Os Demônios de Mara escrita por Clementine


Capítulo 10
Capítulo 10




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/550879/chapter/10

Nunca estive fora deste hospital. Nunca vi o mundo além dessas portas. Conheço o estacionamento, conheço as ruas em volta só de olho, mas nunca estive em outro lugar. Nunca coloquei meus pés na grama, nunca andei de carro. Nunca fumei, nunca cantei, eu nunca nunca nunca fui mais do que um anjo mensageiro.
O primeiro passo que dou quebra minhas correntes e abre minhas asas.
Eu estive presa aqui por todo esse tempo, pensando que estava no Paraíso. Eu fui enganada, fui mentida, fui mandada e fui conduzida. Fiz o que tinha que fazer. Fiz o que me disseram pra fazer, por nenhum motivo além disso. Eu não tive princípios, não tive honra alguma. Obedeci e confiei neles cegamente sem pedir nada em troca.
Acho que seguiria nessa mentira por mais 100 anos, se John não tivesse aparecido. Eu ficaria ali, me contentando com curtos pensamentos, curtos vislumbres da realidade e nada mais.
Nunca sairia dessas portas. Nunca me revoltaria.
Eu nunca teria me libertado.

Quando saio pela porta da frente, o vento é a primeira coisa que percebo. Ele é como um véu, é como uma mão que segura meus rosto e com sussurros, leva tudo embora.
O peso de meu corpo é equivalente a uma pena flutuando no ar, a um floco de neve, a um grão de areia. Eu sou uma gota, sou sal nesse oceano sem água.
É tanto que mexe em meus cabelos, arrepia minha pele e me tira o fôlego.
Tiro um momento para observar que nunca me senti desse jeito antes. Que nunca respirei um ar tão puro. Que nunca enchi meus pulmões.

Não sei o que esta acontecendo comigo.

Sei que não é só sobre estar do lado de fora, pois já me debrucei em um milhão de janelas e senti a brisa assobiar em meus ouvidos.
É sobre mim. É sobre a pessoa que estou me tornando, que não é apenas um anjo.
Eu sou algo mais. Nem humana, nem anjo, nem demônio, nem assombração. Eu sou algo que nunca ninguém mais foi antes. Sou única, sou um floco de neve, com sua própria formação, e não há nenhum igual ao outro.
Sou especial. Eu sou diferente.

John não esta impaciente. Ele me da todo o tempo do mundo, todo o tempo que tem, e eu sei que se eu levasse 100 anos para saborear aquela brisa, aquela primeira respiração que enche meus pulmões de ar, ele me esperaria. Esperaria milhares e milhares de anos até que eu terminasse, até que o sol se posse, até o dia voltar a nascer outra vez. A lua daria voltas na Terra e voltas em si mesma e estaríamos plantados nessa porta experimentando algo que eu nunca experimentei.
Liberdade.

Dou um passo a frente. Um passo para fora. Um passo na direção certa.
Dou um passo em direção a rua.
O cenário a minha frente é tipicamente urbano, com carros buzinando e luzes pra todo o lado. Grandes construções cercam as calçadas, árvores quebram o concreto e há lixo por toda a parte.
Mas por algum motivo, nunca me senti tão em paz. Nunca me senti tão serena agora, mesmo tento respirado todos os ares divinos, e ter explorado todos os cantos do Céu.
Isso, esse sentimento, é mais que isso. É o verdadeiro Paraíso para mim.
Eu estou mudando.
Continuo andando, e John me segue, tão paciente. Não consigo me focar nele porque estou distraída demais com os carros indo rápido, tão rápido, e tudo o que eu quero fazer é sentir a sensação de estar correndo, porque não me lembro de ter corrido nenhuma vez antes que não tenha sido para salvar minha vida.
Correr só por correr deve ser maravilhoso.
Correr só por sentir seu sangue pingando em seu coração acelerado, o suor na testa e os pés no chão.
Estou tão extasiada por esse sentimento que disparo em direção a rua, querendo provar daquilo, querendo sentir a adrenalina. Mergulho em um milhão de pensamentos e sentimentos que jamais me pertenceram.
Uma buzina alta. Um grito.
Mara!
E tudo fica preto.





Apenas por um segundo.







De alguma forma eu estou no chão. De algum jeito, cheguei aqui. De algum jeito, fui arremessada.
Ou quase isso.
– Mara, você esta louca? Esta tentando se matar? - John esta no meio da rua comigo agora, e os carros desviam dele do jeito que podem. Há buzinas para todo o lado e um corsa prateado passa de raspão por seu tronco e eu não consigo me mexer.
A dor explode no lado direito de meu corpo e eu escorrego para baixo e mais para baixo.
John esta gritando e as pessoas estão confusas porque não entendem. Não entendem com quem John esta falando.
E nunca entenderiam.
Ao pensar nele ali, nos carros perigosamente perto, na possibilidade de um desastre, encontro forças para continuar. Engulo o gosto amargo em minha boca e cambaleio para o acostamento. Rastejo até estar salva, e quando alcanço a beirada, percebo que a dor esta indo embora.
Esta desaparecendo. Como se nunca tivesse estado ali.
John se abaixa, coloca as mãos em meu rosto e eu juro que quase posso senti-lo.
– O que você fez? - Ele sussurra, e sei que não esta se referindo a eu correndo em direção ao meio dos carros. Sei que não esta falando da minha impulsividade, dos meus gestos estranhos, nem do meu choro.
Posso sentir em meus ossos de boneca que ele esta falando de algo mais.

Ele esta me perguntando porque aquele carro me atingiu com os faróis antes de me atravessar.
Ele esta perguntando que diabos eu fiz, com quem falei, quem eu irritei no Céu para deixar de ser tão anjo. Para deixar de não sentir mais nada e passar a sentir alguma coisa, qualquer coisa. Todas as coisas.
Eu olho fundo em seus olhos azuis, com a boca tremendo, e não consigo parar de me perguntar também.

O que foi que eu fiz?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Os Demônios de Mara" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.