Upside Down escrita por Lirael


Capítulo 4
De cabeça para baixo




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Merida acabou se atrasando para o jantar na tentativa de lavar os cabelos para tirar o resto da saliva grudenta de dragão. Elinor lhe lançou um olhar severo assim que a viu, mas a princesa murmurou um pedido de desculpas e voltou sua atenção a Estóico e Fergus conversando animadamente na mesa.

– Mas eu pensei que os vikings estivessem em guerra com os dragões... - comentou o Rei Urso.

– E estávamos. - Estóico confirmou. - Por gerações, era tudo o que sabíamos fazer. Então Soluço nos mostrou que estávamos errados o tempo inteiro.

– Como? - perguntou Fergus, balançando distraidamente um pedaço de pernil.

– Por ser um péssimo viking. - comentou Soluço, com naturalidade.

– Por usar seus instintos em vez de seguir cegamente as tradições. Usar a cabeça para algo além de suporte para o elmo.

– Eu não tinha força suficiente para lutar contra um dragão, então construí uma máquina que derrubasse um. E deu certo. Mas quando o encontrei, eu não pude matá-lo.

– Por que não? - Fergus estava fascinado. O garoto tinha um ar inconfundível de autoridade quando falava, mas ao mesmo tempo, parecia bastante modesto.

Ele levou um momento para responder. Admitir que ele viu seu próprio medo em Banguela não era algo que ele queria fazer. Ele não queria dar a ninguém a ideia errada sobre o Fúria da Noite.

– Muitas razões. - ele disse finalmente. - Eu vi que ele era obviamente inteligente e que estava assustado. Nunca ninguém teve medo de mim antes e eu me senti mal com isso.

– Então o que você fez?

– Eu o soltei. Ele poderia ter me matado, mas não o fez. Eu voltei alguns dias mais tarde e descobri que ele estava preso em um vale na floresta, por que eu acabei cortando sua cauda ao derrubá-lo. Ele não podia voar. Então nós fizemos amizade e eu fiz para ele uma cauda artificial. - ele comentou, naturalmente.

O queixo de Fergus caiu. Ele fez amizade com um dragão. Era como se ele entrasse na floresta e convidasse Mor'Du para tomar chá e valsar. E como se o que ele fez não fosse o suficiente, o garoto falava como se fosse a coisa mais natural do mundo. Fergus começou a cogitar a possibilidade de que Soluço era pelo menos um pouco doido.

–E juntos eles descobriram por que os dragões vinham nos atacando e lideraram o ataque contra o Morte Rubra. - Estóico continuou, animadamente. Soluço parecia quase constrangido com o entusiasmo do pai. Estavam faltando algumas partes, omissões óbvias em seu resumo, a começar sobre o que era esse tal morte Rubra, mas Fergus sabia que os detalhes viriam eventualmente, apesar de odiar uma história inacabada.

Merida ouvia o relato de Estóico abertamente agora, as duas mãos entrelaçadas no queixo, olhando fixamente para Soluço. Aquele homem era cheio de surpresas. Sua sopa já estava fria agora, mas ela mal notara. Estava absorta demais nos olhos verdes do viking, tentando decifrar o quanto daquilo tudo era verdadeiro quando ele captou o seu olhar por um segundo. Merida piscou, encabulada, mas ele lhe deu um sorriso simpático, que a fez corar. Ela desviou o olhar para o outro lado da mesa só para ver sua mãe encarando-a com firmeza, com um sorriso indecifrável no rosto.

–Merida, querida, seu pai e Estóico tem alguns termos da Aliança para discutir. Por quê você não leva o Soluço para um passeio? - a rainha sugeriu, ao ver a oportunidade de deixar Merida e Soluço a sós para conversar. - Um passeio curto. - ela ressaltou.

Merida sorriu um sorriso tão largo e satisfeito que poderia ser chamado de maníaco. Ela esperava que executar seu plano seria muito mais trabalhoso, mas no fim, sua mãe acabara por facilitar as coisas.

________

A Lua agigantava-se acima deles, assim como o silêncio um pouco constrangedor. Não fora necessário ir até os estábulos chamar Banguela, um assovio curto da parte de Soluço e alguns minutos depois o dragão aparecera caminhando tranquilamente atrás deles. Soluço tinha a esperança de que, se convidasse a princesa para um vôo tranquilo o diálogo fluiria melhor entre eles. Uma rápida olhada de canto de olho revelou que ela parecia tensa, quase contrariada. Merida carregava o pequeno embrulho contendo o feitiço. A cada momento ela respirava fundo e tomava coragem, mas ela logo sumia instantaneamente. Já fazia um bom tempo de caminhada e os dois acabaram por chegar na borda da floresta, tão perto que apenas alguns passos a mais e eles seriam encobertos pelas árvores densas. Nenhum dos dois sabia ao certo o que dizer, chegando ao ponto em que aquela situação era tão embaraçosa que quando falaram, acabaram fazendo ao mesmo tempo.

– Você gostaria de... - Soluço começou, hesitante, na tentativa de oferecer um vôo noturno a ela, mas Merida o interrompeu bruscamente, estendendo os dois braços á frente do corpo, segurando um pequeno embrulho.

– Por favor aceite isso! - ela ofereceu, sua voz trêmula e alta soando mais como um coaxo.

Soluço deu um passo para trás para não ser atingido pelo movimento súbito me Merida, desviando por pouco do que seria um golpe dolorido na face. Banguela farejou o que quer que houvesse no embrulho e não pareceu gostar muito do que sentira, mas Soluço o empurrou gentilmente e apanhou o doce sorrindo para ela, achando uma gracinha a forma como ela corava e tentava não olhar para ele. "Deve ser algum costume escocês. Só espero não estragar tudo" pensou, enquanto desamarrava com cuidado a fita dourada que envolvia o tecido suave. Quando terminou, o aroma tentador do doce atingiu os dois, espalhado pela brisa. Soluço não podia se lembrar de alguma vez já ter visto um doce mais bem elaborado.

– Obrigado. - ele agradeceu, sem estar muito certo do que dizer, por medo de quebrar alguma regra de etiqueta - Você o fez?

Merida assentiu, mordendo o lábio, hesitante. Ela não conseguia parar de olhar para o doce, desejando que ele o mordesse de uma vez e acabasse logo com aquela angústia. Mas Soluço captou o olhar dela e interpretou de outra maneira. Suplicando aos deuses para não estar ofendendo sua noiva de alguma maneira que ele não sabia, ele estendeu a mão para uma faca afiada na perna e com muito cuidado repartiu o doce em duas partes iguais, estendendo uma para Merida e mantendo a outra para si.

A princesa encarou a metade do doce e seu coração foi parar nas botas. Ela não poderia negá-lo, pois se o fizesse, faria crescer a suspeita de que havia algo errado com ele. Talvez o viking pensasse que ela estaria tentando matá-lo envenenado ou coisa pior. Engolindo em seco, Merida aceitou-o. Talvez não acontecesse nada. O feitiço não era para ela, afinal. Pedira por um feitiço que impediria seu casamento, que mal faria em comer o doce? Os resultados viriam para o viking, não para ela. Respirando fundo, ela levou o doce aos lábios e provou uma mordida, ao mesmo tempo que ele. Tinha um sabor agradável, muito diferente do que ela esperava. Sua mãe dissera que o doce parecia azedo e amargo, mas essa outra versão tinha um gosto adocicado de geléia de frutas vermelhas no recheio. Soluço parecia ter apreciado também, pois deu uma segunda mordida, olhando para ela com uma expressão satisfeita.

– É muito bom, muito bom mesmo, Merida. Do que é que... - se interrompeu abruptamente quando uma onda de náusea se apoderou dele. o gosto amargo da bile inundou sua boca e de repente seu corpo começou a tremer violentamente.

Merida atirou o doce ao chão e tocou-lhe o ombro, um pouco nervosa.

– Soluço, você está bem? O que foi que... - ela parou também, ao ver que suas mãos também tremiam. Todo o seu mundo girava e ela viu Banguela duplicar-se em dois, depois em quatro e depois em oito dragões antes de cair, gemendo na grama macia.

________

Mesmo deitado, Soluço sentia tudo girando. Ele tentou sem sucesso apoiar um dos cotovelos no solo e se erguer, mas tudo o que conseguiu foi cair de novo. Forçou-se a respirar uma, duas, três vezes antes de tentar de novo. Na última vez, inspirou o ar lentamente, e recomeçou o movimento, sentando-se. Era engraçado como suas roupas pareciam estar mais largas. Sua visão estava escura, mas lentamente ele pôde distinguir os contornos das luzes do castelo... Precisava checar Merida. Pelo pouco que ele pôde notar, ela também havia passado mal. Se ele chegasse até ela, Banguela poderia ajudá-los a chegar ao castelo. Então uma violenta dor de cabeça em pontadas o atingiu e ele gemeu sem pensar, arregalando os olhos ao ouvir o som de uma voz que não era sua.

– Mas o que... - ele murmurou, com uma voz feminina e franziu a testa, confuso.

Alguns passos adiante, um gemido masculino se fez ouvir e Soluço tateou quase as cegas procurando a pequena faca com que partira o doce. Enquanto procurava sua visão voltou e ele apanhou a faca, empunhando-a contra quem quer que estivesse ali.

Mas só havia um homem, alto, ruivo e de porte atlético. E ele estava de vestido. Parecia um pouco tonto, assim como ele próprio, mas diferente dele, as roupas inadequadas limitavam seus movimentos. O estranho se levantou cambaleando e franzindo a testa com o esforço repentino.

– Ah minha cabeça... - ele grunhiu, com um tom de voz áspero e depois pareceu notar algo e olhou para as próprias mãos. Seus olhos se arregalaram quase a ponto de saltarem ao tocar o rosto e sentir os pelos da barba, descer para o peito plano e largo, e deixar-se cair, por fim em Soluço. Ao vê-lo, o estranho de vestido caiu de joelhos e cobriu o rosto com as mãos, abafando o que pareciam ser soluços.

– Não! Não! Não era isso o que eu queria! - ele chorou, sem nem olhar para Soluço em pé diante dele. - Ela me enganou, aquela bruxa me deu o feitiço errado outra vez!

Então Soluço que não era nada idiota, ligou os pontos e caiu em si. O doce, as histórias que ele havia se recusado a acreditar sobre uma rainha que se tornava um urso, as reações imediatas após comer o doce, sua voz estranha, o homem ruivo no chão, com um vestido igualzinho ao de Merida. Ele virou a lâmina da faca com a mão trêmula na direção do próprio rosto e gritou o mais alto que pôde ao ver que o reflexo desenhado na lâmina não era dele e sim de uma garota. Arquejando e tremendo ele afastou um pouco a camisa sobre o peito e gritou com a visão que teve.

Banguela se aproximou dele e o cheirou, observando-o curioso por algum tempo.

– Não... Não, isso não está acontecendo! Não pode ser verdade. - ele falou, numa voz que não era a sua.

Merida levantou-se o rosto masculino vermelho pelo choro e caminhou até ele, com uma expressão arrasada.

– Eu sinto muito... Eu não queria... Não era isso que eu queria...

A princesa agora era mais alta e mais forte que ele, mas isso não incomodou Soluço, que se aproximou dela (ou do que anteriormente tinha sido ela) com uma expressão de puro ódio no rosto.

– Sente muito? - a garota de olhos verdes rugiu - Sente muito? Que ótimo saber que você sente muito. Estou me lixando para os seus sentimentos. Desfaça isso agora antes que nos vejam assim e o pior aconteça!

– Eu não posso... - murmurou.

– Como pude ser tão idiota? - perguntou para ninguém em particular, andando em círculos, tomado por uma raiva cega - Como pude confiar em você? Nunca imaginei que uma princesa seria capaz de uma coisa dessas e...

– Espere um momento! - Merida interrompeu, subitamente furiosa. Ninguém jamais falara com ela daquele jeito - Acho que sou tão vítima da situação aqui quanto você! - explicou, apontando para si mesma.

– Cale-se! - Soluço gritou de volta, agitando o indicador furiosamente no rosto de Merida. - Vocês me tiram da minha ilha com uma proposta de casamento forjada e me fazem vir até aqui para passar por esse constrangimento e...

– Não! A proposta era verdadeira, meus pais não têm culpa de nada, eu planejei tudo sozinha! - ela tentou explicar, mas isso não fez nada para acalmar Soluço.

– Então é ainda pior! Isso significa que você não passa de uma princesa mimada e egoísta que só faz o que quer sem pensar em mais ninguém!

– Ouça aqui, seu bárbaro sem mãe e sem...

– Ouça você! Será que já parou para pensar nas consequências dessa sua brincadeira? O que acha que Estóico o Imenso vai fazer quando ver o seu único filho desse jeito? Será que pensou em quantas vidas estariam em jogo quando ele chamar seus navios e dragões de Berk e declarar guerra à Dunbroch? É claro que não pensou. Por que para você não importa minimamente, não é mesmo? Não faz diferença quem vive ou quem morre desde que você tenha o que quer. Por que eu fui tão ingênuo? - ergueu os braços para os céus. - Uma pessoa capaz de fazer algo assim com a própria mãe... E eu ia aceitar me casar com você! Tudo na esperança de manter a paz entre os nossos povos quando o que você queria era arruinar isso!

A cada palavra de Soluço Merida se sentia mais e mais culpada. Ouvir aquilo tudo a magoava muito, mas não era tudo verdade? Não tinha realmente arquitetado aquele plano, agido com frieza sem pensar nas consequências e arriscado lançar a paz tão duramente conquistada por seus pais embaixo das próprias botas como se fosse lixo?

– Eu não queria isso... De verdade... Eu só queria que você desistisse do casamento. Nunca quis machucar ninguém... - murmurou.

Soluço olhou para aquele homem enorme enfiado em um vestido e depois para si mesmo, no que antes foram suas roupas. Aquela situação toda poderia até se engraçada se ouvisse da boca de alguém, mas como estava acontecendo com ele, o humor lhe escapava de alguma forma.

– Ah, meus Deuses... Chega com isso. Vamos dar um jeito de sair daqui e explicar essa situação toda lá no castelo.

Os olhos de Merida se arregalaram:

– Você não pode! Eu sei que posso encontrar a casa da bruxa e reverter o feitiço, eu sei que posso! Só me siga e... - tentou convencê-lo, nervosa, mas parou de falar ao vê-lo erguer a mão para ela.

– E ficar outra vez sozinho com você nessa floresta escura? Não obrigado. Além disso está tarde, provavelmente deram por nossa falta lá no castelo e estão se perguntando se eu raptei a princesa... Ou pior. Vamos voltar e eu vou tentar consertar as coisas com o meu pai.

Merida apenas assentiu, resignada. Ao dar o primeiro passo o som do tecido rasgando-se nos quadris a fez gemer e Soluço revirou os olhos.

– Os deuses me odeiam.


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Notas finais do capítulo

Nossa, Lirael, mas que criatividade a sua! Nomear o capítulo com o nome da Fanfic traduzido! Huahuahua