Percy Jackson se torna um Comunista escrita por Goldfield


Capítulo 4
IV - Heil Ares!




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IV

“Heil Ares!”

Naquela noite, todos os seguidores da revolução proposta por Percy Jackson se reuniram no chalé de Poseidon. Antes sempre vazio devido ao acordo entre os “Três Grandes” deuses – Zeus, Hades e Poseidon – quanto a não terem mais filhos (que cada um deles convenientemente desrespeitara), o recinto agora estava apinhado de meio-sangues, que dividiam entre si os beliches e compartilhavam o espaço entre os sacos de dormir espalhados pelo chão com verdadeiro espírito socialista – alguns deles, aparelhados com notebooks ou smartphones, até percebendo que o wi-fi fora liberado.

Mais de cinquenta semideuses deviam totalizar o número ali presente, iluminando o local com lanternas e velas; as paredes e janelas agora forradas com lençóis vermelhos, cor da revolução – tanto para lembrar-lhes constantemente de suas metas, quanto para que seus oponentes espalhados pelo Acampamento não pudessem espreitar o que faziam ou falavam.

De pé no centro do local, tendo até mesmo disponibilizado a própria cama para uso de seus camaradas, Percy Jackson preparava-se para discursar. Todos aguardavam instruções quanto aos próximos passos a serem tomados naquele levante proletário, os focos das lanternas voltados para o filho de Poseidon de modo a torná-lo uma espécie de estátua amarela em meio à penumbra. Sentindo muitos olhos e esperanças depositados sobre si, o meio-sangue tomou a palavra sem mais rodeios:

– Primeiramente, decreto que esta edificação não mais será tratada por “chalé de Poseidon”. Ela sempre abrigou apenas alguns poucos filhos desgarrados desse deus cujo número pode ser contado nos dedos. Isso constitui grave desperdício de espaço e falta com a função social do terreno, enquanto outros chalés passam por problemas de superlotação jamais combatidos pela antiga e corrupta direção do Acampamento. Assim, a partir desta noite este chalé será a sede do Soviete Meio-Sangue. Além de centro estratégico e abrigo aberto a todos os adeptos da revolução, constitui primeiro passo em nosso projeto de Reforma dos Chalés. Os dormitórios sem uso serão expropriados e revertidos aos semideuses em necessidade de teto. Os chalés de Zeus e Hades serão os primeiros!

Ligeiro clamor dominou a plateia durante alguns instantes, provavelmente movido pelo fato de que Thalia Grace e seus seguidores anarquistas vinham usando o chalé de Zeus como base de operações. Além de servir à causa da revolução, a tomada do dormitório do Senhor do Olimpo também significaria um golpe contra a ideologia inimiga.

Mas havia mais assuntos a serem tratados. Com um gesto, Percy chamou um rapaz sentado em meio aos seguidores para se levantar e vir até junto de si. Tratava-se de Charles Beckendorf, um dos mais proeminentes membros do chalé de Hefesto. Recebendo aplausos e assovios de apoio de alguns colegas, o garoto musculoso pelo trabalho na forja posicionou-se de pé ao lado de Jackson.

– Há uma questão urgente a ser discutida em nosso meio – retomou ele. – Dissidência. Saltou-me aos olhos hoje mais cedo como vários de nossos seguidores se bandearam para o lado de Thalia enquanto ela destilava suas mentiras anarquistas. O discurso dela pode à primeira vista parecer tentador, porém não se enganem, camaradas. Quem clama por menos Estado está em mais sintonia com os liberais exploradores capitalistas do que possa imaginar. Abole-se o governo para as empresas assumirem. Foi o que aconteceu aqui no Acampamento com a chegada de Kydon.

Após uma pausa para conter palmas e ovações, Percy prosseguiu:

– Assusta-me que a maioria dos dissidentes tenha provindo dos chalés de Hefesto e Deméter, justamente os pilares de nossa revolução. Nossa bandeira ostenta o martelo e a foice entrecruzados, meus caros, representando a união dos trabalhadores das fábricas e das fazendas. Justamente os semideuses filhos do deus da indústria e da deusa da agricultura. Não podemos permitir que eles sejam iludidos por nossos rivais!

– Estou aqui, representando os filhos de Hefesto, para confirmar minha adesão à revolução socialista, não anarquista – afirmou Beckendorf, trocando um olhar de apoio com Jackson. – A extinção imediata do Estado deixa uma página em branco que pode ser escrita por nossos inimigos, nós operários ficando sem nada e continuando a ser explorados pelos grandes capitalistas. A via socialista é certa; a ditadura do proletariado, uma garantia. Não queremos o caminho duvidoso apresentado por Thalia. Além do mais, prefiro confiar num semideus que possui ferreiros ciclopes como irmãos do que na filha privilegiada do mais poderoso dos deuses.

Aplausos e exclamações de apoio se seguiram, porém ainda não era o fim. Percy e Charles tinham mais revelações a fazer:

– Beckendorf aqui mostrou-se uma importante adesão ao nosso grupo devido às suas ligações com o inimigo – continuou Jackson, dando tapinhas no ombro do colega. – O fato de ser ex-namorado de Silena Beauregard fê-lo manter vínculos com várias de suas irmãs. Segundo a rede de informações que estabeleceu, as filhas de Afrodite estão prestes a se unir aos filhos de Hermes, algo já previsível, numa reação liberal capitalista ao nosso movimento. Pior ainda: estariam sendo encabeçados por um grupo de filhos de Atena, entre os quais Annabeth Chase, para elaborar uma estratégia de contrarrevolução em parceria com nossos antigos líderes opressores da Casa Grande!

Uma série de “óóós” perplexos passou pelos ouvintes, misturando surpresa e indignação. Um ou dois xingamentos se seguiram. Quando o silêncio retornou, Percy expôs o que pensava:

– Não podemos nos precipitar ao agirmos contra esse conluio. Lembrem-se de que, além dos liberais e dos anarquistas, temos o chalé de Ares para nos preocupar, e os demais grupos que permanecem neutros. Antes do confronto direto, seria proveitoso trazer esses indecisos para nosso lado. Mostrar a verdade do socialismo antes que também sejam cooptados por mentiras.

– Será que tudo isso vale a pena, Percy? – uma voz trêmula, saída em meio a um balido, manifestou-se dentre a multidão, atraindo os olhares de todos. Vinha de Grover, o sátiro resolvendo se manifestar após devorar demoradamente uma lata vazia de Coca-Cola, gesto que muitos ao redor viram mais como protesto contra o capitalismo do que fome.

Os seguidores mais fervorosos da revolução fecharam o rosto diante da pergunta, outros resmungaram contra a voz destoante. Insultos como “reacionário” e “entreguista” vagaram pelo ar durante um momento, antes de Jackson, ainda de pé, aproximar-se do amigo e indagar:

– Por que tanta dúvida, meu caro?

Grover tremia, ainda mais por ser agora o centro das atenções. Mesmo assim, replicou:

– Nós nos levantarmos assim contra a exploração, sendo que não conseguimos nem juntar todos os semideuses na mesma causa... Eu consultei os sátiros na floresta. Eles estão confusos. Não sabem de que lado ficar, mas pendem mais para o Sr. D e os capitalistas. Talvez seja uma força que não consigamos superar. Uma causa já perdida. Estou com medo, Percy.

Dessa vez não houve resmungos. Muitos ali aparentemente concordavam com o argumento de Grover, embora não admitissem. Não era só ele o amedrontado ali. Jackson reconheceu isso, olhando ao redor em silêncio. Sentiu, mais uma vez, o peso das esperanças sobre si. E somou coragem para rebater:

– Grover, até hoje em que se resumiu sua vida?

O sátiro não precisou pensar nem por um segundo para responder:

– Procurar o deus Pan.

– Ah, é? E para quê? Por quê? Quem definiu isso? Qual o objetivo de gastar toda sua existência numa busca que muitos já determinaram como impossível?

O sátiro levou um casco ao queixo, sobrancelhas franzidas, antes de soltar, com os olhos arregalados:

– Não sei.

– Pois aí está. Desde que nascemos, estamos sendo obrigados a seguir sinas e nos prender a destinos sem sequer consultarem nossa opinião. Nisso entra nosso movimento. O socialismo não vai extinguir somente a exploração econômica, mas também a opressão dos costumes, das tradições. Nenhum sátiro precisará mais se preocupar em procurar Pan, nem qualquer semideus arriscará a vida em missões ou cumprimento de profecias. Serão todos livres, Grover. Quero que transmita essa mensagem a seus colegas na floresta. Peça que comparem essa visão de mundo que apresentei com o que ganhariam se juntando ao bando de Kydon. Tornar-se-iam mão-de-obra explorada nas fábricas de iogurte grego? Ou acabariam mendigando nas calçadas e becos, numa sociedade opressora que não lhes concede o mínimo espaço?

A visão de sátiros mendigando devia ter mexido bastante com a cabeça dos ali presentes, pois muitos rostos se entristeceram, até mesmo um ou outro soluço sendo ouvido. Grover, por sua vez, bateu com força um dos cascos dianteiros no chão, cabeça erguida. A frase que veio em seguida serviu tanto para aliviar Percy sobre as incertezas do amigo quanto para iniciar uma salva de palmas dentro do chalé:

– Estou com você, camarada. E prometo trazer meus companheiros sátiros até nós.

Na manhã seguinte, os semideuses em todos os chalés, sem importar a qual corrente ideológica pertencessem, acordaram com uma barulheira de dar medo.

Começou com o que pareceram batidas de tambor, numa cadência constante e crescente. A esse som logo se somaram passos igualmente sincronizados, pisando todos ao mesmo tempo de maneira a querer fazer o chão tremer. Comunistas, anarquistas, liberais e indecisos saíram todos às janelas e portas para testemunhar o estranho acontecimento, percebendo que os barulhos provinham da direção do chalé de Ares. Mal tiveram tempo de ruminar suas suspeitas, e uma multidão saiu em filas de trás de um amontoado de árvores.

Os cerca de trinta filhos do Deus da Guerra marchavam em perfeito equilíbrio e disciplina, feito um exército desfilando. Vinham uniformizados de maneira estranha – não pelo traje não combinar com os donos, mas por nunca os terem antes usado: fardas beges fechadas com botões sobre o peito e encimadas por gravatas pretas, calças da mesma cor das camisas e coturnos militares aos pés. Alguns usavam quepe à cabeça, outros não – indicando algum tipo de hierarquia. Carregavam, em cinturões, armas como adagas e espadas; outros portando ao invés disso longas lanças gregas com as duas mãos. Todos, sem exceção, usavam uma espécie de lenço vermelho amarrado ao braço direito, contendo o símbolo de um círculo branco contendo duas espadas cruzadas no centro. O mesmo emblema estava presente numa grande bandeira rubra trazida por um dos semideuses, acompanhado por colegas tocando tambor e corneta.

As fileiras marchando lado a lado eram lideradas, como era de se esperar, por Clarisse La Rue, os cabelos presos num coque sob o quepe e as mãos cobertas por luvas pretas de couro. Continuou conduzindo o destacamento por alguns metros, exibindo toda sua pompa e poder de comando, até bater fortemente com um dos coturnos sobre o chão, bem no centro da área formada pelo contorno dos chalés – à visão de todos.

Voltando-se aos subordinados, ela berrou, erguendo o braço direito reto com a mão estendida:

Heil Ares!

Todos os semideuses que a acompanhavam repetiram ao mesmo tempo, suas vozes tornadas tão fortes por falarem juntas que talvez a saudação houvesse sido ouvida em Nova York:

Heil Ares!

Clarisse efetuou novo gesto para que os irmãos descansassem, e em seguida lançou um olhar atordoante ao seu redor, encarando todos os meio-sangues junto aos chalés. Muitos deles, fulminados pela filha de Ares, notaram nela incontestável impressão de superioridade, tal qual fosse um pássaro espreitando uma colônia de insetos. A seguir, ainda observada por todos, inclusive um cada vez mais indignado Percy, a garota começou a discursar, sua voz tão alterada e estridente que não seria de surpreender ter sido mordida pelo próprio Cérbero infectado com raiva:

– Nós, filhos de Ares, não podemos mais ignorar o inegável estado de decadência que dominou os semideuses. Não só neste acampamento, mas em todo mundo, nossa comunidade é espoliada por parasitas comunistas, anarquistas e liberais que prometem saídas aos nossos problemas, quando na realidade apenas os aumentam. Só a guerra pode preservar o poder dos semideuses, por isso vemos no militarismo a única forma de organização possível em meio a estes chalés dominados por charlatões. Sendo Ares o Deus da Guerra, fica então claro que os filhos dele, que aqui vos falam, são superiores às outras proles de semideuses. É hora de erradicar práticas como as festas dos filhos de Dioniso e a rapina dos filhos de Hermes, que só fazem o Acampamento apodrecer ainda mais. O caminho está conosco, no Nacional Semideusismo.

Os seguidores de Clarisse a saudaram com um rápido “Heil!” de braços erguidos, antes de a garota continuar:

– Para preservar a pureza dos filhos de Ares, o termo “meio-sangue” está agora entre nós abolido. Nos dirigiremos uns aos outros apenas como semideuses, poderosos e invencíveis como somos. Isso não impede, porém, que vocês, filhos das divindades de segunda categoria, juntem-se à nossa causa. Basta que renunciem aos seus antigos modos de vida e adotem o Nacional Semideusismo como objetivo. Quem discordar, que não se coloque em nosso caminho. Desavenças de ideologia podem ser resolvidas na arena, caso algum de vocês se ache capaz de nos enfrentar...

O silêncio dominou os ouvintes enquanto Clarisse mais uma vez percorria os chalés com a visão em busca de opositores – sem perceber que, junto à antiga morada dos filhos de Poseidon, agora Soviete Meio-Sangue, uma figura olhava tanto para ela quanto para a bandeira com as espadas cruzadas de um modo que faria até a filha de Ares gelar.

Percy Jackson fechou os punhos. Acima dos anarquistas e liberais, teria de dar um jeito naquele bando fascista. Nem que tivesse de transformar a quadra de vôlei do Acampamento na própria Stalingrado.

Glossário:

Sovietes: Na Revolução Russa, eram grupos de trabalhadores, organizados em conselhos, com a função de administrar coletivamente a produção de cada região, além de servirem como órgão político para tomada de decisões. Daí veio o nome “União Soviética”.

Martelo e foice: Um dos principais símbolos do comunismo, representando a união dos trabalhadores da cidade (martelo) e do campo (foice).

Heil: Palavra do alemão significando “Salve!”, usada como saudação. Ficou mais conhecida pela forma “Heil Hitler!” (Salve Hitler!) durante o nazismo.

Stalingrado: Cidade da Rússia, hoje chamada Volgogrado. Foi palco, entre 1942 e 1943, de uma das maiores batalhas da Segunda Guerra Mundial, entre Alemanha e União Soviética, ou seja, fascismo contra comunismo. Os soviéticos venceram, marcando a primeira grande derrota alemã no conflito, e o início do caminho para que Hitler perdesse a guerra.


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