Não é como se eu tivesse puxado o fio do destino , certo?
É um milagre que dois corações opostos estão se apoiando um ao outro.
Antes de eu te conhecer, eu falava pouco e nem sequer
podia sorrir sinceramente.
-An Cafe - My heart leaps for "C"

"Eu preciso que você forme casal comigo, Onna."

Aquela frase bizarra e inesperada soou apagada na mente de Botan, ao ponto de que ela precisou de dez ou vinte segundos mirando assustada a face inabalável de Hiei, até que conseguisse falar mais uma vez.

- Quêêê?

Hiei permaneceu em silêncio. Tinha certeza de que falara alto o bastante para que ela escutasse. "Será que além de idiota, ela está ficando surda?", pensou ele, incomodado com o olhar perplexo que a garota fixava nele.

Um segundo depois ela estava rindo.

Gargalhando.

E Hiei estava ocupado fuzilando-a com o olhar.

- O que foi agora? Eu disse alguma besteira? - os olhos rubros se estreitaram perigosamente, como se dissessem que ela estaria morta se respondesse "sim" aquela pergunta.

Botan se apoiava nos joelhos enquanto ria, e tomou fôlego para falar:

- Eu escutei que... acho que estou ficando... - e ela voltou a rir novamente, quase enfiando a cara no tapete.

Alguma coisa dentro da cabeça de Hiei queimou e estalou, como se sua consciência estivesse se revirando em chamas de raiva.

- Onna... se você não parar com essa risada estúpida agora...

O sorriso esmaeceu e desapareceu do rosto de Botan com a mesma rapidez que viera. Ela fazia um esforço para se manter séria, e ocasionais traços de medo sobressaíam nas suas faces.

- Mas... Hiei... - a ferry girl coçou a cabeça, confusa. - Acho que não entendi o que você disse...

- Eu já disse, eu quero que voc...

O koorime se calou rapidamente ao ver a porta abrir com um estalinho abafado e revelar as figuras de Keiko e Yukina.

- Botan-san! - chamou Keiko, parecendo não ter visto Hiei (que agora tentava disfarçar sua presença enquanto olhava fixamente para o par de meias rosas atiradas pelo chão). - Nós vamos jogar cartas, porque você não v... ah! Hiei-san!

O koorime respondeu apenas com um olhar desinteressado na direção da porta. Apesar de seus olhos estarem voltados para Keiko, sua atenção estava toda em Yukina - não a via desde que ela voltara, e ansiava por saber se o maldito namorado havia deixado algum dano aparente em sua pobre irmã. Ela parecia inteira, apesar de tudo.

- Vocês estavam conversando? - surpreendeu-se Yukina. Antes que Botan pudesse explicar que, na verdade, Hiei estava apenas ameçando suas risadas de morte e ela apenas tentando se manter viva, a koorime continuou, com um sorriso suave: - Venha jogar cartas conosco também, Hiei-san!

Botan virou a cabeça bruscamente para o youkai de fogo, imaginando qual resposta ele daria; naqueles momentos, ela se sentia parte de uma novela dramática entre irmãos. Hiei sequer teve tempo de descolar os lábios um do outro, quando uma voz irrompeu pelo corredor:

- Yukina-saaaan!

A expressão austera de Hiei rapidamente se metamorfoseou em um ódio incandescente borbulhando por debaixo da pele, mas apenas a ferry girl ajoelhada no chão pôde notar isso, porque as outras duas meninas haviam virado a cabeça na direção do autor do chamado - a inconfundível voz alegre e aguda, aliada ao levíssimo rubor que preencheu as faces de Yukina, rapidamente denunciou que se tratava de Kazuma Kuwabara no corredor. Botan observou os punhos de Hiei tremerem de raiva, e rapidamente a guia repetiu baixinho um mantra para dissipar os sentimentos ruins, com medo que o koorime acabasse explodindo seu quarto em chamas negras.

- K-Kazuma-san! - Hiei e Botan puderam escutar a voz da koorime no corredor, a pouca distância do quarto onde estavam. Keiko havia ido junto.

- Yukina-san, eu comprei refrigerante de uva para você! Você me disse que gostava, certo? - disse a voz galante de Kuwabara, ecoando levemente no corredor.

- S-Sim...

Botan riu ao imaginar o rosto de Kuwabara conversando com a namorada. Ele falou mais uma vez:

- Ah! Keiko-chan! O que você está fazendo aqui? O Urameshi está lá na sala!

- Eu estava chamando a Botan-san e o Hiei-san para virem jogar cartas com a gente, e... - começou Keiko, sendo bruscamente interrompida pelo namorado de Yukina:

- O quê?! O anãozinho está aqui? Só pode ser um anúncio de desastre natural! Quem o arrastou para cá dessa vez?

A guia espiritual quase pôde sentir o ódio se revolvendo e pulsando no koorime plantado atrás dela; ser chamado de anãozinho era uma das  inúmeras coisas que o fazia se irritar. Especialmente quando o autor da fala tinha cabelos laranjas e namorava sua irmã. Botan começava a achar que os mantras não funcionariam para aplacar aquele coração amargo, e talvez ela devesse apelar para uma reza forte ou algo assim.

- Não faço ideia, eu o encontrei no quarto da Botan-sa... - mais uma vez, Keiko teve sua frase interrompida pela voz berrante de Kuwabara:

- Quêêêê?! Aquele maníaco do Hiei estava no quarto da Botan? Temos que ir lá agora! Isso é pior do que um desastre natural! Ele pode estar equartejando-a nesse momento, ou estripando-a, vocês sabem o quanto eles se odeiam... ele pode até estar abusando da inocência dela ou algo assim!

"Cale a boca, por favor! Kuwa-chan, cale essa boca se você tem amor a vida!", mentalizava a guia espiritual, temendo pela própria vida e pela do amigo; se Hiei se irritasse, poderia pôr todo aquele templo abaixo.

E parecia que o koorime estava disposto mesmo a fazer algo daquele tipo.

Botan teve a impressão de escutar um rosnado atrás de si; virando-se rapidamente, deparou-se com a figura feroz de Hiei.

- Maldito... - ele vociferou baixinho, enquanto puxava o punho da espada.

"Meu Deus! Ele vai matar a todos nós! Ele está irritado e vai acabar com as nossas vidas aqui mesmo!", pensou Botan dramaticamente. Num impulso, ela já estava de pé.

- Hiei, o que você...

O koorime não lhe deu atenção, passando por ela a passos duros. Instintivamente, Botan agarrou-se com os dois braços no braço dele.

- Solte - ele rosnou, lançando-lhe um olhar de máquina mortífera.

Botan precisou de todo o seu auto-controle e coragem para não sucumbir de medo perante aqueles olhos afogados em raiva. Ela sentiu seus joelhos tremerem.

- Não! Você não sabe o que está fazendo, Hiei!

- Eu sei, sim. Me largue se não quiser perder um pedaço.

No corredor, Yukina e Keiko tentavam conter Kuwabara do mesmo modo, garantindo-lhe que Botan - ainda - estava inteira e que não havia nada de errado com nenhum dos dois. Aos poucos, a namorada de Yusuke e a irmã de Hiei conseguiram arrastar o garoto para fora daquele corredor, que parecia se convencer do que sua namorada dizia; em poucos minutos, o corredor estava silencioso de novo.

No quarto de Botan, estava uma cena engraçada. Hiei estava curvado para frente, como se lutasse contra uma força gravitacional dez vezes maior do que o normal, que não lhe deixava caminhar perfeitamente. A razão daquilo, porém, era Botan, que o agarrava pelos ombros num esforço desesperado de contê-lo; ela estava de olhos apertados e fechados, esperando a qualquer momento sentir a lâmina da espada de Hiei atravessando seu corpo e lhe mandando para a terra dos mortos. Estava determinada a não deixar que ele atacasse Kuwabara. Um minuto se passou em silêncio, com Botan sentindo os cabelos negros lhe espetarem o rosto, e o koorime parando de andar. Ela permaneceu na mesma posição, até ele sibilar:

- Me solte agora, Onna, se não vou esquecer que você não passa de uma mulher sem força nenhuma e vou acabar com você.

A ferry girl não precisou de um segundo aviso; se afastou, ofegante, um medo horrível ainda dançando nos orbes rosados dela.

- Me desculpe, Hiei! Mas você...

- Já entendi. Não precisa disso. Eu não vou perder meu tempo com aquele imbecil. - ele fez uma pequena pausa e deu um meio-sorriso frio, antes de dizer: - Você está começando a ter alguma coragem, Onna.

Botan deu um sorrisinho, orgulhosa de si mesma. Tinha vontade de sair gritando por aí que impedira um youkai enlouquecido de ódio de matar um amigo seu com suas próprias mãos, mas não chegou a fazê-lo; aquele sorriso era tão intimidador quanto os olhos secos.

- Ei, Hiei! - chamou a guia espiritual, vendo que o koorime se desviava para a janela para ir embora; por que ele nunca usava a porta? - O que você queria falar comigo, antes?

Botan ainda estava convencida que escutara errado o que ele dissera; aquele koorime mal-encarado nunca, nunca mesmo, pediria algo daquele tipo para ela.

- Você escutou o que eu disse. Sabe muito bem o que eu pedi. - ele replicou com simplicidade.

- Não! Eu não escutei!

Hiei se virou para ela com uma carranca mal-humorada. Maldita mulher burra. Teria que explicar tudo para ela?

- Você disse que não faz sentido ir alguém sozinho num encontro entre casais.

- Sim, eu disse - confirmou a ferry girl -, mas o que...

- Então, eu tenho que formar casal com alguém se eu quiser ir em algo assim. - o koorime proferiu essas palavras em tom conclusivo. - Você é a única aqui que serve para isso. Você não está em casal com ninguém.

Botan achava engraçado o jeito como ele falava sobre aquele assunto: "formar casal", "não está em casal", todas aquelas expressões estranhas delatavam a inexperiência de Hiei em assuntos amorosos. "Quem sou eu para rir disso? Eu também não tenho experiência nenhuma nisso!", pensou a guia, sentindo o estômago rodar.

- Sim... mas... - ela falava e olhava para ele de uma forma hesitante. - Por que você quer ir nesse encontro? Eu ainda não entendi!

Hiei bufou.

- Yukina estará indo com aquele idiota.

Botan precisou de alguns segundos para processar a informação, antes de gritar:

- Ahh! Você quer zelar pela pureza da Yukina-chan, ou algo assim! - os olhos dela brilharam de emoção e o sorriso constante se alargou, como se estivesse presenciando uma cena extremamente açucarada de filme romântico. - Que lindo! Típico de um irmão mais velho! Que coisa mais fofa!

Hiei olhou-a com um ar azedo. Aquela mulher não era nem um pouco normal.

- Então, você já entendeu. É apenas isso.

- Mas, espere, Hiei! - pediu Botan, quando viu que ele estava prestes a saltar da janela. Ele se virou com uma expressão de poucos amigos para ela, que continuou a falar: - Você não precisa se preocupar! O Kuwa-chan é uma boa pessoa! Ele nunca faria nada de errado com a Yukina-chan!

- Hn. - um forte tom de descrença pontilhava a voz do koorime. - Eu não sou idiota a ponto de confiar tão cegamente naquele imbecil. - Hiei desviou o olhar. - De qualquer forma, eu não preciso da sua ajuda. Eu posso encontrar meu jeito.

O koorime saltou do parapeito. Botan rapidamente correu até a janela, debruçando-se onde ele estivera há poucos minutos e gritando para a figura de preto que se afastava:

- Hiei! Eu quero ajudar você! Eu vou ajudar você, seu bobo!

Ela ficou apreensiva, mordendo os lábios, perguntando-se se ele a escutara. Um sorriso se formou sem querer em seus lábios quando ela o ouviu gritar "Baka" a alguma distância.

- Ei! Não fale assim de mim! - protestou ela com ar zangado, mas ele não respondeu, sumindo na noite. Botan riu e aninhou as mãos uma na outra, enquanto dizia consigo mesma: - Eu vou ajudar você e a Yukina-chan, Hiei. Assim, quem sabe, vocês poderão eliminar todos esses segredos e viverem como irmãos. Eu quero vê-los felizes.

A ferry girl sorriu para o quarto vazio, antes de atravessá-lo numa corrida rápida e pular as meias no chão, abrindo a porta e alcançando o corredor. Estava a hora de começar a botar aquele plano em ação.

~ x ~

- Pode falar, Botan-san. Estou escutando.

A guia espiritual mordeu os lábios e olhou para o próprio colo, onde suas mãos descansavam. Droga. Ela não imaginava que fosse ser tão difícil, logo no começo.

A cozinha do templo de Genkai, pequena e simples, estava vazia, exceto por duas garotas. A primeira delas tinha cabelos castanhos e curtos, e ocupava-se em esfregar alguns pratos dentro de uma pia rasa; era o dia de Keiko lavar a louça. A outra garota, de cabelos azuis presos num rabo atrás da cabeça, sentava-se numa banqueta alta e balançava os pés calçados por meias brancas e sandálias de fibra, enquanto mirava as costas das mãos e tentava pôr aquilo em palavras.

- Bem... - começou Botan, volvendo os olhos para as costas de Keiko. - Você, Keiko-chan, e o Yusuke, vão junto com a Yukina-chan e o Kuwa-chan para... aquele encontro, certo? Daqui a dois dias, não é?

- Sim! - as bochechas de Keiko se curvaram num sorriso, e ela se virou para a amiga. - Você mudou de ideia e decidiu vir conosco, Botan-san?

A ferry girl quase soltou um grito de susto. Keiko era tão direta.

- Bem... - disse a guia em tom manhoso, torcendo as mãos - é um encontro de casais, afinal...

- Sim. Por isso que o Kurama-kun e a Shizuru-san não vão. - comentou Keiko com um ar pensativo. E acrescentou, mais para si do que para a outra: - Embora eu ache que seja apenas uma questão de tempo até eles se acertarem.

- Sério?! - quis saber Botan, ávida por fofocas. - Eles se gostam?

- Bem, eu acho que sim, embora Yusuke diga que não - respondeu a garota de cabelos castanhos com um riso baixo.

- Ah! Então eles deveriam ir para o encontro também!

- Bom, mas é um encontro para casais, não de amigos. Se eles não admitirem que são um casal, não dá certo, você sabe do que estou falando. Você mesma disse que não fazia sentido ir só! - Keiko voltou-se para os pratos sujos restantes.

Na verdade, Botan não sabia. Mas decidiu não verbalizar isso. Ela corou um pouco e levantou o rosto para a cabeleira castanha da amiga.

- Eu estarei indo também. - a ferry girl murmurou quase inaudivelmente.

Keiko se virou para a amiga, sem entender.

- Mas você disse que não queria ir, que estava bem sozinha, Botan-san...

Botan engoliu em seco e engrenou um sorriso.

- Não vou sozinha. Eu e Hiei iremos... iremos juntos.