A Noiva Pastora escrita por Soma Creuz


Capítulo 3
Capítulo 3




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– Afastem-se! Não toquem nele! – gritava Dante, em meio à confusão. Uns corriam desesperados dali, outros continuavam imóveis, outros aproximavam-se do cadáver. Ângelo fazia parte do segundo grupo, já Carol e Ralf tinham um pouco mais de curiosidade. Viviane vomitava. Sales riscava o contorno do corpo no chão com giz, o que era complicado por causa da enorme poça de sangue. Dante acendeu outro cigarro e se aproximou. Metade do rosto do homem tinha ido de encontro ao chão e o crânio se partira, deixando vazar um pouco da massa cinza do cérebro. Uma de suas mãos virara ao contrário quando as articulações com o rádio e a ulna se romperam, e todos os ossos de seu quadril estavam esmigalhados. Uma das pernas abria-se num ângulo de noventa graus com o tronco, porém até o joelho. A partir dali, a perna dobrava-se para cima, tocando o ombro do desafortunado desconhecido.

Dante examinava o que restava do rosto do homem. Suspirou.

– Algum de vocês consegue reconhecer essa pessoa?

– Eu o estou reconhecendo, delegado. Se me permite...

Dante parecia já esperar por aquilo. Tália aproximou-se para olhar para o cadáver. Parecia apreensiva e assustada, porém mantinha um semblante calmo.

– Este cavalheiro sem dúvida esteve hospedado em meu hotel noite passada. Lembro-me dele ter falado algo sobre estar a caminho de uma cidade perto daqui para cuidar de sua mãe, que tivera um ataque cardíaco repentino.

Dante a examinava com curiosidade. O tom de voz de Tália Moore era impecavelmente sereno, apesar de sua fisionomia demonstrar o contrário. Restava saber qual dos dois era verdadeiro.

– Entendo... Poderia me acompanhar por um instante, Sra. Tália?

– Certamente.

Ângelo ainda estava meio estupefato. Quando foi voltando a si, sentiu-se nauseado. O cheiro do cadáver ficava mais e mais evidente. Precisava sair dali.

– Carol...

A garota simplesmente assentiu. Ralf os seguiu, visivelmente consciente de que alguma coisa muito errada tinha acontecido ali. Voltaram para a casa de Carol, já que estava mais perto e Ângelo podia usar um tempinho antes de ir falar com os pais. Antes de fazer qualquer coisa, na verdade.

Sentaram-se no sofá. Ficaram em silêncio por um tempo.

– Então... hum... – começou ele – novidades?

Carol contou do escândalo de Gui sobre seus eletrônicos, da redecoração da casa de Estela, e que ontem soube que viram uns dez mil coelhos na casa de seu Oliveira. Ângelo de vez em quando pedia detalhes, mas ela geralmente não soube responder. Ao fim da história, Ângelo estava pensativo. Por fim, deu uma risada.

– Ah, peraí, Carol, admito que os coelhos e o cara caindo céu foram bem bizarros, mas você não tá acreditando que tenha sido bruxaria, não é?

– Qual é, Ângelo. Mas você tem que admitir que arranjar uma explicação pra tudo isso tá bem complicado. Dava até pra pensar em algum fã louco de Lá Vem o Andy pregando peças no início, mas essa última te pareceu uma peça?

– Não, mas muita coisa pode ter levado a isso. O cara caiu de um avião, sei lá.

– Meu anjo, você sabe o que acontece quando alguém é abandonado no ar na altura que aquele cara estava?

Ângelo ficou em silêncio.

– O problema não é de onde ele veio. O problema é que ele tava vivo e gritando a uns vinte mil metros de altura do chão, e só veio morrer quando se espatifou.

– Tá, esse tá estranho, mas os outros não dá nem pra considerar. O de Gui eu não vou nem comentar. Seu Oliveira era caçador, deve ter mantido esses coelhos guardados em algum porão pra fazer sabe-se lá o quê. Ou alguém que transportava esses bichos pra algum lugar deixou eles escaparem e aconteceu de invadirem a casa do homem. Quanto às roupas do cara, você conhece o Rafa. E, por acaso, você conhece a filha de Estela?

– Amanda? Não muito...

– A menina é viciada naqueles programas de TV em que uns caras vêm e redecoram sua casa. É assustador ouvir ela falando, sério. Eu não estranharia ela ter dado um jeito de fazer isso em uma madrugada.

– Bem, em relação à Gui e seu Oliveira, eu pensei nas mesmas possibilidades. Só que suas hipóteses sobre as roupas do cara e a casa de Estela têm dois furos: sim, conheço o Rafa. Mas também conheço Viviane, e sei que ela não mentiria. E acho que veriam ou, no mínimo, ouviriam uma comitiva entrando na casa de alguém e montando um armário de dois metros e meio de altura e três estantes, além de mudar todos os outros móveis da casa de lugar, a não ser que você esteja sugerindo que uma menina de 16 anos tenha feito tudo isso sozinha em seis horas, e silenciosamente.

Ângelo resmungou um pouco, mas reconheceu a improbabilidade e foi deitar-se. Tinha escolhido um péssimo dia para chegar mais cedo. Ele e Carol provavelmente teriam sido poupados da visão do homem cadente.

–--

Tália não pareceu de todo surpresa com as perguntas de Dante. Respondia a tudo minuciosamente.

– Dadas as circunstâncias, senhor delegado, entendo seus motivos por me fazer tais perguntas. E certamente nada me agradaria mais do que ajudá-lo, porém infelizmente já lhe disse tudo o que possa remeter a esse caso.

– Eu agradeço, senhora.

– Boatos correm pelo hotel com uma admirável frequência. A princípio, me diverti com o que diziam que claramente o meu estabelecimento havia provocado. Porém, com a sucessão de eventos, houve um ponto em que eu já estava esperando uma visita deste tipo, até porque eu mesma estava perturbada.

– Não se preocupe, no momento não há nada próximo de conclusivo. Mas eu gostaria de alugar um quarto para hoje à noite.

– Será um prazer recebê-lo. – disse ela, com impecável cortesia.

Dante nunca imaginou que os novos diálogos com as vítimas dos estranhos ocorridos fossem revelar-se tão convergentes. Com exceção de Estela e seu Oliveira, todos os envolvidos haviam passado ao menos uma noite no Noiva Pastora, e apesar da própria Estela nunca ter estado lá, sua filha esteve, e ambas moram juntas. No noticiário, mostraram um acidente de carro onde o motorista jurava em entrevista que, por um momento, todo o chão ao redor tinha virado queijo coalho. Enquanto a entrevista era exibida em vários programas de humor, Dante rastreava o veículo e sim, ele havia passado por Areia de Prata e, mais especificamente, pelo Noiva Pastora, como Tália confirmara. O hotel provocar tudo isso parecia absurdo, mas o delegado há pouco vira um absurdo bem diante de seus olhos.

– Com licença... Dante, certo?

Era o rapaz nu, agora com as devidas vestimentas.

– Sim?

– Foi mal, mas ouvi a conversa. Acho que vale a pena te dizer pra ficar de olho naquela estátua esquisita do hotel quando você for lá.

– Estátua? O que...

– Só fica de olho e você vai ver uma coisa interessante, acho. Eu vi.

Já é quase certo que tem algum tipo de bizarrice acontecendo nesse hotel. Pensava, enquanto dirigia até a casa de provavelmente a única pessoa na cidade que poderia convencê-lo do contrário.

– Carol, sou eu.

Ela abriu a porta. Ângelo estava no sofá, comendo algo entre três pães, e Ralf roia um largo osso de bode.

– Dante, eu não sei o que porra tá acontecendo nessa cidade.

–--

– Então... você vai lá hoje à noite? – dizia Carol, após Dante terminar o que tinha a dizer.

– Sim. Carol, eu sei que você tá pensando em ir também, mas dessa vez eu e você chegamos à conclusão de que tem algo fora dos padrões nesse hotel.

Ela deu uma risada.

– Desculpa, mas essa eu não perco por nada.

Ele suspirou.

– É, eu sei... por isso não queria ter falado nada em primeiro lugar.

– Se você vai, eu vou. – disse Ângelo – Foda-se o vodu, não vou deixar minha namorada ir sozinha pra esse antro do inferno. Digo, confio em você, Dante, mas sabe como é...

Carol sorriu.

– Viu só, paizão? Vou ter vocês dois me protegendo.

Dante deu uma rara risada.

– Se eu realmente fosse seu pai, pode apostar que ficaria aqui.

Ralf se aproximou, ainda com o osso de bode firme nos dentes, largou-o nos pés de Dante e pôs-se a abanar o rabo. Dante coçou as orelhas do cão.

– Então, a gente se vê lá. – disse Carol.

– Tá, mas ouçam bem: Não deem bobeira. Se possível, não durmam e, Ângelo, não tire o olho dela.

– Eu sei.

Eram cinco e meia da tarde. Ângelo achou melhor se esforçar mais por um cochilo. Carol fazia buscas na internet sobre acontecimentos parecidos ou relacionados aos recentes, mas, assim como esperava, a maioria das fontes eram apenas historinhas, e as que pareciam mais dedicadas em relatar algo não forneciam qualquer pista de esclarecimento. Resolveu ir atrás de algo mais específico: Tália Moore. Para sua surpresa, o nome rendeu bastantes resultados, mas Tália era citada apenas como a “esposa de James Moore”, e este sim era um nome comentado. O homem das imagens era gordo, careca e tinha profundas olheiras, de forma a ter uma semelhança fantástica com Tio Chico, de A Família Addams. Era historiador e arqueólogo, famoso por vários achados de antigas civilizações. James tinha vários sites dedicados e seu nome era artigo de enciclopédias online. Em meio às várias informações, uma em especial se destacava. Tratava-se de um caso em que James trancara-se em casa por semanas após encontrar algo em uma espécie de templo em ruínas na Grécia. Nada foi divulgado por ele sobre este trabalho em particular e, quando foi indagado a respeito, ele não quis dar informações. Carol fechou o notebook. Apesar de a busca ter trazido mais perguntas do que respostas, sentiu-se cansada, e podia usar um cochilo também antes de ir para o hotel. Mas quando se juntou a Ângelo em sua cama, um terrível e inexplicável calafrio percorreu sua espinha. Carol sentiu uma onda de medo e desespero que a assolou de forma brusca, intensa e efêmera. Buscou razão e respirou fundo. O homem caindo do céu, todo esse mistério a respeito do hotel, a preocupação de Dante, e ainda o filme horrível que assistira ontem tomaram conta de sua mente todos de uma vez. Convencida de que precisava de um descanso mais do que pensava, Carol se deitou e rapidamente adormeceu. Mas o que Carol não sabia era que o que ela sentira era um presságio. Alguns aspectos da mente humana são fascinantes por serem incompreensíveis: o sexto sentido, o domínio dos sonhos e as aparentes capacidades transcendentais dos grandes espiritualistas são exemplos. Porém alguns destes aspectos são mais comuns, e podem até estarem presentes em todas as pessoas.


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