agora é a mesma que vive um destino que [por si só escolheu...”

- Imperador de Vidoni, Burkhan.


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Notas finais do capítulo

"Eu acredito em mim mesmo.
Sei que nem que seja por mim, eu mudarei tudo sozinho.
Esse é o único futuro"
[Myself]

NOTAS:
Fusumá: Portas corrediças de madeira e papel;
Shoji: Um tipo de biombo, é mais leve que um fusumá e permite a entrada da luz;
Washi: Papel usado no Fusumá e Shoji;
Futon: acolchoado japonês;
Kotatsu: Mesa baixa e possui um aquecedor elétrico especial preso na parte debaixo e coberta com um edredom;
Zabuton: almofada achatada;
Furin: Sino de Verão;
Tatami: Esteira grossa que equivale ao carpete;
Seiza: Forma de sentar;
Burkhan: Davi Burkhan, divindade que criou a terra junto com se irmão Ronald Tamyn. Imperador de Vidoni (Tamyn, imperador de Ronefin). Os humanos os tratam por Deus, e as criaturas de Seltece (Anjos e Demônios) o tratam como Imperador;
Vidoni: Um império em Seltece, onde os anjos e heróis vivem após a morte;
Ronefin: Império em Seltece, onde espíritos e demônios vivem;
Seltece: Mundo dos mortos, onde as almas dos falecidos vão. Existe dois impérios (Vidoni & Ronefin) e quatro ilhas (As três mortas & Ilha Stige).
Aru: Espíritos de Seltece que se comunicam com Anjos, Demônios e Nimayas, transmitem mensagens dos Imperadores de Seltece.

۞ Personagem de "Domadores de Dragões";
۞ Ligado a "De Anima".



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