O Tigre Negro escrita por Willabelle


Capítulo 18
O Véu


Notas iniciais do capítulo

Mais um capítulo escrito com carinho, espero que gostem XO



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O farfalhar de folhas entre a escuridão se tornou mais audível a cada segundo que se passava até que se cessou de repente e a voz soou no lugar dos passos:
– Onde você estava!? O que pensa que está fazendo sentada aí? Eu te procurei pela floresta inteira... Liz? Você está bem? – A voz de Manik soou através dos galhos de árvores ao nosso redor.
Obviamente, eu estava com uma aparência horrível presumindo que preocupação estava estampada no rosto de Manik.
– Me desculpa, Kishan me pegou saindo da jaula...
Manik se aproximou e me estudou com seus olhos verdes.
– Eu te perdi de vista, te procurei pela floresta inteira... Droga! Devia ter voltado para o acampamento. Me desculpa, Liz. E por ter gritado com você antes também... eu estava bem preocupado e não é... – Manik parou de falar abruptamente e franziu o cenho – Isso é sangue?
Ele traçou seu polegar em minha bochecha, coletando o sangue quase seco que cobria minha pele.
– O que aquele cara...
– Nada – Interrompi-o.
– Foi Kishan, não foi? – Manik vociferou, olhando com rancor meu sangue em seu polegar. – Como ele pôde te machucar, Liz?
Suspirei profundamente procurando a calma necessária para que a explicação não se tornasse um problema adicional.
– Eu comecei, tá legal? Dei um soco na cara dele porque ele não me dava passagem, só pensava em me enfiar naquela jaula de tigre de novo. E então nós meio que lutamos...
Manik inclinou para frente e ergueu uma de suas sobrancelhas.
– O quê? – perguntei diante de sua postura. – Acha que não tenho força ou coragem o suficiente para começar uma briga com um cara que é um super-humano e metade tigre?
– A velha Liz o faria... – Ele murmurou quase que instantaneamente.
– O que você disse? A velha Liz? O que isso significa? – Dei um passo à frente, em direção à um pequeno faixo de luz da lua.
Manik olhou para o lado direito como se as respostas de suas questões pairassem sob folhas e galhos secos. Mas analisando sob uma ótica psicológica, eu sabia claramente que ele estava prestes à mentir, já que é dessa maneira que os seres humanos fazem quando estão inventando uma história em sua cabeça, olhamos para o lado direito.
Quando finalmente pousou seu olhar em meu rosto, seus olhos se arregalaram ligeiramente. Ele deu um passo à frente, para mais perto de mim. Fiquei parada como uma estátua, imaginando que talvez uma aranha gigante, de longas pernas e veneno mortal pairasse em minha cabeça.
– Isso não estava aqui antes – Ele disse tocando o lado esquerdo do meu rosto.
Seu dedo traçou uma linha reta rente a raiz do meu cabelo, perto da têmpora até o maxilar.
Seu toque macio se contrastou contra uma desconhecida linha áspera em meu rosto.
Suspirei aliviada. Sem aranhas!
– O que é isso? – Perguntei um pouco assustada.
– Uma cicatriz – Manik revelou gentilmente.
Ele parecia sorrir.
– Do que está rindo? E como uma cicatriz foi parar aí de repente?
Ao invés de responder, seus braços me envolveram em um forte abraço passional, como se não nos víssemos há muitos anos. Retribui o abraço mesmo que não entendesse seu significado naquele momento, ficamos daquele jeito por alguns instantes e quando nos soltamos eu me vi desejando que o abraço durasse mais.
– Você está voltando, Liz! – Manik disse sorridente ao me soltar.
– Como assim? Voltando?
– É, voltando. Essa história é tão longa e complicada, eu não sei se te explico ou tento acionar os outros gatilhos...
Manik andava de um lado para o outro impacientemente.
– Gatilhos? Manik, armas estão envolvidas nisso?
– Mais ou menos. Eu precisava de tempo, mas não temos esse privilégio. Vou te explicar uma parte da história rapidamente e então trabalhamos nos gatilhos.
Assenti em resposta como incentivo para que ele me explicasse logo o que quer que fosse.
– Tudo bem. – Manik se preparou animado. – Eu disse naquela hora “velha Liz” porque...digamos que você não tinha essa aparência antigamente...
– O que quer dizer? – Interrompi.
– Explicação primeiro, perguntas depois, okay?
– Tá bom.
– Continuando, você era diferente fisicamente e isso só aconteceu porque você conheceu Durga, a Deusa indiana. Ela lhe ofereceu a proteção que você ansiava, algo que fizesse Lokesh não te reconhecer. Nesta época você se cansara de caçar os tigres e escolhera viver uma vida normal, na medida do possível. Mas isso seria impossível com Lokesh observando cada passo seu, então Durga lhe ofereceu a chance de se proteger, já que resolvera poupar seus tigres de uma caçada e assim também poderia os proteger de melhor maneira. E você aceitou, você falou comigo antes de o fazê-lo e me pediu para lhe acompanhar. E eu vi toda a transformação acontecer. De uma garota indiana, para uma outra garota totalmente diferente. Você se tornou uma garota de um rosto esquecível, nada marcante. Seria um rosto comum. Mas além da aparência, Durga também lhe ofereceu algo maior. Ela disse que apagaria suas memórias passadas e lhe dariam outras novas. E a cada vinte anos sua memória é apagada e reposta por outras novas. Dessa vez você começou morando no Oregon, Durga criou esta vida para você, Liz.
Quando Manik terminou sua breve explicação, eu não tive noção de quanto tempo precisei para processar tudo aquilo, é claro que eu precisava de respostas para o meu oceano de perguntas, mas enquanto esperava por ondas de respostas, obtive, ao invés disso; um tsunami deles. Tão grande que tentaria me afogar se eu não aprendesse a nadar logo.
– Minha família não é real? – Balbuciei. Eu só conseguia pensar nos meus pais adotivos, meus irmãos, meu gato, Nico.
– Claro que são, Liz.
Lágrimas quentes arderam pelo meu rosto. Manik se aproximou e me apertou em um abraço, enterrei meu rosto em sua camisa e falei com a voz abafada:
– Manik, Lokesh não pode saber sobre isso, ele não pode machucar mais ninguém. Ele já voltou à caça dos tigres e... ele não pode, Manik.
Manik aumentou a intensidade do abraço em resposta:
– Eu prometo que não irei deixar e além do mais somos os melhores atores do mundo, enganamos aquele velho do mal numa boa.
Ri em meio a lágrimas.
– Eu tenho sorte de ter você, de ter alguém que acredite em mim.
Manik riu com a garganta.
– Você é tão persuasiva que não conseguiria me fazer não acreditar em você.
Afastei meu rosto de seu largo ombro:
– Parece que descobri seu tendão de Aqulies. – Ri um pouco melancólica.
Touché – Ele murmurou em um meio sorriso, tentando me animar.
E foi então que percebi que nossos narizes estavam tão próximos que suas pontas se tocariam se algum minucioso movimento se manifestasse. Senti nossa respiração pesar e a dele se aproximar cada vez mais. Uma de suas mãos escorregou para o meu cabelo enquanto a outra se fixou nos meus ossos das costas e quando percebi nossos lábios haviam se encontrado.
No momento não parecia errado ou certo, apenas necessário e familiar. O tipo de beijo que traz explicações para perguntas sem repostas coerentes em mentes confusas. E podia jurar que naquele momento não me importaria de ser afogada por tsunamis, porque sabia que Manik estaria ali para me salvar e me responder perguntas até mesmo impensáveis. Naquele oceano eu me arriscaria despida de medo e encararia o que viesse.
Ondas de calor vieram e insistiram. O toque de Manik era carinhoso, porém ansioso por mais daquela magia que havíamos criado e logo me vi desejando o mesmo.
Quando nossos lábios se separaram, ele acariciou minha bochecha com o polegar. Nossas testas estavam unidas e apenas o som das nossas respirações preenchiam minha mente, o resto se tornara um borrão silencioso.
Ele traçou seu dedo na extensão da minha antiga cicatriz esquecida até meus lábios gelados pelo vento e sorriu genuinamente.
E de repente, como se uma bigorna invisível atingisse minha cabeça, senti uma dor dilacerante que rapidamente começou a se mover para o restante do meu corpo. Caí de joelhos sob galhos e folhas secas, segurando minha cabeça com força. Gritei como se a dor pudesse se expelida pela voz, enquanto aquela tortura aumentava como se algo dentro de mim se rasgasse em uma ardência insuperável, como o tecido que se desfaz com gasolina e fogo. Manik segurava meus ombros e murmurava coisas indecifráveis.
E então, repentinamente, como se desfeita por mágica; a dor cessou.
Apoiei me nos ombros de Manik, inspirando e expirando como se o oxigênio à minha volta fosse escasso. Agora que a dor passara, minha sensibilidade havia voltado ao normal, eu sentia o ar quente abafado pelo verão, minha pele grudada por suor, meus cabelos colados na minha nuca, meus joelhos arranhados por galhos pontudos e meu coração batendo como o de um beija-flor.
E pela primeira vez senti minha mente relaxar como se permitisse se aliviar depois de ser apertada por amarras.
– O que foi isso, pelo amor de Deus. – Ofeguei entre minha respiração desregulada.
– Passou, Liz. – Manik me fez tirar os joelhos da terra, os examinando cuidadosamente.
– Ai, ai. Não, Manik. Espera... – Quando percebera, minhas pernas já haviam sido esticadas para frente.
Ele retirou de um de seus inúmeros bolsos do casaco marrom comprido, uma pequena garrafa de água e despejou seu conteúdo aos poucos nos meus joelhos, o que trouxe um breve alívio e refrescância .
– Está sangrando? – Perguntei.
– Sim. Você caiu com toda a sua força em cima desses galhos. – Manik fez um rápido movimento, resultando numa ardência dolorida.
Fiz uma careta de dor.
– Um pequeno galho. – Manik observou. – Estava cravado na sua pele.
– Pena que eu não me curo rápido como os tigres. – Reclamei quando Manik retirou outros resquícios de galhos e farpas da minha pele.
Quando o trabalho de enfermaria foi feito, ele me passou a garrafa de água que havia usado para limpar meus joelhos e bebi o seu conteúdo todo em um gole só.
– Agora você pode me explicar o que foi tudo isso? – Manik pediu, se sentando ao meu lado.
Suspirei profundamente me preparando para a longa explicação que viria a seguir:
– Parece que o véu da ocultação foi levantado, o véu que Durga colocou aqui – Apontei para minha cabeça.
E agora que eu parara para pensar melhor, o quanto eu me lembrava.
Me lembrava de cada momento e detalhe importantes das minhas vidas passadas. Era como se as memórias criassem asas e logo após tivessem sido presas em gaiolas, agora eu encontrara a chave das fechaduras das gaiolas e as libertava uma a uma. As memórias voavam livres agora, deixando o rastro de suas lembranças em minha mente sedenta por respostas. Flashes de memórias açoitavam minha cabeça como se competissem para conquistar minha atenção.
Um homem carregando uma enorme caixa abarrotada de sapatos de couro marrom, a visão de uma pessoa montada em um cavalo de montaria em um enorme e lotado hipódromo, garotas dançando alegres em vestidos esvoaçantes rosas claro, um rio gelado onde meus pés estavam mergulhados, sorrisos e gargalhadas em festas, minhas antigas famílias; e tudo estava lá como se nada estivesse sido esquecido.
Manik mal podia conter seu sorriso. O que era uma surpresa já que esperava uma reação confusa de sua parte.
– Eu estava certo... – murmurou para si mesmo.
– Como assim, Manik?
– Liz, nós nos beijamos...
Meu rosto ardeu e o imaginei que estivesse todo preenchido por uma cor escarlate forte e bem..., constrangedora.
– Me desculpa – sussurrou ele.
– Não, claro que não há problema. Não foi proposital e afinal quem se desculpa por um beijo...
Assisti a sobrancelha direita de Manik erguer devagar, assim como os dois cantos de seus lábios o fizeram levemente em uma óbvia expressão culpada.
– FOI PROPOSITAL? – Berrei indignada. – Como... o quê? Porque faria isso? Achei que no momento... e eu gostei do beijo, seu... seu...
Ergui e agitei os braços socando o peito de Manik, mas meus movimentos foram em vão já que ele parecia não sentir nenhuma dor.
Manik riu sob meu desespero, segurou meus pulsos e com calma os abaixou.
– Liz, eu sabia que o beijo rasgaria o véu.
Se eu estivesse num desenho animado naquele momento, meu queixo talvez estivesse localizado no centro da terra.
E aí Júlio Verne, encontrou meu maxilar totalmente pasmoso por aí?
– Como? – Foi a única palavra disponível a ser pronunciada naquela hora.
– Você acha que só Sr. Kadam fez sua lição de casa?
– Você fez pesquisas sobre a minha maldição?
– Sim, eu estudei muito. Estive vivo durante trezentos anos e bem...fiz várias faculdades, pesquisas, leituras importantes...
– E como sabia sobre o beijo? – Perguntei de forma curiosa.
Jurei que vi Manik corar pela primeira vez em trezentos anos.
– Contos de fada, lendas e mitos. A maioria das maldições pequenas são quebradas assim, com um beijo de amor verdadeiro. – As bochechas de Manik arderam conforme a explicação se prosseguia. - E bem... é claro que não tinha certeza, mas deveríamos testar todas as possibilidades, não acha? Sua maldição não foi diferente, Durga uniu elementos de vários contos universais e de cidadezinhas pequenas quase que desconhecidas para construir seu próprio conto, percebi isso enquanto estudava filosofia e literatura em Londres, 1670.
Aprendemos a descontruir histórias e reconstruí-las novamente de forma que assim descobríamos detalhes ínfimos quase que imperceptíveis de narrativas clássicas. E bom, foi mais ou menos assim que presumi que o beijo seria o gatilho.
– Obrigada. – Eu disse por fim, quase não acreditando na sincronicidade entre a genialidade e simplicidade que envolvia a solução do gatilho . – Não sei se algum dia conseguirei retribuir...
Manik segurou meu queixo e então me abraçou ternamente.
– Você não precisa, Liz.
– Eu... você fez tanta coisa por mim, obrigado não é o suficiente.
– Claro que é, Liz. Além do mais, ganhei um beijo como recompensa. – Ele riu e levantou as sobrancelhas múltiplas vezes.
Soquei seu braço de leve.
– Essa não é uma recompensa tão boa, fico feliz em ver seu contentamento.
– Cala boca, Raposinha. Você sabe que temos que constrangedoramente ignorar o fato de o quão bom o beijo foi.
– Decididamente não está tentando melhorar a situação... E bom, temos um foco aqui, que é a missão, sem distração, sem constrangimento.
– Sua vontade é uma ordem, Lomari*. (raposa*)
Bufei em resposta, sorrindo.
Naquele momento, eu me sentia mais preparada do que nunca estive.
Todo esse tempo vivi como se um pedaço de mim estivesse sido roubado e que nunca iria encontra-la, ou que nada a substituiria, porém essa parte fora encontrada e aqui estava eu com minhas memórias de volta e tudo isso só me fazia sentir como se uma explosão de serotonina estivesse sido ativada no meu cérebro. Sentia minhas veias formigarem por justiça e meus pelos se arrepiarem cada vez que escolhia uma memória do passado para ser revista. Minha vida finalmente começara a se encaixar, as luzes da minha mente, se acenderem e eu faria o mesmo com toda essa situação que estávamos tentando resolver.
– Vamos correr – disse à Manik com um sorriso pendendo dos lábios. – Temos um tirano para matar.


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Notas finais do capítulo

O que acharam?