A Noiva Pastora escrita por Soma Creuz


Capítulo 1
Capítulo 1




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– Então o que senhor está me dizendo é que duzentos coelhos brancos invadiram sua casa pela porta da frente, comeram e foram embora?

– E deram ao meu gato algo pra se lembrar, sim.

Dante era o que a maioria de nós chamaria de “razoável” e “paciente”. Outros chamariam de “mané”. Seus dias de delegado na pequena cidade de Areia de Prata ultimamente pareciam querer se aproveitar desse perfil. Dois dias antes uma mulher disse que, quando acordou, sua mobília tinha mudado de lugar. Ela teria dedicado mais tempo para pensar em quem entraria em sua casa em plena madrugada para reorganizar seus móveis se o resultado disso não tivesse ficado tão elegante, segundo seus relatos. “Se o Sr. por acaso achar o responsável, por Deus, me avise. Quero recomendá-lo para todo mundo”, foi o que ela pediu. Outra vez um rapaz chegou dizendo que a porra do computador dele tinha mudado de cor, junto com o celular, mas diferente da mulher da mobília, este não estava muito satisfeito com o trabalho. Aparentemente alguém que julga ter um ótimo senso estético está querendo mostrar seu dom para as pessoas, foi o que Dante pensou inicialmente. Até o cara dos coelhos.

– Bem, Sr....?

– Oliveira.

– Sr. Oliveira, imagino que concorde comigo que a resposta mais razoável para seu caso é que alguém tenha soltado esses animais em sua sala. Tem algum palpite sobre isso?

– Não, delegado, nunca fiz nada para que alguém desejasse soltar duzentos malditos coelhos em minha casa. Nunca sequer tinha visto um coelho, mas parece que alguém bastante extremista queria mudar essa minha condição. Só estou aqui porque aqueles diabretes roeram minha carteira com meus documentos, então vim fazer provavelmente o boletim de ocorrência mais divertido que o senhor já viu.

E ainda dizem que nessas cidades de interior nada acontece... pensava Dante. Areia de Prata ficava no Nordeste do Brasil, região repleta de cidades onde nada acontece. Pelo menos nada aos olhos de quem é de fora. Nos conturbados dias de feira, ritual realizado ao longo de boa parte das ruas da cidade, emergem as mais fantásticas histórias. Dizem também que nessas cidadezinhas todo mundo se conhece, o que não está longe da verdade. Agora mesmo, pelas ruas, vielas e calçadas circulavam boatos de que Estela mudara decoração inteira da casa sozinha e que Gui dissera que trocaram a capa do celular e o computador para lilás como pretexto para encobrir a bicha que ele realmente era. Mas nada era contado com mais entusiasmo do que os três mil coelhos que foram vistos saindo da casa de seu Oliveira.

– Coelhos? Quem cria coelhos? – dizia dona Lúcia, de vassoura em punho, apoiada em seu baixo portão de madeira.

– Sei não, hein, Lucinha. – respondeu Ivan enquanto subia em sua carroça – Só sei que de uma hora pra outra sumiram todos de uma vez. Rápidas, as pestes.

Lá perto, onde várias peças de barro eram exibidas aos fregueses sobre um tapete, Rita “confidenciava”:

– É coisa daquela mulher, dona do hotel novo. Foi só ela pôr os pés aqui que essas coisas começaram a acontecer. Coincidência? Hah! Eu acho que não.

– Pega leve, Rita. – dizia a vendedora – Por que ela faria isso?

– E doidos precisam de motivos? Aquela mulher é viúva há mais de dez anos, e duvido que seja por acaso. Além disso, você viu aquele hotel? Pela mãe do guarda, é bizarro!

– É meio estranho, mas até que achei charmoso. E como, em nome de Deus, você sabe que ela está viúva há mais de dez anos?

– Vai por mim, aquela mulher é esquisita.

Dante pensava em suas últimas visitas, enquanto saía para desfrutar um pouco de seu Marlboro. Não fumava muito, mas era um hábito, desde seus vinte e poucos anos. Agora, aos trinta e seis, não conseguia começar o dia sem um cigarro. Enquanto isso, no noticiário exibido pela pequena TV de tubo da delegacia, anunciavam uma grande operação investigativa da polícia federal na qual estavam usando fotos via satélite. Dante suspirou, enchendo o ar de fumaça.

– Tem vontade de participar de algo assim, Sales?

– Deus me livre, delegado. – disse o jovem policial – Escolhi esse emprego porque gosto de me sentir útil, e não acho que isso fosse acontecer numa operação dessas.

Dante deu uma breve risada.

– Você é um cara realista. Mas a realidade pode ser bem mais simples do que você pensa. Está se sentindo útil nos últimos dias?

– Nem um pouco. – foi a vez de Sales de rir. Basicamente o maior esforço que teve de fazer profissionalmente nos últimos dias foi vestir a farda – O que o senhor acha desses últimos casos?

– Acho que, com sorte, podemos perseguir alguns coelhos amanhã.

Passava da meia noite quando Dante deixou a delegacia. Ele considerava conversar mais com Estela, Gui e seu Oliveira enquanto dirigia seu velho Corcel GT. Ainda era um bom carro, mas acima de tudo era seu parceiro. Lembrava-se de sua primeira perseguição com o Corcel, onde ganhou velocidade tão rápido que o ladrão simplesmente desistiu. O carro era para Dante o que o Um Anel era para Sauron. E agora ele iria ser posto na garagem depois do vigésimo primeiro dia consecutivo sem um furto sequer. Dante praticamente conseguia sentir sua frustração.

Quando já estava pra entrar na rua de sua casa, não pôde deixar de reparar nas duas pessoas paradas em frente ao hotel que havia sido há pouco inaugurado. A rua estava completamente deserta, e cada brisa a esta hora era de fazer qualquer um tremer dos pés à cabeça. Parando pra olhar melhor, viu que eram duas mulheres, uma cujo rosto não conhecia. A outra era a tão comentada Tália Moore, dona do hotel, e que também fazia a gerência. Resolveu verificar.

Parando em frente, Dante recordou o quão esquisito era aquele hotel. A começar pelo nome, A Noiva Pastora. Os dizeres formavam um arco de letras de metal no alto portão gradeado onde era a entrada. Por trás, o hotel de primeiro andar erguia-se com suas paredes brancas, portas brancas, janelas brancas e cortinas brancas. A casa tinha um teto triangular e várias janelas dispostas por toda a lateral, quatro em cada andar. Artemísias prateadas adornavam vários canteiros que faziam o contorno de uma passagem do portão até a porta, e dali seguiam para cercar todo o hotel. A palidez do lugar já chamava atenção suficiente a qualquer hora, mas à noite o contraste com a casa e o reflexo do luar na folhagem lhe davam um ar particularmente fantasmagórico. Dante sentia certa curiosidade de saber como era por dentro.

As duas mulheres conversavam em frente ao portão, na calçada. Quando Dante parou em frente, viu que a desconhecida estava grávida. Tinha os cabelos negros como carvão, enquanto os da dona Tália eram quase ofuscantes de tão brancos. A mulher mais velha tinha olhos azuis muito claros, e poucas rugas apesar da idade avançada. Seus cabelos sem a mais tênue ondulação até a altura da cintura e seu habitual vestido preto repleto de bordados lhe davam um ar bastante único por estas bandas, talvez até um pouco assustador.

– Precisam de ajuda, moças?

As duas repararam no brasão policial do Corcel.

– Ah... não se incomode, oficial. – disse Tália – Aconteceu de eu estar aqui fora enquanto esta adorável dama recém-chegada na cidade estava à procura de um hotel. Já estávamos para entrar.

Dante despediu-se com um “boa noite” e seguiu seu caminho, pensando agora a respeito de Tália. Rita dizia que ela era inglesa, mas Rita dizia muitas coisas. Tália chegara à cidade na semana anterior, uns dias antes de Gui entrar gritando pela porta da delegacia anunciando o primeiro dos incomuns eventos, com uma exaltação inclusive bastante suspeita. De qualquer forma, após os outros dois relatos, Dante resolveu dar ao garoto alguma credibilidade. Porém, como não tinha mais nada que ligasse a forasteira a algum dos casos, decidiu não pensar mais nisso.

Chegou em casa e, enquanto abria o portão, tomou um susto com uma coruja cinzenta empoleirada no muro. Dante não era muito chegado em corujas. Seu pai costumava assustá-lo com uma máscara quando o pequeno fazia alguma besteira, e nunca antes de tranquilizá-lo com doces palavras. “Não se preocupe”, ele dizia. “Eu fazia essas coisas o tempo todo”, ele dizia. Desgraçado. Enfim, ao entrar, foi direto pra cama.


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