Despedindo-se de Peter Pan escrita por Evangeline


Capítulo 1
I - Um Visitante Inesperado


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem da história!



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A vida de uma filhinha de papai nem sempre é uma maravilha, ao contrário do que a maioria pensa. Em troca do dinheiro, roupas, passeios e “tudo o que há de bom”, eu preciso retribuir com uma imagem.

Moro na parte nobre de Londres, numa casa maravilhosamente grande onde eu poderia acolher muitos amigos, dar muitas festas e coisas do tipo, mas eu não sou muito disso. Ao contrário das patricinhas filhinhas de papai da minha idade, eu apenas passo o dia inteiro na biblioteca da mansão.

Para vosso governo, trata-se da Mansão Thatcher, e eu me chamo Mary Thatcher, filha de Denis e Margaret Thatcher.

Thatcher, Thatcher, Thatcher, é só o que eu ouço quando saio da minha amada biblioteca, e por isso eu passo o dia inteiro lá. A escola? Não preciso dela, apenas faço as provas e recebo um tutor, uma vez por semana, para avaliar o meu desempenho. Logo, eu tenho a imagem perfeita de filha maravilhosa e obediente, sem polêmicas, sem graça, mas com tudo o que eu preciso: histórias fantásticas e reais, bem ali, nas minhas mãos e com capas grossas, antigas... meus amados livros.

- Mary, estou saindo. Se alguém perguntar diga que fui pra casa do Claude! – Disse meu irmão entrando e saindo de supetão na biblioteca.

Ele era quatro anos mais velho que eu, Mark, e vivia mentindo para nossos pais. Como eles nunca me perguntavam sobre ele, eu não tinha necessidade de negar ou confirmar nada.

Era sábado à noite, eu estava no divã da biblioteca e não havia outro lugar no mundo onde eu gostaria de estar. De todas as grandes livrarias e bibliotecas do mundo, eu tinha orgulho de gostar mais da minha querida Thatcher.

Com um globo terrestre no centro e caminhos largos para as seções desejadas, havia mesas, poltronas e, como já mencionado, o meu amado divã. As estantes enormes de madeira de ébano cobriam três andares de bibliotecas, com suas devidas escadas e o piso totalmente coberto por carpete vermelho escuro. Os três andares foram divididos e bem selecionados de acordo com o desejo de meu avô, Thomas, de modo que o andar térreo era o mais moderno, o primeiro possuía material para matérias exatas e humanas, enquanto o segundo ficava com história e literatura. Eu amava os três pisos, mas devo admitir que a pequena varanda do térreo me seduzia profundamente.

Diante do divã havia uma porta grande de vidro que dava para uma varanda, a vista desta pequena e semicircular varanda era para o nosso desnecessariamente enorme, porém belíssimo jardim.

Já passava da meia noite quando eu finalmente me dei por vencida e decidi dormir. Já havia terminado um livro, e a semi-depressão pós-término era algo que me custava acostumar. Mesmo ali no divã, o clima parecia-me incrivelmente mais confortável naquela coleção de papel empoeirado do que o meu quarto sem emoção. Meu quarto era grande demais para uma garota vazia demais, ou era o que eu pensava de mim mesma.

Eu estava quase dormindo ali no divã, ainda abraçada com o meu maravilhoso exemplar do quarto volume de Etheldreda. Havia acabado de lê-lo e a sensação de vazio ainda me era estranha mesmo depois de tantos livros já lidos e finalizados. Meus olhos queriam se fechar, e eu queria deixar que o fizessem. Lá fora a chuva alagava tudo e emitia um som maravilhosamente consolador. As luzes da biblioteca estavam todas apagadas, exceto por um abajur de luz alaranjada que ficava ao lado da porta de vidro.

Pisquei uma vez...

Um raio se fez por visto iluminando quase toda a biblioteca, inclusive o meu rosto quase adormecido.

Pisquei mais uma vez antes de dormir, apagando completamente.

Sequer deu tempo de ouvir o trovão cujo raio eu já havia visto.

Foi quando um estrondo enorme me acordou, acompanhado pela chuva entrando na biblioteca pela porta. Eu me levantei subitamente enquanto procurava descobrir de onde vinha o som, o que tinha causado aquilo. Ao ficar de pé eu descobri ter sido a porta da varanda.

Aquilo nunca havia acontecido... Uma tempestade não-tão-forte como aquela nunca havia forçado a porta ao ponto de abri-la. De fato, esta porta nunca havia sido aberta sozinha. Fui até lá e a fechei rapidamente, evitando a chuva e resmungando das gotas que bateram em alguns livros ali perto. Logo me peguei encostada ao vidro encarando o céu cinzento.

Era uma tempestade realmente bem bonita. Eu admirei alguns raios e trovões por algum tempo. Via as luzes magníficas descerem dos céus e fechava os olhos até ouvir o respectivo trovão, imaginando a distância entre mim e aquele fenômeno maravilhoso.

Foi então que uma mão firme e forte – além de molhada – apertou a minha boca, enquanto outra segurou rapidamente meus dois pulsos atrás do meu corpo. Senti uma respiração pesada e exausta no meu pescoço e gotas d’água pingarem em meu ombro.

- Fique quietinha e vai ficar tudo bem. – Ouvi uma voz ameaçadora dizer, ali bem no meu ouvido, como se esperasse me ver em pânico.

Por alguma razão eu estava completamente calma, mas a força desnecessária que ele usava para apertar meus pulsos estava me irritando. Ao perceber que eu não tentei escapar, gritar ou nada do tipo, ele me soltou e então eu me virei para o garoto.

Estava completamente molhado, o que me fez descobrir o que havia aberto a porta da biblioteca. Tinha cabelos escuros, ou ao menos um pouco, eu não conseguia distinguir a cor. Usava calça jeans e um casaco verde escuro, com o capuz cobrindo devidamente a cabeça. Eu o encarei indiferentemente para então me dirigir até a porta da biblioteca. Ele separou os pés e ficou em posição de expectativa, esperando qualquer movimento brusco meu.

Coloquei uma mão na maçaneta e o encarei, vendo-o fitar minhas mãos como se esperasse apenas um sinal verde para avançar em mim e me matar.

Com um olhar indiferente e frio, eu apenas tranquei a porta, voltei-me para ele e fui até o divã pegar o meu exemplar de “Etheldreda”. Eu o segurei e encarei o livro entre as mãos e comecei a subir as escadas.

Chegando ao segundo andar eu apenas coloquei o livro de volta em seu lugar de origem e peguei o que estava exatamente à direita dele. Não me importava que livro era, eu estava lendo na ordem.

Desci mais uma vez as escadas, tendo cada movimento friamente observado pelo meu estranho “visitante”. Me sentei no divã, encostando-me brevemente e abri o livro na primeira página.

O garoto parecia indignado, como se a presença dele ali fosse descomunalmente importante. Senti o olhar irritado dele e o encarei erguendo uma sobrancelha.

- O que é? – Perguntei pela primeira vez, fazendo-o franzir o cenho.

- Vai ficar aí lendo? – Ele perguntou de volta, num tom confuso e raivoso. Eu dei de ombros e voltei o olhar para o livro.

- “Fique quietinha e vai ficar tudo bem”, foi o que você disse. – Eu citei. – Eu estou obedecendo e você ainda reclama? – Retruquei mais uma vez olhando para ele.

O garoto suspirou profundamente, confuso e irritado.

- Não quer saber quem eu sou? – perguntou.

- Não. – Respondi simplesmente.

- Nem o que quero aqui, ou o que pretendo fazer, ou quando vou embora?

- Não, não e não. – Respondi.

- Você não tem medo de mim?! – Perguntou por fim, finalmente se aproximando um pouco de mim.

- Por que eu teria? – Perguntei fechando o livro subitamente e ficando de pé, diante dele, encarando-o.

- Porque... eu cheguei aqui... – Hesitou. – No meio de uma tempestade... Te rendi... – Dizia, me fazendo sorrir de canto. – Qual é a graça? – Perguntou.

- Você não me rendeu, garoto. – Eu falei erguendo uma sobrancelha. – Eu apenas escolhi não me intrometer na sua vida. – Disse fechando as cortinas de veludo vermelho escuro da porta e acendendo mais um abajur, próximo ao divã.

- Mas eu estou dentro da sua casa! – Ele retrucou, ainda sem entender.

- Sim, porque você é burro. – Eu concordei rindo um pouco e me sentando confortavelmente.

- Burro?! – Perguntou com raiva.

- Sim. Você entra uma propriedade privada repleta de seguranças, rende a filha do dono da propriedade e ainda molha este carpete caríssimo... – Eu listei as burrices dele. – Pobrezinho de você. – Falei por fim, ironicamente.

Ele pareceu mais confuso ainda e levou uma mão à testa. Eu dei batidinhas no divã para que ele sentasse ao meu lado, e ele logo o fez, fitando algo que eu não podia ver, pensativo.

- Vamos ao óbvio. Quem é você? – Eu perguntei vendo-o me encarar e não responder por alguns longos segundos. – Eu posso te ajudar se você puder argumentar bem o suficiente para me convencer a não gritar agora e trazer uma penca de seguranças até aqui. – Ameacei por fim, irritada pela frescura do garoto.

- E porque não faz isso logo? – Ele perguntou me fazendo rir um pouco.

- Não seria muito divertido. – Eu respondi dando de ombros. Ele cerrou os olhos e sorriu de canto, me encarando brincalhão, parecendo estar gostando da conversa.

- Peter. – Ele falou por fim. – Peter Pan. E quem é você? – Ele perguntou de volta. Eu sorri por algum tempo, lembrando exatamente de onde conhecia aquele nome.

- Meu nome é Mary. Mary Thatcher. – Ele pareceu reconhecer o meu nome e logo arregalou os olhos, passando as mãos pelos cabelos, preocupado.

- Que merda que eu fiz... – Sussurrou me fazendo rir.

- O que um bandido tão conhecido faz aqui? – Eu perguntei, mais interessada na conversa. – Duvido que tenha vindo pegar um livro emprestado. – Completei, tentando tirar o clima tenso daquela conversa.

- Eu não sou um bandido. – Ele negou rapidamente, parecendo ofendido e decepcionado.

- Tudo bem... Se de onde você vem invasão de propriedade privada não é crime... – Eu comentei com um sorriso de canto. Ele pareceu se acalmar um pouco.

- Eu estou procurando uma pessoa. – Ele falou num sussurro quase inaudível e permaneceu em silencio. Eu esperei que continuasse, mas ele parecia não querer falar nada.

- E eu estou procurando por uma história. – Eu sussurrei pensativamente. Ele pareceu se interessar, o que era o meu objetivo. Por alguma razão ele me era interessante, afinal, quem não ficaria curiosa com um estranho entrando em sua biblioteca durante uma tempestade, na madrugada de um sábado de julho.

- Uma história? – Ele se certificou do que ouvia, e eu assenti com a cabeça.

- Está vendo este lugar? Todos esses livros? – Eu mostrei a biblioteca com um gesto discreto e o vi assentir. – Eu já li a maioria deles, mas nenhum me cativou o suficiente. Quero uma história decente, que me faça rir e chorar, quem sabe ao mesmo tempo. – Eu dei de ombros vendo-o rir um pouco. – O que foi? – Perguntei incomodada.

- Você quer rir e chorar por um livro? – Ele perguntou em meio a risadinhas ousadas e irritantes.

- E por que não? – Eu retruquei.

- Não se chora com coisas que não existem, Srta Thatcher. – Ele falou com falso respeito, sendo irônico.

- E quantos livros exatamente o Sr já leu, Sir Pan? – Eu perguntei fazendo-o ficar incomodado e virar o rosto, com raiva.

- Não te interessa. – Ele falou por fim, sem olhar no meu rosto. Eu tentei colocar a cabeça em seu campo de visão, mas não funcionou.

- Peter... – Eu sussurrei depois de algum tempo, entendendo o incômodo do rapaz. – Você não sabe ler? – Perguntei, tentando ser o menos rude e indelicada possível, mas senti a minha voz fria de sempre.

- Não te interessa, garota. – Ele repetiu. Eu me calei, irritada. Falar com pessoas não era o meu forte. – Você não vai chorar e rir de verdade com algo que não é de verdade. – Ele falou, cabisbaixo e irritado, depois de algum tempo. – Precisa da realidade. Para chorar, precisa sofrer, e não ler sobre alguém que sofreu. Para sorrir, precisa estar feliz, e não ler sobre alguém que está feliz. – Ele concluiu o pensamento, me deixando um tanto pensativa, mas logo voltei ao estado irritado de antes.

- É fácil falar... – Eu resmunguei antes de bocejar. – Agora, se não se importa, eu preciso dormir. Você pode ficar por aí se quiser, só não saída biblioteca nem destrói nada. – Alertei deitando-me no divã confortavelmente e vendo-o se levantar. – Amanhã de manhã eu posso trazer comida ou algo do tipo, e se tiver parado de chover você vai embora, ou algo do tipo. – Falei ignorando uma risada macabra que ele soltou, se afastando de mim.

- Até logo, Srta Thatcher... – Sussurrou Peter Pan, sumindo nas sombras da minha enorme biblioteca.

Por alguma razão ele não me assustava, e ao invés de achar que o rapaz era especial, eu achava que eu mesma estava ficando louca. Acolher o líder de uma gangue em minha própria casa era algo que nem as patricinhas mimadas faziam.

Mary 1 x 0 Patricinhas!


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Notas finais do capítulo

Se gostarem, por favor, me avisem. Eu preciso saber se devo ou não continuar!



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