Um jeito de ser bom de novo escrita por Sassenach


Capítulo 1
Prelúdio parte 1


Notas iniciais do capítulo

O primeiro capítulo se passa em julho de 2002. Comentem, favoritem, leiam.



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É VERÃO. FIM DE TARDE. O dia está chuvoso assim como esteve durante toda a semana. As nuvens cobrem o céu e deixa tudo mais escuro. A brisa que entra pela janela é quente, mas a casa está gelada. Agora, mais gelada do que nunca. Faz um ano que trouxe Sohrab para casa. Faz um ano que viajei para Peshawar e me encontrei com Rahim Khan por uma última vez. Um ano atrás, descobri a verdade sobre uma pessoa que já não estava mais viva. Descobri que tinha um irmão, que agora estava morto. Há exato um ano, viajei para o Afeganistão, que agora era uma terra devastada e cheia de pessoas mortas de fome. Uma terra que antes eu chamava de lar. Um lugar onde parte de mim sempre vai estar. Fui para Cabul, uma cidade fantasma. Uma cidade da qual conhecia cada rua, cada prédio, que agora se reduziram à terra e escombros. Fui para o lugar da minha infância, que me trazia tantas recordações, boas e ruins, atrás de um garotinho.

Deixei minha casa nos Estados Unidos, minha mulher e meus parentes, para me arriscar num lugar onde loucos assassinos tinham o poder. Tudo isso para procurar um menino de uns dez anos, que, assim como soube, era filho de meu meio-irmão. Passei pela casa de meu pai, que agora era ocupada por talibs que tinham poder sobre minha cidade. Subi na nossa colina e encontrei escrito no tronco de uma romã “Hassan e Amir, sultões de Cabul.” Me arrisquei numa viagem cheio de incertezas, uma das quais poderia representar a minha morte, para encontrar um menino. Reencontrei um loiro de olhos azuis injetados, a quem eu devia uma briga. Um homem que destruiu a infância de meu irmão e agora destruía a de seu filho. Briguei com aquele homem. Tudo apenas para trazer um menino para casa.

Passei dias no hospital, imobilizado e inconsciente, com um homem que conheci na viagem zelando por mim. Junto a ele estava o menino. Fiquei um mês longe de tudo que eu conhecia, arrisquei minha vida, dormi em hotéis sem condições nem mesmo de caminhar; tudo para salvar um garoto. Tudo isso para ele tentar se matar. Tudo isso para que o pouco de contato que tínhamos entre nós desaparecesse.

Já fazia agora, um ano que aquele menino, Sohrab, um meio-sobrinho, morava na nossa casa vitoriana, com seu meio-tio e a mulher dele. Eu e Soraya pensamos desde o começo, que trazer essa criança para nossa casa seria algo que mudaria nossas vidas. E de fato mudou. Mas não sei dizer se foi para melhor ou pior. Um silêncio aterrador saia do ex-escritório, que agora era um quarto infantil, lá em cima. O silêncio vagava por cada corredor, descia as escadas e se instalava em todos os cômodos. Aquilo era agonizante. Seis meses atrás, estava com minha mulher e o garoto num parque e vi um sorriso formado em seus lábios. Aquilo foi uma ponta de esperança, e se repetiu pelo menos mais uma vez, no aniversário de Soraya. Ele passava a maior parte do tempo dormindo, mas quase sempre, eu o pegava vendo a foto Polaroide, como se pudesse absorver a imagem com seus olhos.

Soraya estava sofrendo. No começo ela tentou se aproximar e cativar Sohrab, mas ele não dava chance. Suas respostas continuavam monossilábicas. Ele pode até não perceber, mas sempre soube que por traz daquele sorriso que ela dava ao falar com ele, escondia muita tristeza. As coisas não estavam saindo exatamente como imaginamos. Eu continuava tentando, todos os dias, fazer com que ele falasse com que fizesse pelo menos algum som, algo que rompesse a monotonia do nada. Naquele dia que fomos empinar pipas, eu me agarrei com todas minhas forças naquele meio sorriso que ele deu. Era um sinal de que as coisas iam começar a melhorar de alguma forma. Até melhoraram na verdade. Ele falava algumas palavras a mais, e deixava que Soraya segurasse em suas mãos. Eu estava me esforçando ao máximo, estava tentando ser paciente. Sabia que tudo o que tínhamos a fazer agora era esperar. Esperar que ele confiasse. Esperar que me perdoasse. Esperar.

Mas sempre fui ruim em esperar. Lembro que quando era criança e chegava o dia do meu aniversário, não ficava parado um minuto, e não parava de falar enquanto baba não me trouxesse meu presente. Fiquei me lembrando das vezes em que Hassan e eu brincávamos em casa, no jardim, na rua, na colina... Tudo era mais... Vivo! Nós tínhamos vida, brincávamos, corríamos, suávamos, gritávamos, chorávamos. Nós fazíamos barulho. Isso deixa a casa mais animada, e todos nos contagiávamos com aquela vida. Mas Sohrab parecia mais uma múmia, que se arrastava pela casa, vagando com olhares vazios, sem expressão. Aquele silêncio todo estava me torturando. Consultei o calendário e vi que o aniversário dele era dali a três dias. Aquilo me deixou animou, e pensei que poderia animá-lo também.

Resolvi ir até o quarto dele. Soraya estava na cozinha fazendo nosso jantar. Peno que vão durar só alguns minutos então não digo nada e apenas subo as escadas e vou pelo corredor até o quarto dele. Paro no meio do caminho e fico olhando em volta. Pensava que com uma criança em casa teria brinquedos espalhados por todos os cantos, as paredes teriam rabiscos de lápis de cor e tudo seria alegre. A realidade era totalmente oposta: tudo estava impecável em seu devido lugar. Parecia que só viviam adultos naquela casa. Mas vivia também uma criança. Um menino que passou por coisas que ninguém merecia passar. Uma criança que teve a infância roubada e agia como se não existisse. Era um garoto fechado dentro de si mesmo, sem palavras, expressões ou sentimentos.

Sentei no chão do corredor e apoiei as costas na parede. Pensei em Hassan. Ele havia passado pela mesma coisa não foi? Foi. A mesmíssima coisa. A mesma pessoa. A mesma cidade. A mesma idade. Mas Hassan não foi assim. Claro, as marcas estavam ali, mas ele sabia escondê-las. Depois de mais ou menos um mês fechado em sua casa, ele voltou ao normal. Voltou a cumprir seus deveres, e a falar comigo. Ele tentou ser uma criança normal de novo. O protesto de Sohrab já durava um ano. Longos dias que se arrastavam um atrás do outro. No caso de Hassan, fui eu quem me afastei, eu quem parou de falar. A greve de silêncio foi minha. E agora, Sohrab estava agindo exatamente como eu. No outro caso a solução foi esta: um de nós foi embora. Agora, porém, isso era uma possibilidade inexistente. Não haveria separação, não haveria tempo longe nem saudades. Não haveria mais vinte e seis anos, para que cada um seguisse com sua vida à distância, e depois um reencontro emocionante. O destino dele era aquela casa, comigo e Soraya. Ele teria que seguir em frente conosco.


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