Upside Down escrita por Lirael


Capítulo 8
Vida real




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/553030/chapter/8

Soluço corria, mas não saía do lugar. Atrás de si, o dragão Morte Rubra rugia, ameaçador, cuspindo fogo para o alto. Cadáveres e mais cadáveres espalhados pelas pedras. Ele conhecia todos pelo nome, tanto dragões quanto vikings. Ele olhou em volta enquanto corria, procurando por sobreviventes até que bateu em algo sólido. Astrid quedava-se diante dele, com uma expressão vazia no rosto. Ele arquejou de susto ao vê-la, mas ao menos havia alguém vivo em meio ao caos.

– Astrid! Que bom ver você! Está ferida? Eu...

– Você não pôde me proteger. - ela falou em um tom frio, e de repente todo o seu rosto estava coberto com sangue.

Soluço gritou e correu, mas seu pai apareceu diante dele, com o rosto sério e compenetrado, encarando-o com olhos glaciais.

– Você não pôde proteger Berk. - disse, e a imagem da ilha e das casas desaparecendo em nuvens de chama e cinzas surgiu diante dele.

– Não! - Soluço gritou, ao ver a forja queimando e Bocão ensanguentado e morto.

Então, quando pensou que nada poderia ficar pior, Banguela surgiu diante dele. Um machado enorme estava cravado em um dos lados de sua cabeça e apenas um de seus olhos verdes estava aberto. O outro estava fechado devido ao sangue que escorria do ferimento. A voz de Estóico ecoou outra vez em sua mente.

– Você não pôde protegê-lo.

– Não... - Soluço chorou, em uma ladainha interminável, adiantando-se para tocar em Banguela, para abraçá-lo, mas o dragão se desvaneceu em cinzas quando ele se aproximou muito. -Não não não não não não...

Então os passos atrás de si o fizeram virar-se e o grande Morte Rubra estava imóvel, diante dele, fixando-o com seus vários pares de olhos. Ele expirou uma baforada de ar quente e Soluço caiu de costas nas pedras. O dragão soltou um rosnado ensurdecedor, abaixou a imensa cabeça na direção dele e comeu-lhe a outra perna. Soluço gritou de dor e desespero, antes de ouvir a voz de seu pai uma última vez.

– Você não pôde proteger a si mesmo.

Então o Morte Rubra devorou-o.

Acordou aos berros, transpirando e tremendo. Olhou em volta e viu Banguela, encarando-o com curiosidade. Suspirou e tentou acalmar sua respiração. Desde o incidente com o Morte Rubra, de vez em quando esses pesadelos voltavam e assombravam suas noites. Nunca contara, mas ele sabia que Estóico sabia. Como não poderia saber se ele acordava no meio da noite, gritando tão alto que poderia acordar os mortos? Ele riu para si mesmo. Herói de Berk. A vida real não é como nas histórias. Nas lendas, coisas más acontecem e a medida que o conto se desenrola e chega ao seu fim majestoso, é como se as coisas ruins nunca tivesse realmente acontecido. Nas histórias, o herói tem seu final feliz, não tem pesadelos com seus inimigos, casa-se com a princesa e ela não tenta enfeitiçá-lo, por que o ama. A vida real não é tão simples assim. Algumas coisas não podem ser esquecidas facilmente e as lembranças deixam cicatrizes, por vezes dolorosas.

Soluço respirou fundo, olhando pela janela. Ainda estava escuro, provavelmente era madrugada. Ele se deitou outra vez e adormeceu, dessa vez sem nenhum pesadelo.

_______

Merida estava deitada em sua cama, em seu quarto. Era outra vez uma garota e vestia uma camisola longa. Puxou os cobertores até o queixo, grata pelo calor que forneciam. Como tantas noites antes daquela, sua mãe entrou no quarto e Merida sorriu para ela. Elinor aproximou-se de sua cama e se sentou ao seu lado, segurando sua mão.

– Eu te amo, minha menininha valente. Tenha bons sonhos.

– Eu também te amo, mãe. - disse sorrindo.

Elinor inclinou-se para lhe deixar um beijo na testa, desejando-lhe boa noite. Merida fechou os olhos, com um sorriso nos lábios, mas o beijo não veio. Apenas sentiu a respiração da mãe, forte e quente sobre a sua pele. Franziu a testa e abriu os olhos. Seu sangue gelou com o horror de ver que, inclinada sobre ela, estava não sua mãe, mas uma gigantesca ursa, rosnando feroz e ensandecida. Ela sentiu seu hálito fétido e quente e gritou quando os dentes afiados cravaram-se com força em seu crânio.

Merida acordou sobressaltada, ao perceber que dessa vez, não eram os seus próprios gritos que a despertaram, mas os de outra pessoa, uma garota, no quarto ao lado. Ela demorou um tempo para se localizar, entender que não estava em Dunbroch e que aquele não era realmente seu quarto. Os gritos de Soluço pararam subitamente, e Merida inspirou profundamente, surpresa em perceber que estava prendendo o fôlego. Ela conhecia aquele terror dos pesadelos noturnos. Quando não era sua mãe que a atacava, era Mor'Du, mas não importava. O horror era sempre o mesmo e ela se perguntava se aquilo nunca passaria. A vida real não é como nas histórias. Nas histórias, as princesas eram sempre salvas por homens valentes e corajosos e não precisavam resolver a situação por si mesmas. No fim, as coisas se resolviam, ninguém tinha pesadelos com inimigos mortos e as pessoas se casavam por amor, não porque os pais as obrigavam. Se as pessoas brigavam, perdoavam-se e tudo era esquecido. Os dragões eram criaturas cruéis e os cavaleiros os matavam, jamais os montavam. Na vida real as coisas não eram tão simples. Não é fácil esquecer quando alguém o machuca, assim como não é fácil conviver com a culpa de ter ferido quem se ama. Essas coisas nunca se esquecem totalmente, sempre deixam algum tipo de marca, apesar de desvanecerem um pouco com os anos.

Merida sorriu consigo mesma ao pensar que ela e Soluço talvez não fossem tão diferentes assim. Em outro tempo, outra ocasião, teria gostado de conhecê-lo melhor, de ser sua amiga. Ele parecia ser uma pessoa gentil por trás de sua máscara de raiva. Se a vida tivesse lhe proporcionado uma chance, eles poderiam ter sido bons amigos. Mas a vida real não é como nas histórias. Ela enrolou-se em seu cobertor e adormeceu, caindo em um sono sem sonhos.

_______

Soluço acordou com uma dor forte e incômoda no baixo ventre. Rolou na cama e viu pelos raios de sol entrando nas frestas que já era de manhã. Resolveu que iria se levantar antes que Banguela se manifestasse. Não demoraria muito e o dragão apareceria, clamando por seu vôo matinal. Sentou-se, calçou sua perna mecânica, ajustando as tiras de couro firmemente contra a pele e se levantou, caminhando até a porta. Foi só então que se deu conta do desconforto úmido entre as pernas, da mancha enorme e avermelhada no tecido da calça. Ficou um bom tempo olhando antes de deixar sair o grito mais alto e apavorado de toda a sua vida.

Merida abriu a porta subitamente, esperando encontrar Soluço lutando pela vida por algum motivo, mas tudo o que ela viu foi uma garota corada e trêmula. Soluço afastou-se da porta, tão assustado e constrangido quanto só um rapazinho é capaz de ficar, se atrapalhando e enrubescendo. Tentou esconder a fonte de seu embaraço com um dos lençóis da cama, e com isso só fez chamar mais atenção para ela.

– O quê está... – ele balbuciou nervoso.

Merida ergueu as sobrancelhas ao notar qual era o problema e suspirou.

– Soluço, eu posso te ajudar com isso. - ela começou, com cautela.

– Não quero sua ajuda. Eu quero a Astrid. - ele negou com a cabeça.

– Então eu vou chamar a Astrid. Tudo bem para você?

Soluço não disse nada e Merida saiu para procurar Astrid. Mas antes de abrir a porta da sala, lembrou-se da recomendação de Astrid sobre não sair sozinha. Mas aquilo era diferente. Tinha um problema nas mãos, e Soluço estava assustado e confuso, da mesma maneira que ela se sentira antes que sua mãe se sentasse com ela e explicasse tudo. Ainda que ela mesma tentasse ajudá-lo, ele não a ouviria. Só havia uma solução. Tinha que se aventurar sozinha e encontrar Astrid. Respirou fundo e abriu a porta, atravessando-a com rapidez, para dar de cara com Banguela. A presença do dragão a tranquilizou. Ao menos não estaria sozinha. Seus dedos acariciaram a face de Banguela.

– Soluço está com um problema e precisa da ajuda de Astrid. Você me ajuda a achá-la?

Banguela soltou um rugido alto e Merida sorriu. "Falando com um réptil. Você deve estar mesmo muito desesperada, Merida." ela pensou. Ele era um dragão. Não compreendia o que ela dizia. Apoiou a mão no dorso dele e começou a caminhar em direção à aldeia quando um grande dragão azulado desceu dos céus, parecendo surgir do nada e atravessando seu caminho.

Merida apertou-se mais contra Banguela, incerta do que fazer, quando uma perna apareceu de um dos lados do dragão e Astrid escorregou para fora da sela, reclamando.

– Tempestade! Você me assustou! Se queria pousar, era só ter... - silenciou-se ao ver Merida do lado de fora. - Eu não tinha dito para não sair sozinha?

– Soluço está com um problema. - Astrid franziu a testa e se aproximou para escutar - Na verdade não é bem um problema.

Merida contou a Astrid as coisas de forma resumida enquanto elas entravam. Pararam na porta de Soluço e Astrid tocou-lhe o ombro, falando baixinho:

– Você fez bem em me procurar. Eu vou falar com ele. - fez uma pausa e bateu na porta. - Soluço? Abra. Sou eu, Astrid.

Merida pensou ter ouvido algo como “Graças a Odin” antes da porta abrir, mas não teve certeza. A rosto pálido de Soluço foi só alívio ao ver Astrid, mas fechou-se em uma carranca quando viu Merida parada junto com ela diante da porta. A mensagem era clara: ela não era bem vinda.

– Lamento que você tenha que passar por isso, Soluço. - Merida desculpou-se.

– Lamentar não resolve. - ele rebateu, prendendo seus olhos aos dela, forçando-a a desviar o olhar com a intensidade da raiva que viu neles. Astrid franziu a testa para ele, mas Soluço não viu.

– Não. - ela respondeu - Não resolve.

Ele fechou a porta quando Astrid entrou, sem dizer mais nada. Merida encostou-se a uma das paredes do corredor e escorregou devagarinho, até sentar-se no chão. De dentro do quarto, pôde ouvir Astrid conversando com ele baixinho, embora não pudesse entender o que dizia.

_______

Depois de ouvir as explicações de Astrid, Soluço sentiu-se melhor, embora não mais confortável. Teria que passar por aquilo todo santo mês? Como Astrid podia aguentar aquelas dores? Ele jamais tinha imaginado que passar por aquele ciclo era tão desconfortável para ela. Xingou-se mentalmente por todas as vezes que Astrid faltara à academia, alegando estar com “problemas de garotas” e ele achara que ela estava faltando aos treinos por preguiça. Astrid enrolou os lençóis manchados em um canto e sentou-se ao lado dele na beirada da cama.

– Soluço - ela chamou-o, mudando o rumo dos pensamentos dele.

– Sim? - ele respondeu, olhando-a nos olhos.

– Tem mesmo que ser tão rude com ela?

– Rude?

– O jeito como você a trata. Nunca te vi olhar para ninguém daquele jeito, nem mesmo o Melequento.

– O Melequento nunca tentou me transformar em uma garota.

– Não é isso que eu quero dizer. Ela é sua hóspede, afinal.

– Não, Astrid. Ela é minha refém. - Soluço a corrigiu, lutando contra a vontade de lhe dar uma resposta torta e sarcástica. - E não estou entendendo onde você quer chegar. Achei que estivesse do meu lado.

Astrid franziu o cenho.

– É claro que estou do seu lado. Como pode me dizer uma coisa dessas?

– Parece que você está defendendo o que ela fez. - ele disse, de olhos semicerrados e com a voz cautelosamente baixa.

– Bem, graças a Odin então que ela seja a única pessoa nesta ilha que já fez alguma coisa errada na vida! - Astrid exclamou, mal conseguindo manter sua voz abaixo dos gritos, erguendo-se da cama e levantando os braços, num gesto dramático. Virou-se para ele, com uma expressão carrancuda no rosto.

A seriedade no rosto de Soluço se desfez aos poucos, deixando-o com cara de quem tinha engolido alguma coisa que ficara engasgada no meio do caminho. Astrid não lhe deu tempo de se recuperar.

– De todas as pessoas desta ilha, você é a última de quem eu esperaria um comportamento assim. – ela acusou.

– O que quer dizer? - ele perguntou intrigado, com um pouco de medo da resposta.

– Quero dizer, Soluço, que entre todos nessa ilha, você talvez seja o que mais sabe o que é ser tratado pelas pessoas como um pária. Eu esperava um pouco mais de você, mas estou vendo que estava errada. - Astrid lançou-lhe um olhar duro, foi em direção a porta e saiu, sem dizer mais nenhuma palavra.

Soluço pensou um pouco no que Astrid dissera e o remorso começou a consumi-lo. Ele estava agindo igual às pessoas de Berk quando ele era não um herói, mas um estorvo. Pensou por tanto tempo em si mesmo como uma vítima, que se esqueceu de ver como Merida também devia estar sofrendo com aquela situação. Ela também se transformara, também usava um corpo que não conhecia, também estava assustada e também se defrontava com a chance de ter que ficar para sempre daquele jeito. E o pior: sozinha, em uma terra estrangeira, onde não tinha nenhum amigo que podia ajudá-la ou explicar a ela o que estava acontecendo e porquê. Ele se levantou, decidido a superar a raiva que sentia dela e tentar tratá-la, se não com cordialidade, ao menos com algum respeito. Mas parou depois de dar três passos e vê-la na porta, segurando uma bandeja. Havia um pote de mel, dois copos e um bule metálico, com um conteúdo fumegante. O que chamou a atenção dele foi o outro copo, que tinha dentro dele um pequeno ramo de flores silvestres. Merida encarou-o, de olhos arregalados, esperando o golpe que não viria.

– Astrid me pediu para lhe trazer isto. Vai ajudar com a dor.

Soluço sorriu, ciente de que Astrid nunca lhe mandaria flores. Ele retirou o ramo do copo, serviu chá para os dois, adoçou com mel e ofereceu um para Merida.

– Obrigado, Merida. - ele agradeceu, e por um instante, sua voz recuperou o tom gentil que ele usara com ela em Dunbroch. - Por que não toma chá comigo?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Achei que não daria tempo de entregar esse hoje, mas no fim deu tudo certo. Como passaram o Natal, comeram muito? Feliz Ano Novo para todos, e não façam promessas mirabolantes!