The Walking Dead - Rio de Janeiro/ Temporada II escrita por HershelGreene


Capítulo 14
Capítulo XIV - Gabriel


Notas iniciais do capítulo

No capítulo anterior:
Enquanto o resto do grupo começa a se acostumar com a nova vida no parque, Clara e as outras garotas enfrentam sérios problemas numa missão de suprimentos.



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O último mordedor se aproxima em passos trôpegos pela rua, babando uma gosma preta com metade do rosto desfigurado por mordidas e arranhões. Gabriel desfere um golpe certeiro contra a testa do cadáver, mas o osso duro do crânio repele a lâmina. O facão escorrega pelos dedos do garoto e quica para longe. Ele pragueja e puxa a pistola, apontando o cano para dentro da boca do mordedor. Os dentes podres se quebram contra a arma numa tentativa fútil de engoli-la. Gabriel espera, por uns dois segundos, antes de destravar a pistola e afastar a cabeça do ruído.

O corpo do mordedor desaba no asfalto antes que seus dedos sequer toquem o gatilho. Gabriel vira o rosto e descobre a figura de Sarah, segurando uma faca ensanguentada sobre o corpo. Ele suspira, sorri para ela e levanta o polegar. Ambos riem.

Estão naquela rua há quase meia hora, lutando contra um grupo que se formou nas cercas do parque. Foram cinquenta só naquele dia, e o Sol ainda se apresentava no meio da tarde. Além disso, uma chuva interminável desabava sobre a cidade, provocando enormes poças de lama e lixo.

– Estão se juntando mais a cada dia que passa – comenta Sarah, caminhando de volta para os portões principais ao lado de Gabriel – Daqui a pouco, teremos que vedar as cercas, senão enfrentaremos uma centena ou mais!

A chuva se intensifica, provocando pingos mais fortes e gelados. Gabriel sente o cabelo escorrer pela testa e formar uma cortina ao redor do rosto. Está molhado, mesmo dentro de uma capa de chuva e seu moletom puído. Há água até dentro de seus sapatos.

– E essas chuvas intermináveis! – voltada a dizer Sarah, abrindo os braços para o céu cinzento – Nunca para! Faz chuva, faz Sol, faz chuva! Mas que merda! Foda-se essa cidade e seu clima de merda!

Gabriel continua calado. O barulho aquoso que seus pés fazem ao caminhar é o único som que realmente está prestando atenção.

– Você não é muito de falar não é?

O som de ferro raspando livra Gabriel de responder. O portão principal do parque se abre e Bernardo surge, sorrindo e molhado. Ele corre para abraçar o irmão, mas Gabriel interrompe o ato largando uma sacola pesada nas mãos da criança.

– Abraços depois – diz ele – Leve isso para o doutor e diga que foi o que conseguimos no hospital da esquina. Não revistamos todos os andares, mas tem aí o suficiente para algumas semanas, entendeu?

– Sim – responde o garoto, visivelmente magoado pela falta de carinho – Mas estou guardando o portão agora, não posso deixá-lo!

Sarah entra na conversa.

– Nós assumimos seu cargo – diz ela, sorrindo – Entregue os remédios e pode ir brincar com o Yan, se quiser.

Bernardo concorda com a cabeça, dá meia volta e sai correndo pela rua interna do parque até o museu, parado sobre sua pequena colina. Gabriel e Sarah terminam de fechar os cadeados que protegem o portão e seguem uma vistoria pelas cercas frontais.

– Você poderia tentar ser mais amigável – reclama Sarah, afastando os cachos molhados dos olhos.

– Por favor, sem dizer nada, okay?

– Não me manda calar a boca! Não estou dizendo nada idiota ou coisa errada. Você mudou sim! Está distante de todos, aceitando todas as rondas de vigília apenas para ficar sozinho! Não é mais o Gabriel que eu conheço.

Ele se vira para ela, com ódio pleno nos olhos escuros.

– Você não me conhece! Não sabe de porra nenhuma! – grita Gabriel. Sua voz ecoa pelo gramado e as ruas externas.

Sarah abre a boca, chocada, como um estúpido peixe de aquário. Ele tenta gritar outras palavras, extravasar a resposta, mas nada consegue sair. Um nó de palavrões e xingamentos se formou em sua garganta. Ele desiste, vira as costas para a garota e sai andando pela chuva em passos rápidos e pesados.

– Espera aí porra! – grita a voz dela, um pouco distante – Acha que pode gritar na minha cara e sair andando assim!

Gabriel não responde. Seus pés desistem de subir a colina do museu, então ele gira para a esquerda e contorna o lago pela outra margem, passando pelo estacionamento vazio e uma vala vazia onde costumava existir um pequeno rio. Os passos apressados da garota o seguem de perto.

– O que eu não conheço? – pergunta ela, apressando o passo para acompanhá-lo – O que você sabe que eu não?

A caminhada continua em silêncio durante um tempo. A chuva fica ainda mais forte, atingindo o chão com a força de metralhadoras. Gabriel puxa o capuz do moletom e esconde o rosto.

– Você não sabe nada – diz ele, depois de certo tempo, controlando a raiva em voz baixa – Você não sabe o que passamos e o que aconteceu conosco.

A garota põe a mão em seu ombro e ambos param sob um pequeno grupo de árvores no lado sudeste do parque. Sarah o encara com delicadeza, e a raiva se esvai, dando espaço para a dor.

– Então me conte – diz ela, levantando seu queixo com o dedo – Exploda comigo se quiser, mas me conte. Tudo!

Ele respira fundo durante um longo minuto, depois começa:

– N... Nós... Nós fugimos da escola naquela noite. Eu ajudei o Hugo com a perda dele, mas eu sofri muito mais. Ia pedir a Sophia em namoro naquela mesma semana. Sabia que Hugo também gostava dela e que ia causar certo distúrbio em nossa amizade, mas eu estava apaixonado. Então ela morreu, e eu tive que carregá-lo pelo ombro, ser forte por ele e o Bernardo. Não derramei a porra de uma lágrima sequer! Passamos o resto do mês no apartamento do antigo diretor e Hugo acabou ganhando espaço, superando o luto e encarando o mundo que nos rodeava. O mesmo mundo em que eu acreditava e que ele dizia ser invenção! Eu o instrui neste caos completo que invadiu a porra do planeta! Então nos envolvemos com militares e com uma busca pela presidente. Silas enlouqueceu no caminho, e xingou meu irmão na minha frente. Eu queria matá-lo naquela hora, mas Hugo fez primeiro! O grande herói defendendo a criança indefesa! Voltamos para as ruas e habitamos o Copacabana Palace.

– Vocês fizeram o que?!

– Não me interrompa agora porra! Enfim, havia segurança lá e os dias se tornaram melhores. Passamos o resto do ano lá, até que a comida ficou escassa. Éramos um grupo grande e as buscas pelas redondezas estavam cada vez mais escassas. Meu estômago doía e ver meu irmão esfomeado me dava vontade de chorar quase todo o tempo. Mas Hugo não chorou por fome, então eu também não. Saímos um dia para buscar comida, só eu, ele, Clara e Bruno, um aluno do ensino médio. A coisa deu errado no caminho e fomos aprisionados por um grupo de psicopatas assassinos que moravam num shopping. Queimaram Bruno na nossa frente e nos prenderam numa sala de cinema. Quis chorar por Bruno, estávamos ficando amigos, foi muito ruim ver o jeito como ele se de... debateu quando o fogo... ele...

Gabriel abaixa a cabeça. Uma única lágrima escorre pela sua bochecha e se junta com a chuva que desaba sobre os dois.

– Enfim, eles nos torturaram para descobrir a localização do nosso acampamento. Hugo nada disse, muito menos eu. Então Clara revelou o segredo do Copacabana Palace, e eu quis matá-la, machucá-la pelo que tinha feito. Veja bem, os outros, incluindo meu irmão, não tinham armas suficientes para enfrentarem nem um grupo grande de mortos, imagine loucos armados! Mas Hugo permaneceu intacto, como uma figura esculpida na pedra, então eu também me mantive. Saímos do shopping com novos aliados e um desejo sanguinário de vingança. Voltamos ao hotel, ou as ruínas que haviam sobrado, mas reencontramos todos vivos. Tinham ganhado a investida, mesmo sem saberem do motivo. Foi ali que Hugo se proclamou líder do grupo, mesmo ninguém tendo votado nele. E eu acreditei que, com essa idéia de guerra e aniquilação de grupos, podíamos tomar o shopping e viver lá, continuar a vida, algo bom e saudável para o meu irmão! Fomos até lá, armados até os dentes e com um plano tático digno de exércitos e... e...

– Vocês perderam?! – pergunta Sarah, com os olhos assustados e chorosos.

– Acho que nenhum de nós chegou a vencer realmente. Foi tudo tão confuso. Havia muita fumaça, e os tiros vinham de lugar nenhum. Vi pessoas morrerem naquele dia, amigos e inimigos. Mas ainda mantive a esperança que talvez pudéssemos reverter tudo ali! Reconstruir as portas e as lojas, abrir espaço para outros sobreviventes, criar uma colônia! Enfim, o fogo consumiu o shopping, e eu me vi sozinho de novo no mundo, com Hugo e Bernardo. Éramos os únicos sobreviventes. Passamos fome de novo, e principalmente sede. Então Hugo deixou a liderança de lado e parou de tomar decisões. Sentia-se culpado pelos acontecimentos, e era mesmo! Assumi o trio. E então retornamos para a escola e tudo estava tão diferente! Quando olhei a primeira vez, me senti imensamente envergonhado e pensei: “Fugimos antes de todos, porque fomos covardes. Não lutamos para reconquistar a escola na primeira noite. E então ela ganhou e recriou suas muralhas, enquanto morríamos de fome lá fora”!

– Nós fugimos também! – interrompe Sarah, tirando o cabelo molhado da testa – Abrigamos o resto dos sobreviventes nos prédios ao lado e reconquistamos a escola só um mês depois! Mas enfim, o que está tentando me dizer com tudo isso?

– Mas vocês ficaram! Adotaram esperança e ela retribuiu o favor! Eu mantive minha esperança intacta a porra do ano inteiro e só perdi pessoas! EU TINHA ESPERANÇA EM TUDO, E TUDO SE DESFEZ EM CINZAS AO MEU REDOR! E então eu acreditei naquela colônia, e os militares vieram logo depois! QUEIMARAM TUDO! FOI ENTÃO QUE EU PERCEBI QUE O CULPADO NÃO ERA EU! NÃO PODIA ME CULPAR POR CRIAR ESPERANÇA, TODOS OS HUMANOS CRIAM! O VERDADEIRO CULPADO ERA QUEM QUEIMAVA TUDO! E HUGO SE ENCAIXA BEM EM TODOS OS PAPÉIS!

– Gabriel controle-se, por favor! – pede Sarah, apontando para as cercas.

– NÃO QUERO ME CONTROLAR PORRA! TODOS FICAM POR AÍ BATENDO PALMA PARA ELE SÓ PORQUE ELE ASSUMIU ESSE BANDO DE MERDAS! COLOCAM SUAS VIDAS NA MÃO DELE PORQUE ACHAM QUE ELE SABE O QUE FAZ! HÁ UM ANO HUGO SÓ SABIA DE MATAR AULA E VISITAR O DIRETOR! COMO CARALHOS ALGUÉM DEPOSITA SUAS ESPERANÇAS NUM SER HUMANO ASSIM! EU FUI TOLO, DEPOSITEI A MINHA TAMBÉM! PERDI SOPHIA, BRUNO, FELIPE, AMANDA, PEDRO, E OUTROS! IMAGINE QUANTOS MAIS ELE TAMBÉM VAI DEIXAR PARA TRÁS! PORRA!

O discurso termina com um soluço engasgado de Gabriel. As lágrimas quentes de raiva escorrem silenciosas junto com a chuva. Sarah dá um passo até o garoto e o abraça, e ele chora no ombro dela durante um longo tempo. Ambos nem se mexem. Passam-se vários minutos, ou apenas um longo. Quando se soltam, Sarah já decidiu o seu lado.

– Estou contigo! – diz ela, limpando as lágrimas de Gabriel – Acredito em tudo o que está me contando e apostaria todas as minhas esperanças em você, não nele. Além disso, eu me lembro da noite em que saímos da colônia. Você ao menos tentou salvar aqueles reféns, e Hugo o impediu. Você é um líder melhor do que ele Gabriel, ponha isso na cabeça.

Gabriel agradece com um gesto simples.

– Precisamos bolar um meio de virar o resto do grupo contra ele – continua ela – Precisamos separar os mais fortes de perto dele. Os dois irmãos, eles são sua maior ameaça. Fortes e leais. André também dará trabalho, mas posso usar os avós como ponto fraco. Alice e os outros apresentam tanto perigo para você quanto uma banana.

O garoto a olha com experta, e um fino sorriso nos lábios.

– Podemos plantar uma armadilha ali mesmo, entre os mais fortes. Hugo cai, e então podemos expulsá-lo junto com o casal de irmãos.

– Hugo não pode ser expulso. Ele só sai do grupo morto.

Sarah se afasta, chocada. Gabriel mantém o olhar frio nos da garota por um tempo. São novos tempos agora, onde a morte de inocentes não é algo monstruoso. É sobrevivência. Leva um tempo, mas ela cede.

– Okay, tudo bem. Faça o que tiver que fazer! Vai matar os dois irmãos também?

– Só o Junior. Se tirarmos ele e o Hugo, Clara não terá aliados.

– Ótimo. Pretende matá-los quando, e como?

Gabriel roda em círculos, pensando durante alguns poucos minutos.

– Decapitação! Podemos prendê-los e reunir o grupo em...

– Não! – corta Sarah, chocada – Seria repugnante, e podem ser rebeldes se souberem que você é o culpado! Leve-os numa missão e finalize o serviço longe daqui. Podemos inventar uma mentira. Talvez ambos tenham sido mordidos, ou se sacrificaram para te salvar.

Os olhos de Gabriel se iluminam.

– Isso aí, garota! – grita ele, socando o ar de felicidade – O GRUPO É NOSSO EM MENOS DE UMA SEMANA!

– Shh... Fale baixo! – alerta Sarah – Podem te ouvir do museu.

– FODA-SE ELES! POSSO LIDAR COM ELES QUANDO ASSUMIR!

O rosnado habitual dos mortos se torna mais grave. Com um único e silencioso minuto de compreensão, Gabriel percebe que despertou o bairro inteiro contra as defesas do parque, mesmo com a voz abafada pela chuva. Agora, mais de uma centena de mordedores esfomeados marcha em direção à Quinta da Boa Vista.

– Caralho... – comenta ele, observando as ruas externas se tornarem cada vez mais povoadas – Estamos realmente...

– Muito fodidos! – termina Sarah.

Eles sacam as pistolas e as facas e caminham em passos rápidos até o portão mais próximo, ao sul do museu. Alguns poucos já se agruparam nas cercas, mas o triplo disso se aproxima pelas ruas, passarelas e esquinas. Um grito distinto corta o barulho da chuva e Gabriel percebe, com uma exclamação de horror, que os outros portões também estão sob ataque.

– Ah merda! – exclama Sarah, cruzando o estacionamento sul com em alta velocidade.

– O que foi?

– Deixamos a entrada principal desprotegida – responde ela – Se ela se abrir, estaremos em perigo aqui dentro.

– Lidamos com esses daqui, depois partimos correndo para lá – diz ele, atirando pela primeira vez contra uma fêmea ossuda nas grades – Se já estiver ferrado, eu pego o Bernardo e nós saímos daqui, okay?

– Okay!

Gabriel é o primeiro a alcançar o portão. Quando Sarah finalmente cruza o estacionamento sul, o garoto já está com a pistola em mãos, apontando diretamente para a multidão que força as barras de ferro. Duas das três correntes já haviam cedido com a investida.

– Mantenha a arma levantada! – grita Gabriel, fazendo sua pistola rugir balas contra a multidão – Quando eu contar até três, dispare sem poupar!

Sarah acena em concordância. Respira fundo, tira a pistola do coldre improvisado e a destrava. Alguns segundos se passam. Ela respira outra vez, sentindo o suor se misturar com a chuva e escorrer por suas costas.

Gabriel levanta o primeiro dedo.

Respira novamente. O rugido dos mortos e a chuva param de fazer barulho. Tudo o que consegue ouvir é o interminável batuque da pistola ao disparar e o som aquoso do projétil acertando os crânios podres.

Ele levanta o segundo dedo.

Sarah afasta os cabelos dos olhos uma última vez e levanta o cano.

O terceiro dedo vai ao ar, e o portão se abre.

Uma explosão extraordinária, como um raio atingindo o parque, ecoa pelos gramados. Uma avalanche de mordedores jorra para o estacionamento sul, dezenas de braços podres erguidos e mandíbulas negras de podridão estalando de fome. Os a adentrarem são totalmente esmagados pelo resto da horda, deixando um rastro de sangue escuro e baba preta no asfalto manchado. Tudo isso acontece com rapidez surpreendente, apenas uma fração de segundo e cinquenta deles já marcham para o interior das cercas.

Gabriel começa a atirar. Sarah segue seu exemplo. Sua pistola vibra a cada disparo e começa a esquentar. Um tinido irritante chacoalha seus tímpanos, mas ela se obriga a ficar ali, a continuar atirando. Eles se movimentam para a direita, levando a investida de mortos para o agrupamento de árvores onde tinham conversado antes. O chão vai se enchendo de rastros de sangue a cada passo.

– Tenho só mais alguns cartuchos! – grita Gabriel por cima dos sons de tiroteio e do rosnado esfomeado incontrolável do inimigo – E você?

– Um só!

Os mortos se espalham pelo gramado molhado de chuva como um vírus, tomando cada pedacinho dele. A cada um que Sarah consegue acertar na cabeça, cinco ocupam seu lugar. Gabriel se afasta dela e reparte a horda em dois, levando a maior parte consigo para o interior dos bosques. A garota sorri, ainda acreditando em seu laço de aliança com ele.

Sua arma estala o ruído oco de pente vazio, e Sarah solta um palavrão em voz alta quando o resto dos mordedores ao redor se aproxima perigosamente. Ela libera a lâmina de seu facão e se põe na defensiva, esperando o momento certo para dar o bote.

Três segundos se passam. Sarah levanta o facão e ataca.

Sua primeira vítima é uma mulher nua com metade do seio esquerdo carcomido, provavelmente uma das prostitutas que circulavam o parque. Ela insere a lâmina entre os olhos do cadáver e o crânio racha sob o ataque. Os olhos leitosos desfocam e o corpo cai com força numa poça de lama. O segundo – um policial com as tripas expostas – abre os braços e tenta agarrar o cabelo da garota. Ela se movimenta rápido, indo de um lado para o outro, confundindo os cérebros afetados dos mortos ao redor. Com um lampejo de aço, o policial desaba no chão com um jato de sangue e fluido cerebrais. Sarah gira o corpo, mudando a faca de mão e afundando a lâmina acima da orelha de um terceiro cadáver. O quarto se aproxima, e ela o derruba junto ao quinto e o sexto. Não faz diferença. A horda nunca parece diminuir.

O décimo quarto cadáver – e último – é o de uma senhora extremamente obesa usando um enorme vestido de flores manchado de sangue e baba preta. Sarah não a percebe, está ocupada demais lutando contra os treze primeiros. Os sons dos tiros distantes de Gabriel, os jatos de sangue cruzando o ar e a chuva abafam os passos do cadáver imenso enquanto ele se aproxima, estalando os dentes negros ao ver o pedaço de carne exposto da nuca de Sarah.

A garota termina de derrubar o último mordedor ao seu redor. Ela sorri e cospe, alheia ao perigo, limpando o sangue das mãos e do rosto. Quando finalmente escuta um galho estalar, é tarde demais. Uma sombra já tomou conta de tudo ao redor. Sarah só tem tempo de erguer as mãos em defesa e esperar o chão se juntar às suas costas.

As duas caem sobre uma poça enorme de lama e terra, numa confusão de sangue, baba preta e chuva. A garota consegue afastar o pescoço da mordedora com as mãos enquanto abre os cotovelos para se proteger das mãos podres que querem agarrá-la. Seu pulmão, esmagado pelo enorme peso, começa a gritar por um pouco mais de ar. Ela tenta agarrar o cabo da faca, mas seus dedos só encontram terra e lama. Baba preta escorre pelos lábios da obesa e pinga na boca de Sarah, e o vômito sobe queimando pela garganta. Com um único gesto – seja por instinto ou apenas puro nojo – a garota consegue chutar e rolar a senhora obesa de cima de seu corpo, e o ar volta como um tiro para dentro de seu peito. Sarah levanta-se, tonta e imunda de lama, chiando ao respirar. Suas mãos, trêmulas do susto, encostam-se a uma pedra largada no gramado, e é ela que a garota usa como arma.

Sarah ergue a pedra com as duas mãos e esmaga o rosto da obesa com um único golpe. Depois, ela vira o rosto e vomita tudo o que pode.

Gabriel já está de volta quando termina de pôr para fora todo o seu almoço. Ele alevanta, com delicadeza, e planta um pequeno selinho nos lábios de Sarah. A garota se vira, enjoada, e vomita mais um pouco, soluçando ao terminar.

– Está tudo bem agora – diz ele, abraçando-a – Os mortos se foram, e ainda tenho duas balas no meu pente. Podemos assumir tudo isso ainda hoje, matando Hugo e Junior assim que pisarem novamente neste parque!

Sarah levanta a cabeça e concorda com um aceno. Um pequeno sorriso se forma nos lábios da garota. Ia ser tudo diferente, a partir daquele momento.

No segundo seguinte, Sarah volta ao chão. A mordedora obesa, ainda viva, agarra a barra do jeans da garota e a puxa com uma força sobre-humana. O mundo gira incontrolavelmente e a poça de lama volta a beijá-la no rosto. Gabriel está caído a poucos centímetros dela, ainda com a mesma expressão de susto estampada no rosto. Sarah assovia para ele e indica com a cabeça a mordedora agarrada a seus pés. Gabriel compreende de imediato e começa a remexer na poça atrás da faca.

Sarah chuta a cabeça da mordedora com a perna livre, mas o esforço de nada vale. Ela continua presa em sua perna, arrastando o corpo enorme pela poça de lama atrás da carne no tornozelo da garota. Sarah se debate, espalhando água em todas as direções, visivelmente em pânico. A senhora obesa aproxima seus dentes da perna de sua perna, e seu grito de desespero acorda metade do mundo.

– Não consigo achar a faca! Não consigo achar a porra da faca! – grita Gabriel em algum ponto à direita – Segure firme aí, vou voltar com ajuda!

– Você tem uma pistola! Com duas balas ainda porra! – grita Sarah, acertando um chute na boca da obesa. Os dentes se quebram sob a sola de seu tênis – Atira logo nessa desgraçada!

– Mas... mas... mas elas já tem dono! – grita Gabriel em resposta – São para Junior e Hugo, lembra?! Você concordou com o plan...

– Foda-se o plano! Arrumamos mais balas depois! Mata logo ela porra!

Os dentes se afundam na carne de Sarah e a garota solta um grito desesperado de pura dor. No momento seguinte, a arma de Gabriel dispara.

A bala perfura a testa de Sarah com um jato de sangue misturado com a chuva. O grito se silencia, engolido pelo som da chuva inquietante e da mordedora obesa aproveitando a carne disponível.

– Fraca – diz Gabriel, quase sorrindo.

Ele permanece ali parado durante mais alguns minutos, vendo a obesa arrancar e mastigar a coxa de Sarah, pedaço por pedaço. É algo tão esquisito, ver um cadáver parado, sem ligar para o resto do mundo, preocupado apenas na comida, como se estivesse em transe. Gabriel agacha e fica encarando os olhos brancos leitosos, tentando ver ser existia um relance de consciência humana por trás daquilo, só um pequeno vislumbre. Nada.

Um novo coro de gemidos esfomeados levanta Gabriel num salto. Uma nova investida ultrapassa os portões abertos, quase o triplo da anterior. Ele lança um último olhar para a senhora obesa e seu jantar, depois dá meia volta e sobe a colina até o museu.

O pôr-do-sol escondido pelas nuvens acinzentadas colore os gramados ao redor do parque com um tom de laranja profundo, que se mistura bem com a chuva fina que cai sobre a cidade quando Gabriel finalmente alcança as portas do museu. Ele as abre com delicadeza, perguntando por alguém. Do nada, todos os outros integrantes do grupo surgem da escuridão bolorenta.

– O quê diabos está acontecendo lá fora, menino? – pergunta a avó de André, cujo nome Gabriel não quis gravar.

– O portão norte caiu – conta o fazendeiro chefe da família, Bento – Estávamos todos lá. Ouvimos você gritando e fomos a sua procura. Estava tudo tomado quando voltamos.

– O sul também – revela Gabriel, provocando suspiros assustados das mulheres.

– Não sabemos dos portões principais – conta o outro idoso, marido da primeira – Quem estava de guarda lá?

Bernardo abre a boca para responder, mas o olhar do irmão o silencia de primeira.

– Sarah estava – responde Gabriel, sem pena na voz – Está morta, e os portões também se abriram.

O grupo explode em conversas nervosas e rezas em voz baixa.

– Parece que estamos presos aqui então – comenta Bento, andando até uma das janelas – Temos que reforçar as entradas por um tempo.

Gabriel concorda com um aceno e se aproxima do fazendeiro e da janela.

Os campos antes verdes agora estão salpicados por dezenas de pontos pretos em movimento, uma horda dominante de cento e cinquenta cadáveres. Uns sobem a colina até o museu como se soubessem a localização e pessoas, mas o resto manca pelos gramados sem rumo ou direção fixa.

– Peguem o máximo de armas brancas que puderem reunir – ordena Gabriel, tomando a liderança do grupo – Distribuam as armas de fogo em quem souber atirar. Balas só quando muito necessário. Eles estão em maior número, sim, mas dispersos. Se agirmos com silêncio e cautela, podemos retomar o parque antes do amanhecer e...

Um lampejo de luz distante chama a atenção de Gabriel. Dois faróis surgem na entrada do parque, e depois se apagam, revelando um caminhão de mudanças parado aos portões principais.

– Parece que a ajuda chegou! – grita Bento, comemorando.

O sorriso de Gabriel murcha. Depois, surge novamente. Afinal, ainda lhe resta uma bala.


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Notas finais do capítulo

No próximo capítulo:
De volta ao parque, Junior e o resto do grupo precisam avaliar se realmente vale a pena ficar ali. Um plano perigoso é posto em prática.



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