You make me feel wrong escrita por Lyssia


Capítulo 9
Where is my mind?


Notas iniciais do capítulo

A música do título é do Pixies.



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Leon sempre havia lhe dito que comemorar aniversários era comemorar todas as coisas boas que haviam acontecido durante seu ano de vida anterior. Era comemorar todos os “A+”s e conquistas, as coisas aprendidas, os amigos feitos e cada um dos 365 dias que se passou desde o aniversário anterior, todas as boas comidas que haviam sido engolidas e todos os sopros gostosos da manhã em seu rosto, todos os elogios dos professores e todas as vezes que se havia sorrido.

Era uma forma muito bonita de pensar.

Shey continuava achando que era apenas um “Graças a Deus, eu fiquei vivo por mais um ano!”, o que fazia muito sentido se você estivesse em uma guerra ou em um país com expectativa de vida de 36 anos ou na Idade Média, tivesse câncer ou fosse muito velho, ou qualquer coisa do tipo. Ele não sabia bem porque se fazer uma festa de aniversário para bebês, crianças, adolescentes e adultos jovens. Era o tipo de coisa que não fazia muito sentido, em sua opinião. Até porque, bebês nem entendiam o que era uma festa. Coisa estranha.

Sua mãe apenas dizia que era um rito de passagem e que tinham de fazer isso ou no futuro ele poderia ficar triste ao se lembrar de não terem feito uma comemoração de aniversário para ele, então isso basicamente encerrava a discussão e tudo que ele podia fazer era ficar feliz por poder comer quantos pedaços de bolo de creme quisesse, o que meio que costumava valer a coisa toda. Ao menos antes de amigos ficarem envolvidos naquilo.

Ele se lembrava perfeitamente bem de antes inventar algo qualquer sobre fazer aniversário durante as férias de verão e ir à Noruega com o pai visitar uma avó que ele adorava, então, que pena, não seria possível comemorar. Ele costumava atender às ligações deles para lhe desejar feliz aniversário e buscava fotos underground e de baixa qualidade da Noruega para mostrá-los, e assim todos ficavam felizes e crédulos.

Infelizmente, essa opção fora esmagada com Santini, e sequer podia se queixar disso, pois havia sido inteiramente culpa sua.

Sendo assim, sentado em sua escrivaninha, finalmente conseguindo evoluir no exercício de matemática, lá pelas três da tarde, quando ouviu a campainha tocar e recebeu uma mensagem de texto, a qual foi olhar já um pouco irritadiço, imaginando ser Daniel mais uma vez, com alguma sugestão nova de algo que devia funcionar contra gripe, se deparou com algo digitado pela paixão que queria apagar de sua mente, avisando que estava lá embaixo e que estava com frio e seria legal poder entrar. O loiro congelou, parando de escrever os números, arregalando os olhos e se dando conta, de repente, que continuava de pijamas, que não havia penteado o cabelo e que estava com o nariz vermelho de tanto assoá-lo.

Mesmo assim, talvez por uma questão de cidadania, ele se levantou da cadeira e deixou o quarto, sequer se preocupando em tentar ajeitar os cabelos, pois sabia que não conseguiria, e deixando o pijama apenas para causar e impressão de que poderia ter acabado de acordar. Ele desceu as escadas muito devagar, abrindo a porta e ouvindo o batuque levemente irritante que as mãos de Santini faziam com a madeira do portão, até finalmente parar em frente a este e, cheio de hesitação, girar a chave e empurrá-lo um pouco para fora.

Ele deve ter tido cerca de dois segundos para identificar os cabelos negros e as roupas claras antes do garoto se jogar contra ele, apertando-o em um abraço.

— Feliz aniversário! — ele exclamou, e então se afastou com um sorriso, rindo de leve ao observar o estado do outro. — Oi!

— Hão... oi... hmmm... eu não sabia... que você estava vindo e... bem...

— Tá ok! — ele interrompeu, abanando uma das mãos com certa dificuldade, por estar com uma sacola pendurada no braço. — Eu ia vir de noite, mas aí não dá, porque eu faço os exercícios de matemática pra um garoto, tipo, ele me paga pra isso, e ontem a professora do infeliz passou uma puta apostila de exercícios pra serem entregues na sexta, então, é, eu vou ter maravilhosas noites de quarta e quinta. — ele tomou ar, parecendo repentinamente incerto. — Tem problema?

— Não... eu só... — o loiro vacilou, remexendo-se um pouco e desviando os olhos. — Meio que estou sozinho em casa.

— Ah, tá tranquilo. Eu posso entrar ou você tem ordens de não receber visita quando tá sozinho?

— Pode... pode, eu acho. — o moreno sorriu de um jeito agradecido e Shey abriu espaço para que ele passasse, o que fez quase que imediatamente. Eles caminharam até a casa rapidamente e o loiro sentiu um súbito alívio ao fechar a porta e deixar de sentir o vento frio do exterior se chocando contra sua pele. Santini virou para ele, começando a retirar as luvas e a touca e pondo tudo no bolso do casaco.

— Olha, eu tenho duas coisas pra você. — ele começou, passando a mão pelos cabelos, como se tentasse ordená-los. — Porque o Danny meio que queria te comprar presente também, mas aí ele não sabia o que te dar e é comida. Porque é assim que ele resolve as coisas: se não sabe o que fazer, põe comida no meio. Não que eu esteja me queixando. — ele riu de leve, e Shey sentiu o canto dos próprios lábios repuxar de leve.

— Tenho de agradecê-lo. — comentou baixinho, caminhando até o sofá e se sentando, remexendo nos próprios dedos.

— Pois é! — Santini concordou, sentando-se ao lado dele de forma espalhafatosa. — Casa legal, aliás.

— Obrigado.

— Então, tá aqui. — ele continuou, retirando uma lata circular e mediana, azul-escuro e com estrelinhas, que parecia conter biscoitos, da sacola e lhe entregando. — É bolo no palito, e ele me pediu pra dizer que sente muito por ter feito algo parecido com picolé no inverno, mas só reparou nisso depois que tava pronto. — continuou, com a sua típica fala rápida, e então puxou o celular, olhando algo com atenção. — Ah, e é bolo de baunilha coberto de chocolate meio amargo, porque você não gosta de nada muito doce. Olha, eu anotei. — e mostrou rapidamente a tela do próprio celular, que estava aberto em uma nota que não conseguiu ler a tempo.

— Hm, obrigado.

— Eu aposto que tá muito bom, porque os doces do Danny costumam ser bons mesmo. — ele comentou, se remexendo no sofá. — Ah, e foi a Helena que comprou a lata. Ela não queria que eu dissesse, porque tava com vergonha e queria tentar arrumar algo legal pra te dar, mas não conseguiu pensar em nada, então acrescentou algo ao presente do Danny pra se sentir bem consigo mesma. É um segredo que eu te contei isso, ok? Shhh.

— Ok...

— Abre aí. — ele encorajou e pôs a sacola no próprio colo, batucando os dedos no que estava lá dentro. O loiro assentiu e tirou a tampa da lata, vendo os bolinhos no palito, extremamente parecidos com picolés, embrulhados em saquinhos transparentes, um em cima do outro. Não fazia ideia de quantos eram, mas não pareciam poucos, então puxou um e estendeu a Santini, que parou com seu batuque enlouquecedor para pegá-lo. — Valeu. — o moreno agradeceu, puxando a cordinha azul que prendia a embalagem, para desembrulhar. — Deu um puta trabalho amarrar isso com o Danny, ontem. A gente não sabe fazer isso direito, sério.

— Desculpe.

— Pelo quê, cara? — o garoto resmungou, mordendo o doce, fazendo a cobertura de chocolate endurecido estalar e rachar. Ele soltou um resmungo contente enquanto mastigava, engolindo forçadamente e logo virando o rosto para o loiro. — Come um, sério. Isso ficou uma delícia.

Shey puxou um para si próprio, soltando a fita com cuidado para não acabar rachando toda a cobertura do bolo antes de sequer mordê-lo e a colocando dentro da lata quando conseguiu, puxando o saquinho e mordendo um pedaço pequeno. Ele gostou da sensação, da forma como realmente não havia ficado muito doce e de como os pedacinhos de chocolate se misturavam tão bem ao bolo. Aquela fora uma boa ideia, no fim das contas.

— É bom, né? — Santini questionou, provavelmente mais por confirmação que por qualquer outra coisa, e Shey assentiu imediatamente, continuando a mastigar de forma vagarosa. — Legal, agora eu posso tranquilizar o Danny. — comentou, puxando o celular e segurando-o e digitando uma mensagem com uma mão, enquanto com a outra continuava empunhando o palitinho do bolo.

— Ele guardou um pouco disso em casa? — o loiro questionou assim que engoliu, ao que Santini negou com a cabeça.

— Mas não se preocupa não que ele vive fazendo isso, porque é a sobremesa favorita da Amorinha. Tipo, você tem que provar o de bolo de limão com chocolate branco. É muito bom.

— Imagino.

— Hm! — ele soltou repentinamente, assim que pôs outro bocado na boca, e começou a mexer na sacola, retirando algo retangular embrulhado em papel brilhoso. Um pedaço da casquinha de chocolate caiu sobre ele, e Santini resmungou — Ai, caralho. — de boca cheia, contendo uma risada e engolindo forçadamente. — Desculpa. — completou, retirando a casquinha com os dedos e pondo-a no saquinho que ainda segurava na mesma mão em que estava o bolo. Havia uma pequena manchinha amarronzada no embrulho bem feito e Santini revirou os olhos para si mesmo, estendendo o presente para Shey em seguida. — Esse fui eu que comprei.

— Obrigado. — sussurrou e, por via das dúvidas, pôs o bolo de volta no saquinho e o deixou temporariamente abandonado na lata, ouvindo Santini rir de leve por algum motivo. Ele abriu a embalagem, encontrando um livro de capa azul, com “Ardil 22” escrito em branco, a mesma cor em que estava o nome “Joseph Heller”, logo abaixo, e as margens disformes. Havia um bonequinho vermelho com um chapéu que parecia um quepe, em uma posição semelhante à de dança.

— É sobre um soldado na Segunda Guerra que quer muito, muito voltar pra casa vivo e tá querendo que isso aconteça de qualquer forma. Ele pensa em se fazer de louco e coisas do tipo. É muito legal. Começa muito engraçado, na verdade. É uma sátira. Mas aí é guerra, então vai dando merda e o protagonista vai ficando meio amargo... bem, é claro. Então, o que achou? — perguntou Santini, em um tom quase nervoso, e o loiro soltou um som de concordância enquanto abria o livro para analisa-lo por dentro, quase completamente absorto.

— Pensei que você não lia muito.

— Eu não leio. — o moreno concordou, soltando uma risadinha nervosa. — Só distopias e... coisas de guerra. Que são bem difíceis de achar. De qualidade, eu quero dizer. Principalmente porque eu não tenho paciência pra séries. — ele resmungou, de forma nervosa. — Eu devia ter comprado algum clássico, ou algo assim?

— Isso aqui parece muito bom. — Shey sussurrou, lendo o conteúdo da orelha rapidamente. — Mas você devia tentar outras coisas, também.

— Eu por algum motivo não consigo levar a coisa a sério se não ficar puto enquanto tô lendo.

— Então tente Victor Hugo.

— Hn?

— Sabe, o autor de O Corcunda de Notre Dame e Os Miseráveis. São muito tristes e injustos. É muito fácil de chorar e ficar furioso enquanto lê.

— É, então acho que eu vou tentar. — o loiro fechou o livro com alguma relutância, pondo a tampa na lata e se levantando com ambos os objetos nas mãos. — Que foi?

— Vem comigo. — pediu, se dirigindo às escadas e sendo imediatamente seguido pelo garoto. Logo adentrou seu quarto, pondo o que carregava na cama e vendo Santini olhar ao redor com um sorriso discreto, mas permanecer perto da porta, quase timidamente. — Vou te emprestar Os Miseráveis.

— Ah. Ok. — ele concordou e avançou um pouco mais, olhando para a escrivaninha, com o livro de matemática ainda aberto e a calculadora ao lado do caderno. — Posso olhar?

— Uhum. — respondeu, enquanto procurava pelo livro desejado na estante, sem olhá-lo. Assim que o encontrou esticou-se um pouco para agarrá-lo e virou novamente para o outro, que se debruçava sobre a cadeira para ver o que ele havia feito. — Aqui. — resmungou, estendendo o grosso livro de capa simples, que foi prontamente agarrado.

— Você errou bem aqui, olha. — ele comentou, apontando para o meio da conta. — Mas só confundiu o sinal, então deve ficar fácil de concertar.

— Ah... — resmungou, encarando os números com algo de desespero.

— Não, sério! Deve dar certo! Você tá doente, o seu cérebro deve estar igual pudim, ou gelatina, ou colchão d’água ou... essas coisas.

— É...

— Bem, mas vamos dar uma olhada nisso aqui! — desconversou com um sorriso amarelo, abrindo o livro para ler o que havia na orelha.

Shey se afastou da escrivaninha, pegando o livro que havia acabado de ganhar de presente e também o abrindo, apenas para observar mais uma vez o tipo de papel usado, tendo de se conter para não levá-lo ao nariz e sentir aquele cheiro característico maravilhoso. De alguma forma, porém, quando deu por si, estava passando outro bolo no palito para Santini, que de alguma forma estava sentado na outra ponta da cama, enquanto ele estava recostado na cabeceira, de pernas cruzadas, e mandando que o garoto tomasse cuidado para não manchar suas preciosas páginas.

O moreno mantinha uma expressão um pouco risonha, ele notou, com o cantinho do lábio manchado de chocolate, e se virara para olhá-lo, com um ar divertido, sempre que continha uma risada graças a Ardil 22.

E ele não fazia ideia de como isso era possível, mas quando notou, havia o som de Leon abrindo a porta de casa e gritando “Shey!”, estava escuro e nevando lá fora, já haviam devorado mais da metade dos bolinhos e simplesmente passado horas daquela forma, absortos em um universo único e envolvente. O loiro se levantou com relutância, repetindo em voz baixa o número da página em que havia parado e indo até a porta, abrindo-a e olhando para o corredor.

— Você ainda tá de pijama? — o irmão zombou, em um tom bem-humorado, enquanto subia as escadas.

— Acabei me esquecendo de trocar de roupa. — sussurrou, repuxando as mangas da camisa, repentinamente consciente da forma que estava vestido.

— Ah, tanto faz, tu tá doente mesmo. — retrucou Leon, e tratou de cruzar o espaço que ainda os separava para lhe prender em um abraço. — Feliz aniversário. — ele desejou, em um tom baixo, e se afastou. — Eu comprei Anjos e Demônios. Vai lá tomar banho e trocar essa roupa que o seu amigo já deve estar pra chegar.

O loiro o puxou para dentro do quarto, e Leon permitiu, embora estivesse com as sobrancelhas franzidas em desentendimento, até bater os olhos em um Santini com uma expressão sem graça, sentado na cama, com o livro ainda aberto nas mãos e os pés aos poucos deslizando de volta ao chão, com os dedos, embrulhados pelas meias xadrez, verde e branca, se torcendo em um sinal bastante claro de nervosismo.

— Oi. Desculpa. Quero dizer, seu nome é Leon, né? Oi. Eu já disse isso. Mas oi, é. Espero que você não se incomode de eu ter vindo mais cedo. Eu nem avisei pro Shey, então se isso for problema pra ele... bem, não é. O problema sou eu. — o loiro mais velho riu, descontraído.

— Não tem problema, não. Só fiquei meio surpreso. Quero dizer, achei que o Shey ia ficar nervoso de receber gente em casa. — ele começou a comentar, fingindo casualidade, e se sentou na cama, jogando a mochila no chão. — Sabe que ele nunca trouxe os amigos antigos dele em casa? Você é literalmente o primeiro amigo dele a entrar aqui. Sinta-se honrado.

Shey passou a mão pelo rosto, ainda perto da porta, sem saber bem se estava desconcertado ou irritado com o irmão. Ele viu, sentindo alguma coisa estúpida se revirar em seu estômago, Santini parecer surpreso por um segundo, virar o rosto em sua direção, como que em busca de uma confirmação que ele provavelmente conseguiu em sua linguagem corporal, e então abrir um sorriso meio sem graça, meio contente.

— Bem, eu sei como ele se sente. Também não gosto muito de levar gente na minha casa. — comentou, em uma voz simpática um pouco trêmula. Os dedos de seus pés continuavam se retorcendo.

— Ah, você não me parecia antissocial. — Leon retrucou, parecendo legitimamente surpreso. — Shey, vai logo tomar banho, que eu quero jogar uma água também. Tipo, eu tô fedendo a giz de cera.

— Tô indo... — o mais novo resmungou, indo em direção ao armário pegar uma muda de roupa e mantendo-se atento à conversa alheia.

— Não é que eu seja antissocial, nem nada. Eu só não gosto, mesmo. Me sinto esquisito. — Leon fez um som de entendimento, se acomodando melhor na cama, e Shey fechou a porta de onde tirou a última peça de roupa que precisava, começando a se retirar com passos lentos.

— O Shey faz isso porque é antissocial, mesmo. Você tinha que ouvir as desculpas que ele dava quando não queria sair com os amigos dele. Ou melhor, acho que é legal que você não ouça, porque isso é surpreendentemente muito, vindo dele.

Leon, pelo amor de Deus, para com isso... ele quis gritar, apenas apressando o passo e deixando o quarto antes de ouvir a resposta de Santini. Ele se trancou no banheiro, respirando fundo algumas vezes antes de jogar as roupas sobre o vaso sanitário fechado e começar a se despir. Olhou rapidamente no espelho antes de entrar no chuveiro, fitando os cabelos bagunçados, armados para todos os lados, decidindo que o melhor que tinha a fazer era lavá-los, para poder arrumá-los corretamente, e entrando no box, ligando a ducha no quente e deixando a água bater em sua cabeça, abaixando seus cachos e fazendo gotículas baterem em seus olhos.

Quando saiu do banheiro, já vestido e ainda passando a toalha nos cabelos, pois só depois de quase terminar pensou no quanto sua mãe ficaria furiosa por ter molhado a cabeça à noite, enquanto estava resfriado, encontrou Leon parado ao lado da porta, já com as roupas que poria nas mãos e sem o cinto, as meias e o casaco por cima da blusa de meia manga. Ele sorriu de lado e soltou uma piadinha sobre o quanto a mãe dos dois falaria por conta de seu cabelo lavado.

Então, quando Shey saiu da frente da porta, ele assumiu uma expressão séria e, antes de entrar, sussurrou quase inaudível:

— Eu acho que aquele garoto está quase tendo um surto de ansiedade, no seu quarto. Não vá falar merda.

Ele desceu as escadas para beber água, mesmo que não estivesse com sede, antes de voltar ao seu quarto. Quando entrou, Santini virou a cabeça talvez um pouco mais rápido do que seria casual, mas sorriu amigavelmente como era de costume, pondo uma mecha dos cabelos para trás da orelha, e apenas perguntou duas vezes se estava mesmo tudo bem que ele continuasse ali e conhecesse sua mãe, pois Leon o convidara para ficar para o filme, e como já estava de noite mesmo ia deixar os exercícios de matemática pra depois, mas se tivesse algum problema (se fosse por isso que ele não costumava trazer amigos em casa, essas foram suas palavras, especificamente), ele iria embora sem ficar magoado, zangado ou qualquer coisa assim.

Shey não entendeu muito bem o porquê daquelas perguntas esquisitas, mas respondeu tudo da melhor forma que pôde e, quando sua mãe chegou em casa, Santini ainda estava lá.

~o~

Aloá Völkers e Santini di Quercia eram como almas gêmeas. Provavelmente estava escrito em algum lugar nas páginas do destino dos dois que se encontrariam um dia, e então se tornariam amigos. Ou ao menos era o que Shey pensava quando os via juntos. Sentia-se quase como se fosse apenas um instrumento para fazê-los se conhecer, o que de certa forma o confortava um pouco.

Quando ela atravessou a porta de entrada, ainda com o terninho feminino, os saltos altos e um olhar de mau-humor que perdurou pelos primeiro segundos, até que fitasse o filho, os dois adolescentes estavam sentados em pontas opostas do sofá, esperando por Leon, que estava no telefone fazia milhões de minutos, e Santini havia lhe feito levar cobertas e travesseiros para a sala, dizendo que se estavam indo ver um filme no inverno, estes eram requisitos mínimos.

(Ele também travou repentinamente no meio da escada e pôs uma das mãos no ombro de Shey, que fugiu do toque quase instintivamente. Seus olhos azuis estavam ansiosos e apologéticos, e ele questionou se sua mãe não ficaria zangada por estarem tirando roupas de cama do lugar, o que o fez franzir as sobrancelhas, estranhado, pois tinha certeza de que a mãe simplesmente acharia uma ótima ideia e se enrolaria no edredom com gosto. Ele se perguntou que tipo de mãe Santini achava que ele tinha).

Aloá voou no pescoço do filho mais novo assim que fechou a porta, apertando-o em um abraço sufocante e despejando um monte de palavras melosas desnecessárias e “feliz aniversário”, “como está se sentindo hoje?”, “eu trouxe o seu bolo de creme, está lá no carro!” cheias de empolgação. Ele viu, de canto de olho, Santini observando a cena com um olhar vago e um sorriso discreto, e sentiu o rosto corar um pouco, embora nunca fosse ter coragem de ser cruel com a mãe e pedir que ela parasse com aquilo e se afastasse. Deixou que ela o agarrasse pelo tempo que achava necessário, e a fitou calmamente quando foi solto.

— Tomou todos os remédios direito? — ela perguntou, repentinamente em um tom mais severo, e então fez uma expressão horrorizada, pegando um de seus cachos com dois dedos. — Você lavou o cabelo de noite? O que você tem na cabeça?

— Desculpe.

— Garoto, você está tentando não ficar bom para poder continuar faltando à escola, por acaso?

— Desculpe. — ele repetiu, fazendo-a suspirar e revirar os olhos antes de fitar Santini e abrir um sorriso um pouco empolgado, se aproximando mais dele.

— Você é uma graça. — ela comentou, bagunçando os cabelos negros que já não estavam lá muito arrumados. Santini abriu um sorriso sem graça, mas suas bochechas continuavam pálidas e sem nenhum sinal de carmesim, como se o elogio não realmente o afetasse mais. — Shey comentou ontem que um amigo dele ia vir aqui. Não tem festa nenhuma, mas acho que pode ser divertido.

— Ah, com certeza. — ele respondeu, levantando-se, com um sorriso mais largo e contente. — Tipo, eu meio que ouvi bolo de creme, e isso já deixa a noite um pouco mais feliz. — a loira riu um pouco, assentindo.

— Eu sou Aloá. Você pode me chamar de “tia”, eu acho. Os amigos do meu outro filho vivem fazendo isso, mesmo. — ela se apresentou, com um tom simpático que Shey achava que seria muito útil, caso ele pudesse copiar, mas nunca havia conseguido, e não tinha muitas esperanças sobre conseguir no futuro. — E você, é...?

— Santini di Quercia. Mas se você quiser pode me chamar de Santie, tia. — respondeu imediatamente, e o rosto da mulher se iluminou e ficou repentinamente mais afável e carinhoso. O garoto estendeu uma mão para um cumprimento, em um gesto ainda nervoso, e ela o puxou para um abraço. Shey achou tê-la ouvido sussurrar um pequeno agradecimento antes que o moreno retribuísse.

— Shey. — a mulher chamou, assim que se separou do outro adolescente, lançando um olhar ao filho. — Vai lá no carro pegar o seu bolo que eu não aguento mais esse frio maldito, por favor? — pediu, em um tom que não lhe dava realmente escolhas, e o loiro se levantou, murmurando uma concordância qualquer antes de pegar o caminho para a garagem.

Quando ele voltou, a mãe e o garoto que ele queria muito, muito mesmo ver apenas como amigo estavam tendo uma conversa empolgada no sofá sobre milk-shake (que diabos?), e ele se sentou na poltrona, arqueando uma sobrancelha na direção deles, mas não parecendo ser notado. Quando Leon desceu as escadas, finalmente sem o celular pendurado na orelha, foi veementemente ignorado em sua tentativa de entrar na conversa e mudar aquele tópico que os dois irmãos não faziam ideia de como estava se estendendo tanto, e acabou ficando jogado no sofá, olhando cheio de tédio para os outros dois.

Aloá relutou um pouco antes de levantar e começar a subir as escadas para tomar banho, e Shey foi para a cozinha fazer o chocolate quente que a mãe disse que era para irem adiantando, enquanto Leon começava a preparar o DVD, tirando os cabos conectados ao videogame e os conectando ao aparelho. Santini seguiu o loiro mais novo, com um sorriso enorme e aquela linguagem corporal agitada, mas que finalmente deixara de transmitir nervosismo.

— A sua mãe é, tipo, demais! — ele exclamou, em uma voz encantada, enquanto pegava as canecas onde Shey indicara, pondo-as sobre a pia. — Muito demais! Você devia ter nos apresentado antes.

— Hm.

— Ela é tão engraçada! E ela foi tão legal! Tipo, tão simpática! Eu tava achando que ela ia ser meio rabugenta porque, sei lá!

— Uhum... — resmungou, terminando de dissolver as bolinhas de maisena no leite com achocolatado e açúcar, finalmente pondo a leiteira no forno.

— E ela gosta tanto de você e deixa isso tão visív—

— Como assim?

— Hn?

— Como assim “ela gosta tanto de você”? Ela é a minha mãe. — respondeu, fitando o moreno com desentendimento, vendo-o hesitar e um pouco da alegria desaparecer momentaneamente de seu rosto.

— É. Tipo. Eu não sei por que disse isso. Eu sou idiota. — e riu, dando de ombros, como se não fosse nada. — Esquece. É só que ela foi muito legal mesmo. Vocês conversam bastante?

— Aham.

— Ei, eu posso ficar com essa caneca muito maneira do Capitão América? Por hoje, quero dizer. — o loiro assentiu, sem tirar os olhos do fogão, podendo ver com o canto do olho Santini remexer as pernas de um jeito inquieto, como ele aparentemente sempre fazia quando ouvia algo que o deixava empolgado. — Valeu! Quem é que gosta do Capitão América?

— Eu.

— Sério? Que legal! Você tem as HQs?

— Tenho.

— Posso pegar emprestado quando terminar Os Miseráveis? O que provavelmente vai demorar, porque não se deixe enganar pelo quanto eu li hoje no seu quarto, eu geralmente fico levantando o tempo todo pra fazer outras coisas ou pra... bem, eu meio que fico andando de um lado pro outro. Meu Deus, por que eu disse isso? Esquece, esquece. O seu quarto meio que me deixou calmo. Mesmo que ele estivesse com cheiro de xarope. Você entornou xarope lá?

— Acho que não.

— Sério? Então você tem tomado meeesmo muito xarope.

— Provavelmente.

— Você escreve? Se você escrever, aposto que o seu lugar de inspiração máximo é o seu quarto! Aposto também que ficaria mais legal ainda se existisse um spray com cheiro de livro novo. Aí acho que eu dormiria assim que entrasse lá. Cheiro de livro novo me dá um sono. Muita coisa me dá sono.

— Hm...

— Então, você escreve?

— Não.

— Sério? Por quê? Você meio que tem cara de escritor.

— Eu não sei fazer direito, então melhor não fazer.

— Aaaah, você é desse tipo de pessoa! Eu acho isso meio legal, na verdade! Se você não desenhasse direito ia parar, então?

— Ia desenhar menos, eu acho. Não ia perder muito tempo com algo que não está dando certo só por causa de lazer.

— Isso é tão cruel! Mas que legal que você desenha bem, então. Eu não desenho nada. Ah! Mentira! Eu sei desenhar um peixe a partir de um seis, e um macaco a partir de um... um... eu esqueci. Bem, então eu só sei desenhar o peixe. Fica bonitinho.

— Hm.

— Você não sabe escrever direito em que sentido?

— Soa muito simples e sem graça? Eu não sei.

— Talvez seja só excesso de autocrítica.

— Não, eu acho que só não funciona, mesmo.

— Mas você consegue fazer a parte da estória direitinho?

— Acho que sim.

— Então faça isso em um quadrinho!

— Hm...

— Ah, vá! Soe mais animado! Você desenha muito bem, então podia aliar os dois, sério. Você gosta muito, muito de ler e eu sempre tenho a sensação de que quem gosta assim tem vontade de fazer a própria estória.

— Eu vou ver... — resmungou, cheio de hesitação, e Santini abriu um sorriso muito largo em sua direção, visivelmente empolgado.

— Isso é tão legal! Eu aposto que você fica imaginando drama! É uma aposta meio segura, porque você gostou desse livro, Os Miseráveis, e eu aposto que ele vai ficar cada vez mais tenso. Se bem que eu tô gostando, também. Mas aí eu escreveria coisas com distopias. Se eu escrevesse. Porque eu sou um lixo pra isso. A professora de redação disse que eu não sei organizar ideias. Acho que por isso matemática é mais fácil: você não precisa “organizar ideias”, de verdade, é só... ir, sabe? Você não pode olhar pra um cinco, responder tudo pensando no cinco, e aí depois o seu professor avisa que era um seis. Mas dá pra fazer isso em literatura e suas poesias tensas. Tipo...

Jesus! Cala boca! — Leon gritou da sala, com uma voz risonha, fazendo o moreno imediatamente parar de falar, com o rosto se avermelhando e soltando um monte daquelas suas risadas soluçadas idiotas.

Desculpa! — ele gritou de volta, em um tom, felizmente, ainda bem-humorado, e um minuto depois, enquanto Shey enchia a garrafa térmica com o chocolate quente, ele pegou todas as canecas, abraçando-as para garantir que não cairiam e pondo-as na mesa de centro, na sala, junto com o bolo ainda tampado.

Leon correu na cozinha para pegar os pratinhos e as colheres de sobremesa que haviam esquecido de trazer, e logo Aloá desceu, cortou quatro fatias do bolo, pondo cada uma em um pratinho, e Shey encheu as canecas, a de Capitão América, que Santini prontamente agarrou, contente, a estampada com Noite Estrelada de Van Gogh, a qual sua mãe pegou, a dos Stark de Winterfell, de Game of Thrones, que separou para si com um olhar ameaçador na direção do irmão, e por último a listrada de preto e branco, que nas listras brancas tinham contornos de xícaras com a alça virada para a direita e, nas pretas, com a alça virada para a esquerda, que sobrou para Leon, que revirou os olhos.

— A caneca não altera o gosto do chocolate, sinceramente. — ele murmurou com indiferença, mas Shey tinha certeza de que adoraria estar com a caneca dos Stark ou a do Capitão América (não com a de Van Gogh, provavelmente).

Eles logo deram play, deixando a luz acesa para evitar que a comida caísse e atraísse insetos, e Leon teve de intervir um pouco antes do meio, pois Santini e Aloá cochichavam um para o outro com insistência, e nem sequer era sobre o filme, e sim sobre velhas estórias de travessuras infantis.

(Shey estava adorando, na verdade. Ele nunca havia ouvido sobre como a mãe certa vez correra atrás da filha mais velha de vizinha, quando tinha 12 anos, com o mastro da bandeira nacional que tinha no quintal de casa, por dois quarteirões, até conseguiram segurá-la, e então as duas haviam entrado em guerra por anos. Ou como ela certa vez fora apostar uma corrida de bicicleta e, mesmo que estivesse sem freio, não desistiu quando chegaram em uma enorme ladeira, e acabou ralado os joelhos, as coxas e boa parte de um dos braços, além de ter aberto a cabeça e precisado ir ao hospital levar pontos.

Ele também não havia ouvido de Santini que ele quebrara o braço duas vezes subindo em árvores, mais uma vez andando de skate, e mais duas pulando muros, e tinha umas cicatrizes variadas de pequenos acidentes. Ou como se tornara amigo de Sarosh porque eles brincavam juntos com bolinhas de gude, e conheceram Daniel porque um dia uma menininha da escola engoliu uma das bolinhas e Daniel havia caído no choro ao lado dela, porque achou que ela ia morrer, e então Santini caiu no choro também, e Sarosh foi buscar ajuda, enquanto eles entravam em pânico).

Os dois foram para do canto da sala, mais distantes da TV, apenas voltando para pegar mais bolo ou mais chocolate, e Shey não sabia como Santini foi capaz de comer mais três ou quatro fatias de bolo depois da quantidade absurda de bolos no palito que haviam devorado durante todo o dia, mas vá entender. Ele gostou de recostar a cabeça no encosto do sofá e virar discretamente o rosto na direção da mãe e de Santini, vendo-os comer, gesticular, falar e rir, parecendo alegres e à vontade, e se perguntou se aquilo seria o mesmo caso Aloá soubesse que aquele garoto ali, na sua frente, em sua casa, que conversava consigo, era gay.

E que o filho dela, por mais que não quisesse e que estivesse fingindo que tentava apagar o sentimento, mas continuava a deixá-lo entrar em sua vida, estava apaixonado por ele. Nunca havia realmente conversado com a mãe sobre isso, mas era óbvio, certo? Era desprezível. Ela ficaria enojada, certo? No lugar dela, ele tinha a sensação de que ficaria.

Nada daquilo chegou aos ouvidos da mulher naquela noite, entretanto, e logo que o filme acabou, Santini se levantou, esticando os braços e estralando as juntas, dizendo que precisava ir embora e puxando a touca e as luvas do bolso do casaco, colocando-as rapidamente e agarrando o grosso volume de Os Miseráveis que o aniversariante estava lhe emprestando. Ele se despediu de Aloá com um abraço e logo a mulher começou a recolher as coisas na mesa, junto de Leon, que trocou uma despedida rápida com o moreno, e Shey avisou que o levaria até a saída, puxando as mangas do suéter para baixo para cobrir as mãos quando abriu a porta e sentiu o frio do exterior.

— Obrigado por me deixar vir, Shey. — o moreno falou, com um sorriso caloroso nos lábios. — Sério mesmo.

— Eu que agradeço, não? Você veio até aqui pelo meu aniversário e me trouxe um presente. — o loiro retrucou, franzindo o cenho, e Santini riu baixinho, dando de ombros.

— Eu me diverti, sabia? — ele comentou, em uma voz pensativa e contente. — Você tem uma família maravilhosa.

— Eu sei.

— Que bom. — ele concordou, surpreendentemente não em um tom zombeteiro ou debochado, mas sim em um legitimamente satisfeito. — A gente se vê amanhã?

— Acho que sim. Se eu acordar amanhã como estou agora, com certeza vou para a escola.

— Legal. A sua presença silenciosa faz falta no almoço. — e riu, sem deixar que o loiro soubesse se falava sério ou não, mas deixando-o inquieto e ligeiramente incomodado da mesma forma.

— Não está meio tarde pra você ir pra casa sozinho? Você pode ligar pros seus pais e esperar aqui até eles virem te buscar. — comentou, um pouco preocupado, e algo passou pelo rosto do moreno, rápido demais para que Shey conseguisse identificar o que era.

— Não precisa. Eu pego um ônibus, ou algo assim. Ou posso ir correndo. Eu corro muito rápido, e acho que isso vai me manter aquecido!

— Hm...

— Vou ligar quando chegar em casa.

— Tudo bem, então... — murmurou, e o moreno sorriu afável em sua direção, antes de começar a caminhar em direção ao portão, sendo prontamente seguido pelo loiro, que estava com as chaves na mão e destrancou a saída para que o outro pudesse ir para casa. O garoto foi para a calçada, virando novamente para Shey, mas as mãos no bolso, a respiração saindo em fumacinhas brancas de seus lábios sorridentes.

E era por momentos assim que o loiro gostava tanto de desenhá-lo.

— Feliz aniversário, de novo.

— Obrigado.

— Quando terminar o livro empresta pra sua mãe. Eu acabei falando muito dele pra ela.

— Ah. Tudo bem. — ele sorriu de novo, acenando uma última vez e então se virando, correndo pela rua sem mais despedidas.

Shey fechou o portão novamente assim que ele virou a esquina, trancando também a porta de casa e jogando a chave no aparador, esfregando as mãos enquanto ia para a cozinha ajudar o irmão e a mãe. Ele ficou sentado no sofá da sala por vinte ou trinta minutos antes de Santini lhe ligar, ainda ofegando fortemente, dizendo que estava em segurança, parado na porta de casa.

Então finalmente subiu para o quarto, e foi terminar o dever de matemática.


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