Legacy... escrita por Arrriba


Capítulo 1
Capítulo Único.




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Havia sangue em meus lábios.

A viscosidade do líquido rubro se estendia em conformidade com meu sorriso arqueado e satisfeito, e um frenesi do mais puro contentamento fez cada porção de mim se arrepiar no mais genuíno deleite quando a ponta da língua atingiu o característico sabor enferrujado, e aquele gosto preencheu até mesmo meu olfato numa prazerosa sinestesia.

O sangue pertencia ao homem ferido e estirado sobre a mesa do próprio escritório, trajando um jaleco que não mais era branco. Meu ingênuo e estúpido psiquiatra, um tolo que literalmente dera a vida pelo meu caso, ansiando inutilmente descobrir cada nuance de minha personalidade nada convencional, e tão convidativa quanto.

O sorriso em meu rosto se alargou copiosamente ao encarar a expressão mórbida e apagada daquele homem que dizia ser o responsável pelo meu tratamento e reabilitação, sem sequer sonhar com o quanto isso soava patético aos meus ouvidos. Finalmente estaria livre de suas análises baratas, dos olhos covardes que sempre se mostravam incertos e em dúvida se deveriam ou não me encarar, das incessantes anotações, do cheiro senil de fármacos sempre impregnado em sua sala, de todo aquele decrépito amontoado inútil de carcaça que apenas servia para roubar-me um tempo precioso...

O processo simples de respirar parecia algo extremamente árduo para o jovem médico, talvez porque eu ainda mantinha a afiada lâmina contorcendo-se e deslizando pelo abdômen que apenas expulsava o sangue com brutal violência. Lambi mais uma porção do fluido que se impregnara na pele rasgada, saboreando os olhos horrorizados e quase mortos que me fitavam durante o processo. Deixei que o líquido vermelho encharcasse minha boca e língua, e sorri enquanto o fitava sugestivamente.

Coloquei-me na altura de sua cabeça tombada, e sem qualquer prévio aviso, amassei seus lábios contra os meus num beijo rude e intenso, obrigando-o a sentir o gosto do próprio sangue. O gosto da própria morte.

A recordação de nossa primeira sessão veio à tona, ganhando espaço nos confins de minha mente.

~*~*~*~

“– Qual é o seu nome? – a sua voz apática questionou-me com propriedade, como que tentando mostrar uma autoconfiança um tanto longínqua da realidade. Tentando talvez demonstrar que a minha presença não o intimidava... Pobre e estúpido tolo!

– Eu não tenho um. Não vejo utilidade alguma para eles... – respondi, sincera, adorando a percepção do quanto o contato visual que eu firmava parecia receá-lo... Estreitei um pouco mais as pálpebras, as expressões faciais atuando como uma das limitadas mobilidades que a camisa de forças me permitia. Sorri; um gesto que, aos olhos daquele psiquiatra, parecera abjeto.

– Todos temos um nome. – insistiu no assunto, e eu sequer pude imaginar o porquê da irritante persistência. E também pouco me importava – Você também teve um, antes de se tornar...

– O quê? – eu o interrompi, inclinando-me em sua direção o quanto pude – O que eu me tornei, doutor? – instiguei-o, firme em cada expressão, quase ansiando pela resposta que eu via nitidamente vacilar.

– Antes de você renunciar às leis e se deixar levar pelo mundo do crime! – completou seu pensamento, e eu apenas pude gargalhar em réplica.

– Veja bem, eu prezo a liberdade. A real liberdade. Eu, mesmo tendo que usar essa camisa de força e toda noite retornar à mesma cela fria, sou muito mais livre do que você. Simplesmente porque os seus grilhões são mentais, enquanto os meus apenas físicos... Há uma diferença considerável aí! Nomes, identidades, registros, não passam de uma estúpida tentativa de controle, como um produtor de carne que marca o seu obediente gado com números a fim de identificá-los e mantê-los sob uma régia vigilância. A anarquia é minha religião, e a única lei capaz de me mover é a minha própria vontade. Tentar apelar para quem eu já fui é uma estratégia ordinária! Eu sou o que sou, e nada antes disso importa! Que diferença um nome poderia fazer? – ri em total troça, degustando de cada expressão amarga que o médico direcionava a mim.

Ele gastou alguns segundos anotando algo. Eu, por outro lado, não desviei o enfoque do meu olhar em momento algum.

– Você sabe por que está aqui? – redirecionou a consulta, ainda encarando a prancheta com um interesse quase anormal nos seus escritos, como se acabasse de encontrar a própria zona de conforto ao não propagar nosso contato visual.

– Eu fui uma menina má. – debochei usando o meu melhor tom lascivo, arrancando do psiquiatra apenas uma rápida contemplação, que logo voltou a se concentrar numa extensa lista que eu descobri ser a minha ficha criminal.

– Só no último mês você foi ligada à maior variedade de crimes hediondos por onde passou. Homicídios qualificados em massa, falsificações dos mais diversos tipos, torturas, extorsão qualificada por morte, sequestros, tráfico de menores... – listou, rolando os olhos por uma lista que parecia imensa. Eu não contive a gargalhada.

– O que eu posso dizer? Cada um com seus hobbies!

– Nenhum desses atos resultou em algum benefício ou interesse para você. Por que, então? – fitou-me, parecendo de fato interessado na minha resposta e consequente reação. A forma como ele parecia disposto a me desvendar chegava a ser tosca, porém não patética o suficiente para que eu não me instigasse com suas lamentáveis tentativas.

– Quem disse que eu não visava algum interesse próprio? Quem garante que eu não encontrei o que buscava? O problema de vocês é achar que todos são movidos por abonos tão previsíveis quanto o dinheiro, vingança ou poder. Nem todos são tão rasos assim... O que eu ganhei com tudo o que fiz? Tirei o mundo da inércia, essa foi a minha recompensa... – dei de ombros enquanto ostentava um sorriso irreverente. Nunca cheguei a conhecer a real resposta àquela pergunta, mas imaginar as possibilidades era divertidíssimo. – Tem noção de como é difícil chocar as pessoas nos dias de hoje? – franzi as sobrancelhas como se refletisse sobre algum assunto complexo – A sociedade exige mais criatividade nos crimes... O sensacionalismo diário da mídia fez com que a atrocidade fosse banalizada. E eu dou isso às pessoas! Uma fuga da rotina tão enfadonha ao qual estão presas.

– E quem as prende? Talvez as pessoas precisem da rotina para sentir conforto e segurança... – instigou-me a falar, num tom que era pura análise. Seus olhos pareceram encorajados a me encarar de novo, talvez como uma forma de não somente examinar minhas respostas, mas também minha expressão corporal.

– Pessoas como você as prende. O medo de acabar parando num lugar desses. As regras que fingem proteger a sociedade, mas que não passam de uma medida que acima de tudo visa domá-la, suprimir cada instinto, cada traço tão raro de originalidade. O sistema cria um padrão, e quem estiver fora dele é visto como aberração e linchado pelas leis e pelos conceitos dos bons costumes aceitáveis. Pessoas como você funcionam com o objetivo de cada vez mais reprimir a sociedade! – repeti o meu ponto de vista, jamais me cansando de elucidá-lo. – Pessoas como eu tentam quebrar paradigmas, é um desafio que normalmente implica em sacrifícios... para os outros, claro, mas é um tipo de consequência que eu, sinceramente, estou disposta a arcar. – olhei para o teto, quase entediada, divagando sobre minhas próprias teorias como se abordasse um assunto banal qualquer – As autoridades me julgaram mentalmente problemática e me jogaram num manicômio – bufei, achando graça –, mas a loucura, doutor, não passa de uma questão de ponto de vista! Só que vocês estão ocupados demais em suas mentes limitadas, dominados por invisíveis cabrestos, de forma tão doentia que apenas são capazes de definir a insanidade com um pragmatismo que vai muito além do bom-senso. Então quem é realmente o louco, me diga... Aquele que se deixa suprimir pelas regras e ignora os próprios instintos ou aquele que se opõe à inautenticidade do mundo?

– Você não acha que o mundo precisa de regras para seguir em frente? – desviou-se da questão levantada por mim, e de repente eu senti o sorriso desfalecer em meu rosto, e a raiva foi apenas crescendo exponencialmente ao testemunhar tamanha estupidez.

– A droga do mundo vai continuar girando com ou sem as hipocrisias humanas, com ou sem suas leis falhas que vocês ostentam cheios de orgulho. – sorri, contradizendo meu tom irritadiço e explosivo – Mas vocês precisam da sensação de controle... Precisam experimentar o efeito placebo de acreditar que podem estar no comando da própria natureza humana, fingir que podem burlar o quão podre essa espécie realmente é.

– Você fala como se não pertencesse a essa mesma condição... – fez notar, indiretamente questionando-me sobre. – Não se julga pertencente à espécie humana?

– Apenas em parte! – delineei uma nova expressão travessa que pareceu criar algumas dúvidas na mente de meu doutor. Eu tinha plena consciência do quanto o meu comportamento dúbio o confundia, e aquele poderia ainda mostrar-se o meu maior trunfo dentre todos os que eu possuía na forma de segredadas cartas na manga.

– Você sente arrependimento por algum dos atos ilícitos que cometeu?

– O mundo não merece a minha rendição. Ao menos não este mundo. E digo mais, doutor, isso que você chama de “ilícito” e “hediondo” foi apenas o começo... A diversão em si mal chegou a começar. – avisei, umedecendo os lábios que se atreveram a sorrir largamente, em êxtase, e a minha casualidade parecia refletir-se na forma de uma discrepante incógnita aos olhos acinzentados e inteligentes daquele que se aventurava na arte de me analisar. No momento em que nossos olhares se cruzaram eu o vi retesar, provavelmente por perceber a minha inabalável confiança que se traduzia em provável destruição.

– Creio que antes de pensar em novas investidas você terá de preocupar-se em fugir do prédio mais bem equipado do país – lembrou-me, dono de uma lividez que soava assustada e nada profissional.

Não houve uma resposta verbal imediata de minha parte, contudo eu possuía a mais irrevogável certeza de que o brilho psicótico dentro dos meus olhos, em conjunto com um novo e ainda mais cruel sorriso, seriam refutações suficientes ao comentário do psiquiatra. Deliciei-me por um segundo a mais com o terror na face que me encarava antes de finalmente dignar-me a respondê-lo.

– Antes do fim, eu mesma vou te matar e provar o seu sangue! Não necessariamente nesta ordem.”

~*~*~*~

E lá estávamos... Eu cumprindo minha antiga promessa, e ele moribundo o bastante para saber que jamais vislumbraria o nascer de um novo dia. Para sequer conseguir repelir-me em meu atroz intuito.

Minha boca ainda na dele o fazia sentir o nauseante gosto de sangue, criando ondas de excitação em mim a cada vez que eu enterrava um pouco mais fundo o gume da faca e o sentia gemer de dor, deleite ou uma mistura de ambos, minha língua ocupando-se em levar o sangue para o mais fundo de sua garganta tanto quanto fosse possível. Finalmente interrompi o inusitado beijo, ciente de que nada poderia ser mais aprazível do que testemunhar a agonia rente aos meus lábios, a condição do psiquiatra fazendo seu comportamento dividir-se entre aflição e gozo.

– Quem... – o psiquiatra arfou ao sentir uma insuportável pontada em seu ventre amplamente rasgado – Quem é você?

– Apenas alguém a quem todos julgam louca, insana, em prejuízo de suas faculdades mentais, alguém que deve ser vigiada durante todas as horas de seus dias por ser alguém mentalmente incapaz, instável e um potencial perigo para o restante da humanidade. – listei todos os comentários ao meu respeito que fui capaz de recordar, ofertando-lhe uma nova pitada de dor ao torcer o objeto cortante em seu corpo e perceber o homem ainda mais pálido e sôfrego – Não estou certa, doutor? – usei um tom provocativo, minimamente planejado para importunar.

– Eu vi o que você fez com o segurança! Não foi... humano. – refletiu, referindo-se ao momento em que o enorme homem uniformizado foi derrubado, entrando num estado de graves convulsões no momento em que incidi um único olhar em sua direção – O que é você? – reformulou sabiamente a pergunta, os olhos emanando um pouco mais de vida pela vontade de descobrir-me em todos os menores aspectos possíveis.

Fitei-o em seus últimos momentos, sentindo certa curiosidade a respeito daquele ser que, apesar de menor, parecia possuir uma estranha fineza. Uma mente um pouco mais aberta às peculiaridades do mundo, talvez...

– Eu sou a desesperança de gerações futuras, o apocalipse dos dias vindouros. Aquela que destituirá a humanidade de seu posto de dominância e prepotência para que, talvez, algo novo possa surgir. Sou a décima quinta filha de Éris. A única semideusa de toda sua prole, aquela que foi condenada a passar seus dias mortais na Terra e cumprir um dever que devia ser incumbido a todos os deuses. Claro, não sou uma mortal comum, como você deve ter notado em algum momento dos nossos incessantes encontros, mas também não posso desfrutar da imortalidade com a minha metade humana.

– Éris? – perguntou, confuso, aquele nome remetendo-lhe a algo antigo e majestoso, porém distante demais em sua memória para ser alcançado.

– Serei obrigada a gastar meu precioso e mortal tempo ensinando mitologia a alguém que provavelmente estará morto antes mesmo que eu termine minha aula? – falava ainda muito próxima de seus lábios, e podia sentir cada faísca de expectativa nascer, florescer e morrer dentro daquele homem, como se ele aguardasse por um novo beijo. O poder da minha metade deusa se pronunciando e fazendo com que o médico me desejasse mesmo ciente da faca que eu mesma cravava bem no meio de sua barriga – Éris, minha mãe, é a deusa grega da discórdia. Filha dos próprios reis do Olimpo, e abandonada por Hera, minha avó. – sussurrei sedutoramente ao pé de seu ouvido, sentindo-o tremer e jamais me cansando da reação de luxúria que minha condição semideusa causava aos homens – Hera desprezou minha mãe e a impediu de viver no Olimpo, seu lugar de direito. Renegou-a porque não a achava bela, e o Olimpo depende de aparências, nesse ponto sendo muito parecido com a Terra. Éris teve quatorze filhos antes de mim, todos deuses legítimos, todos carregando algo maligno em seus nomes, e apenas eu tendo por pai um mero humano. Mas serei eu, a ilegítima, a bastarda, a inominada, aquela que foi desprezada por outra desprezada a trazer novos dias de glória ao Olimpo.

– Do que está falando? – olhou-me já sem muito foco em sua feição funesta, mas eu o percebi cético à toda minha história. Apropriado duvidar, afinal... Estávamos cercados pelas paredes de um manicômio, e aquele psiquiatra devia ver-me como um delírio insano e certamente mais complexo do que os demais ali dentro.

– Minha mãe me teve por um motivo. Por mais séculos do que você possa imaginar, eu fui treinada pela própria deusa da discórdia para dar um fim à humanidade. Vocês vivem como se fossem seus próprios deuses, esqueceram-se de antigos valores e da importância de nos adorar e servir. E mesmo assim, mesmo negligenciando deidades e fazendo questão de não venerar nossa condição superior, vocês ainda são o ponto fraco do Olimpo. Por alguma razão, os deuses querem conservar a humanidade, como se esperassem que os olhos dos homens se abrissem em meio às selvas de concreto que criaram e retrocedessem no tempo, à época em que oferendas e respeito ainda eram dedicados aos nossos nomes e costumes em troca de nossa misericórdia.

– Isso não passa de uma história – contestou em meio às suas parcas forças, criando em mim uma expressão divertida. Havia dúvida no par de íris que me fitava, provavelmente tentando desvendar se eu blefava.

– Não se preocupe em acreditar nas minhas palavras, humano. Em breve você vai descobrir tudo por conta própria! Logo você será apresentado a Hades.

– Então, se tudo for verdade, por que a sua mãe e seus catorze filhos não nos exterminaram antes? Por que você? – perguntou, como se ainda se sentisse na obrigação de me analisar até o último minuto de sua vida, ou apenas instigado o bastante para expressar a curiosidade acerca de minhas peculiaridades.

– Foi proibido que os deuses interferissem na Terra. Ordens saídas do próprio Olimpo... Como eu disse, meus avós maternos ainda têm propósitos para vocês, ao que parece. Mas eu não sou exatamente uma deusa, certo? Eu também sou humana, e como humana é meu direito poder interferir neste mundo como qualquer outro mortal... – sorri, a genialidade de minha mãe sempre alastrando um arrepio de prazer a cada vez que eu a analisava.

– E você apenas obedece ao que lhe foi imposto, sem nem mesmo questionar? Durante nossas sessões tudo o que você mais me esclareceu é que não suporta regras, normas ou princípios, e agora contradiz cada palavra.

Eu não me contive e gargalhei fartamente da esdrúxula psicologia que aquele homem tentava usar comigo para contrapor meu ponto de vista privilegiado.

– Eu sou o legado de antigos deuses para esta terra vil e faminta. Levar vocês à ruína é a minha maior ambição, não são ordens que eu sigo, apenas meus próprios instintos, minhas vontades que normalmente não têm qualquer coesão, mas aí habita um corriqueiro e crasso erro de vocês! Nem sempre nossas pretensões precisam de motivos, nem sempre necessitam se apoiar em alguma coerência, eu apenas faço. E o seu mundo é convidativo demais! Ele acolhe de braços abertos o caos que eu ofereço. Eu estou apenas deixando claro qual é o lugar de vocês nos vários universos que nos abrigam.

– E qual seria o nosso lugar? – ele fez questão de ressaltar o pronome, atingindo-me com a única ofensa que realmente era capaz de surtir algum efeito. Enfiei a faca muito além dos limites da lâmina, meus dedos segurando o cabo agora completamente inserido na ferida. O psiquiatra estava visivelmente fraco e abatido, mas ainda possuía forças para gritar com a plenitude do ar que lhe restava.

– O lugar de vocês é no nível mais baixo! A humanidade foi feita para a submissão. – meu timbre soou diminuto e periculoso, disposto a assombrar seus últimos instantes de vida e fazê-lo arrepender-se daquela afronta – A maior função de seus braços é servir de apoio toda vez que vocês caem de joelhos ao chão!

– Você pretende nos exterminar? – cuspiu um punhado generoso de sangue, agora sentindo o gosto da morte por conta própria – Escravizar nossa raça? – arriscou, e diante daquele questionamento preocupado, duas situações pareciam certas; ou ele começava a se inclinar às verdades que eu expunha, ou simplesmente estava em delírio causado pelo grave ferimento em seus momentos terminais. Eu jamais saberia dizer qual das duas situações o teria movido a pronunciar tais dúvidas. Se persuadi-lo fosse algo importante para mim, eu poderia simplesmente valer-me da minha capacidade telepática e convencê-lo de tudo, inclusive obrigá-lo a fazer qualquer coisa que me surgisse à mente, bastava um único pensamento e ele seria meu mais fiel aliado, mas com aquele homem eu apenas me sentia instigada a usar meus próprios argumentos. Até porque, de nada me valeria um soldado já finado.

Eu não vou fazer nada disso. Quem vai levar a humanidade à ruína são vocês mesmos, eu apenas vou incentivar com um empurrãozinho ou outro. Não que precise, vocês se superam no quesito de autodestruição... Mas, de qualquer forma, é sempre um prazer ajudar!

– Você não vai conseguir... – ele lamuriou-se, mais como uma tentativa de tranquilizar a si mesmo do que de fato acreditando no próprio discurso – Os deuses, eles vão descobrir!

– Mesmo que consigam me impedir – acariciei seu rosto frígido como uma mãe confortando um filho assustado –, a sua espécie já está fadada ao extermínio, com ou sem intervenção. A minha intromissão é apenas um modo de acelerar esse processo e irritar os deuses pela estupidez que ergue o Olimpo. Neste mundo, todos são vilões, não se engane. A podridão e hipocrisia que regem esse sistema se asseguram disso, e matam qualquer forma extinta de pureza. Não há inocência no mundo desde que o homem surgiu para ocupá-lo. A cada século sobram menos dons no planeta desde o nascimento da humanidade. – afastei uma mecha encharcada pelo suor de seu rosto contorcido em agonia, e não poderia haver nada mais inebriante neste ou em outros mundos do que ser a responsável por fazer florescer o terror nos olhos de alguém – Vocês são os carrascos de todas as dádivas que os deuses lhes concederam de forma gratuita, e cedo ou tarde, terão de pagar por isso com o próprio sangue. Assim como você já se adiantou em fazer.

– Nós ainda podemos aprender com nossos erros... Podemos traçar outro destino!

– Não, não podem. E não adianta culpar a mim ou a minha mãe por isso, nós somos apenas catalizadores da destruição que está por vir, meras espectadoras do show principal que será protagonizado unicamente pelos humanos. Vocês, cada um de vocês, detêm a real vilania em sua essência, com suas pequenas trapaças, seu descaso cada vez maior perante a necessidade de um igual, o tratamento negligente cada vez mais gritante das outras criaturas que vocês acreditam serem menores. Não atribua a culpa apenas a mim. Culpe a geração que fez com que sua fé nos Antigos se perdesse. Delate os contribuintes dos assassínios despropositados, e não se esqueça de apontar o dedo para si mesmo quando perguntarem a respeito do extermínio. Mas não se preocupe, sua vida não vai chegar tão longe. Você será poupado de presenciar a faxina prestes a ser feita, livre de ver aqueles que ama morrendo aos poucos, um por um, até que essa estatística finalmente o atinja também.

Encerrei o meu discurso ao perceber que não havia mais ninguém me escutando. Os olhos do médico ainda estavam abertos e ligeiramente assustados, mas o brilho dentro deles havia se perdido em conjunto com sua vida.

– Óh, que pena, já morreu... Por um momento esqueci o quão fraco vocês são... – refleti comigo mesma, retirando a minha mão encharcada em vermelho de suas tripas agora expostas – Queria que o cárcere ainda chegasse a ver a fuga dos cativos desta masmorra! Mantenha os olhos abertos, meu querido, e veja a escória ser liberta!

Fechei meus olhos, experimentando a familiar e bem-vinda sensação do poder que fluía por cada poro e átomo de minha matéria parcialmente divina. Pude sentir o controle das menores coisas se curvar aos caprichos do meu comando, e veio em seguida a certeza de que o mundo se ajoelharia a mim caso eu quisesse. Bastava apenas dar forma a este desejo e eu mesma poderia dar um fim aos trapos da Terra com a rapidez de um estalar de dedos, contudo, em contrapartida, isso me isentaria de presenciar o grande espetáculo protagonizado pelos confusos e infiéis humanos.

Não... Por mais tentador que fosse acabar de uma vez com a inútil existência daqueles indignos seres, eu apenas forneceria os cenários propícios à destruição, sem me aliar abertamente a ela.

Munida apenas do poder mental que me cabia, destruí cada tranca e segurança daquele lugar que mantinham os prisioneiros cativos, provocando pequenas e várias explosões ao longo do prédio e das celas e libertando os detritos de uma sociedade já há muito corrompida, todos ali considerados psicopatas, seriais killers e tudo o que havia de pior acerca dos distúrbios comportamentais.

Assim que os prisioneiros perceberam a liberdade, não demoraram a abraçá-la, cada um levando consigo uma história sombria em seus rostos. Caminharam lentamente pelos corredores destruídos por mim, ao som de uma irritante sirene que avisava o mundo externo da fuga em massa de seus piores criminosos.

Eu sorri bárbara e largamente, ciente de que os rumos até a destruição total daquele mundo ainda se alastravam em grande distância, mas imensamente satisfeita por ser a responsável em permitir que o extermínio desse seus primeiros passos, ainda que vacilantes e prematuros.

Minha melhor investida agora seria difundir o temor, criar cenários, incutir pensamentos e ideias duvidosas naquelas mentes manipuláveis. E, com o tempo, o medo se comportaria como o mais virulento e disseminante micróbio, alastrando-se sorrateiro, invisível e fatal de cidade em cidade, país a país, continente a continente, até que por fim restassem apenas histórias a respeito daquela degradada civilização, abolida para sempre da existência. E só então a minha missão estaria concluída. Só então o Olimpo reconheceria o meu valor, assim como o de minha mãe, que fora jogada à sua sorte malograda pelos próprios progenitores.

Havia uma inquestionável beleza na forma como tudo se estenderia dali por diante, e uma onda perpetuante de excitação fez-me arrepiar (uma reação tipicamente humana, mas nem mesmo isso poderia me irritar naquele sublime momento em que minhas pretensões começavam a tomar forma).

Tracei o mesmo caminho para fora daquela detestável prisão, os devaneios fazendo com que a minha mente vagasse num plano muito distante de meu corpo. E um pensamento em especial brindou-me com sua presença, criando em mim a certeza de que meus intuitos seriam alcançados com maestria, cedo ou tarde:

Existem muitos questionamentos que rondam a tênue e frágil linha que separa heróis de vilões, e dentre eles, percebe-se que há mais semelhanças entre ambos do que diferenças. Heróis e vilões são aqueles que, à sua maneira, fazem a diferença no mundo. São aqueles que detêm coragem o suficiente para lutar pelos objetivos que almejam, que são movidos por um combustível distinto dos demais. Vilões e heróis são aqueles que espelham em si tudo o que gostariam que o mundo fosse.

Contudo, uma das poucas diferenças que existe entre eles é suficientemente discrepante para fazer a balança pender, e lógica o bastante para explicar a verdadeira natureza humana.

Todo herói, sem qualquer exceção, necessita de um vilão para permitir a sua origem, e essa é a premissa mais básica para o seu surgimento... Mas um vilão, para nascer, não demanda nada além de si mesmo. E, algumas vezes, um mero e insignificante empurrão.

“Eu sou o meu próprio remédio

Transformado em um veneno”

(Dead Skins – Sonata Arctica)


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Notas finais do capítulo

Essa foi minha primeira Original e minha primeira Oneshot, então estou duplamente nervosa em divulgá-la xP
Se puderem opinar sinceramente, muito me gustaria! =]



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